Combate ao monocultivo chega à Cúpula do Nobel

Tendência das últimas décadas foi aumentar colheitas devastando a natureza e a diversidade alimentar. Pensadores laureados com o prêmio preparam alternativas. ONU fará três encontros a respeito. Brasil, que poderia ser decisivo, omite-se

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Por Ricardo Abramovay*

A biosfera está sendo transformada num ecossistema produtivo global. Esse ecossistema é marcado por três traços fundamentais: o primeiro é o surgimento de formas homogêneas de uso do solo, que são a marca e a premissa do espetacular crescimento da produção de alimentos, fibras, madeiras e bioenergia no mundo contemporâneo. O segundo é a dependência em que se encontram estas produções de insumos industriais que, muitas vezes, estão na origem da ultrapassagem de fronteiras ecossistêmicas, além das quais a própria vida na Terra se encontra sob ameaça. O terceiro é que este sistema produtivo se conecta e tende a reproduzir seus padrões por meio de mercados globais.

Esta formulação vem de estudiosos ligados a centros de pesquisa suecos, cuja influência na reflexão contemporânea e na elaboração de propostas para o desenvolvimento sustentável é decisiva. É deles o documento em torno do qual ocorrerá, na Academia Nacional de Ciências em Washington, entre 26 e 28 de abril, o Nobel Prize Summit (Cúpula do Prêmio Nobel) em torno do tema “Nosso Planeta, Nosso Futuro”. É uma iniciativa inédita da Academia Nacional de Ciências dos EUA e dos prestigiosos Potsdam Institute for Climate Impact Research (da Alemanha) e do sueco Beijer Institute.

A cúpula dos Nobel será importante para subsidiar três reuniões globais, promovidas pelas Nações Unidas, onde, não fosse o desprezo pela ciência, o negacionismo climático e a aversão ideológica ao multilateralismo democrático do atual governo, o Brasil poderia desempenhar papel de liderança. A primeira é a Convenção da Diversidade Biológica, prevista para ocorrer na China em maio próximo. A segunda é a inédita Cúpula dos Sistemas Alimentares (setembro de 2021) e a terceira é a Conferência Climática de Glasgow (Escócia), prevista para o final do ano, que vai examinar o andamento dos compromissos assumidos pelos diferentes países signatários do Acordo de Paris, de 2015. Claro que é a evolução da pandemia que vai dizer se estas reuniões vão se efetivar. Mas o enfrentamento de sua pauta estará na agenda global desta década.

Três pontos merecem destaque não só no documento preparatório da Cúpula dos Nobel, mas em diversos outros trabalhos que subsidiam as conferências globais de 2021. O primeiro refere-se ao próprio título Nosso Planeta, Nosso Futuro. O que está em jogo aí é a biosfera, composta por todos os seres vivos, sua diversidade e suas relações. A biosfera depende, claro, da circulação atmosférica, dos rios voadores, dos solos e dos ciclos biogeoquímicosessenciais para a vida na Terra.

O importante, porém, é que diferentemente da cultura predominante desde a Revolução Científica do século 17, o reconhecimento de nossa inserção na biosfera, de nossa dependência daquilo que a natureza nos oferece e de nossa responsabilidade em manter as bases de sustentação da vida está tomando lugar cada vez mais importante na visão que a humanidade tem de si própria. A crença triunfalista de que o progresso tecnológico será capaz de substituir o que estamos destruindo pelo que nossa inteligência tem o poder de criar, a visão de nós mesmos como exteriores e mestres dos processos naturais, dão lugar a um esforço cada vez maior em respeitar e aprender com o que a evolução da biosfera ao longo dos últimos 3,5 bilhões de anos tem a nos ensinar.

A consequência é que os processos produtivos contemporâneos têm que “colaborar com a biosfera”, como se lê no documento da Cúpula dos Nobel. O foco dominante não pode mais estar em produzir cada vez mais alimentos, fibras, madeiras e energia em sistemas eficientes, porém simplificados. O essencial é dirigir o progresso técnico para fortalecer sistemas sócio-ecológicos ricos em diversidade e que, ao mesmo tempo, ampliem o bem-estar humano.

O segundo ponto refere-se não apenas à pobreza, mas sobretudo ao avanço global das desigualdades. Por maior que tenha sido o progresso material da segunda metade do século 20 para cá, é importante saber que, em 75% das cidades do mundo, a desigualdade de renda supera a existente duas décadas atrás e que, globalmente, aumentou a quantidade de trabalhadores vivendo em áreas residenciais segregadas e pouco providas em serviços públicos de qualidade e boas oportunidades de inserção social.

Mas o fundamental, no que se refere às desigualdades, é a constatação de que, sem forte redistribuição de riqueza e renda, não há a menor chance de que o aumento do bem-estar humano caiba no interior dos limites que a biosfera impõe ao crescimento econômico. Elevar a renda per capita dos 10 bilhões de habitantes, que a Terra deverá ter em 2050, ao patamar entre US$ 35 e 50 mil (que é o de muitos países desenvolvidos) significaria aumentar em seis vezes o Produto Interno Bruto global, o que é incompatível com a preservação dos mais importantes serviços ecossistêmicos necessários à vida no planeta, por maior que seja o progresso técnico.

O terceiro ponto que merece destaque no documento do Beijer Institute é o que constata que as transformações necessárias no âmbito de “Nosso Planeta, Nosso Futuro” apoiam-se em amplas coalizões entre cidadãos, negócios, organizações da sociedade civil e governos. O papel da ciência aí é essencial. Um dos mais importantes exemplos globais nesta direção é Aliança pela Ambição Climática

O Brasil é parte fundamental deste processo por duas razões. A primeira, evidentemente refere-se à Amazônia. A realização em Belém, em outubro deste ano, do Fórum Mundial da Bioeconomia será uma ocasião privilegiada para que cientistas, sociedade civil, empresas e governos de estados da Amazônia elaborem os caminhos para que as florestas tropicais desempenhem um papel relevante na bioeconomia global, o que hoje está longe de acontecer. O Fórum será lançado em conferência pública pela internet, na próxima quarta-feira (3), às 10 horas.

Mas o Brasil tem especial responsabilidade também na emergência de sistemas produtivos globais que contribuam para ampliar a biodiversidade, mesmo no interior das áreas voltadas predominantemente à lavoura, à pecuária e à exploração madeireira. As experiências pioneiras de diversas partes do País com a integração entre lavoura, pecuária e floresta e a pesquisa científica em torno destes novos modelos podem servir para concretizar nosso sonho de sermos, além de potência agropecuária, potência socioambiental.


* Publicado originalmente no TAB

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