As teias onde se tece nossa angústia

Novo livro relaciona corporações e disciplinamento das subjetividades, nas redes sociais. Quanto mais somos compulsivos, mais impotentes, diz autor — e saída exige, além de radicalidade política, quebra das lógicas narcísivas

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Por Vicente Rubio-Pueyo, no Ctxt | Tradução: Gabriela Leite

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Essa é uma resenha do livro The Twittering Machine (2020), de Richard Seymour, ainda sem tradução no Brasil.

Terminei o ano de 2020 lendo The Twittering Machine, do ensaísta britânico Richard Seymour. É um grande livro, um estupendo e necessário ensaio que tem a capacidade de verbalizar as inquietudes e intuições que muitos usuários de redes sociais temos por elas. Certamente, muitos conhecemos essa relação ambivalente (de amor e ódio) feita de certa dependência ou, como diz Seymour, adição. As redes se converteram em um espaço que nos provê essa corrente contínua e embaralhada de notícias, opiniões e entretenimento que informam nossa vida cotidiana, nos abrindo (especialmente em tempos de pandemia e confinamento) um arremedo de uma (problemática) esfera pública. Ou nos encarcerando nela.

The Twittering Machine é um ensaio poderoso e inquietante, cuja leitura suscita como primeira reação no leitor (ao menos neste que vos escreve) encerrar imediatamente todas e cada uma das contas em redes sociais. Como tantos usuário, e especialmente nos últimos tempos, penso frequentemente em fechar minha conta do twitter (abandonei o facebook há uns três anos). Por diversas razões. O desejo de usar meu tempo de outro modo, o cansaço e a saturação ante a velocidade das notícias e das reações, a frequente sensação de um tipo de tédio ou fastio para-depressivos gerados pela amplificação que as redes dão a um contexto social e político já por si deprimente: a pandemia, a onipresença estridente de Trump, contínuas exibições de agressiva ignorância de essencialismos vários, obviamente vindas da direita voxera [Vox é o partido de extrema-direita espanhol] ou trumpista, mas também de supostos setores da esquerda.

Não sei para vocês, mas para mim, uma das palavras do ano que acabamos de terminar tem sido o termo (popular no twitter estadunidense) “doomscrolling”, ou seja, o gesto do contínuo atualizar do feed ou da timeline do twitter, em uma busca compulsiva e insone da próxima má notícia por vir. Algo muito próximo ao que outro grande ensaísta britânico, Mark Fischer, chamava de “hedonismo depressivo”.

Não matei minha conta do twitter. Vendo que começamos 2021 com nossas timelines colonizadas pela presença de discussões e sujeitos tristes, decidi compartilhar algumas notas sobre o livro. Ao fazê-lo, supus que caía em uma primeira contradição. Mas ao menos ela ajuda a explicar o próprio livro. The Twittering Machine é, por um lado, uma poderosa crítica à infraestrutura material e discursiva das redes, e aos sintomas sociais que explicitam e multiplicam. Um deles — e por isso minha contradição — é a necessidade de gerar conteúdos para serem compartilhados compulsivamente nas redes. Ou, como disse Seymour, a necessidade autoimposta de escrever, de uma escritura compulsiva que reage sempre à última polêmica do dia. Mas o livro é ao mesmo tempo também — sobretudo seu final — uma proposta necessária para imaginar outros usos, práticas e espaços nas redes.

Relações de escritura e trabalho

Seguramente, o melhor do livro é que ele se esquiva dos lugares comuns das discussões em torno das redes e da tecnologia. Seymour é um grande ensaísta e consegue sempre dar foco às discussões de formas contraintuitivas, desarmando quadros repetidos, desautomatizando a ideologia, enfim. É um livro sobre as redes que começa falando, por exemplo, sobre os quipus, os nós e trançados de cordas usados pelos incas para marcar datas e guardar informações. É a forma como Seymour nos introduz ao problema, a partir de um enfoque baseado na materialidade das tecnologias ou, mais precisamente, na materialidade da própria escritura entendida como tecnologia. E em sua própria historicidade, isto é, as mutações da escrita através de diferentes meios e suportes históricos, e que determinam seus sucessivos usos e efeitos. Máquinas, suportes e meios não são meros instrumentos inertes, mas processadores, geradores e transmissores de relações sociais.

Esse enfoque profundamente materialista de Seymour, no entanto, não se concentra — ou não somente — na materialidade da internet entendida como o monopólio das grandes empresas e corporações que administram esses espaços, ou como a infraestrutura material e os instrumentos técnicos (cabos, fibra ótica, servidores, sistemas de armazenamento, códigos de software). Poderia parecer que isso trairia sua perspectiva materialista. Mas o contrário acontece. Existem muitos livros sobre essas questões. É só que Seymour prefere se concentrar melhor nas questões relativas às relações sociais que se geram, constroem e mantêm nas redes sociais. Talvez porque precisamente Marx insistia que o puro desenvolvimento das forças de produção (ou seja, entre outras coisas, as tecnologias) não era um mecanismo de explicação suficiente. É por isso que a argumentação de Seymour, apesar de apresentar uma visão devastadoramente crítica das redes, foge das atuais caracterizações demonizadoras, ou às vezes até demoníacas, que tendem a apresentá-las como causa final de todos os males, como espírito maligno que nos possui e controla. O mal, o bem, não residem, ou ao menos não completamente, nelas mesmas, mas fora delas. Para Marx, a chave sempre residia, e reside, nas relações sociais de produção. No mundo social que as máquinas e seus usos refletem, processam e geram em torno de si.

Em outras palavras, Seymour se concentra em questões relativas ao que chama de “indústria social”, baseada principalmente na produção e recolhimento de dados e na objetificação e quantificação da vida social em formas numéricas. Em suma, em toda essa máquina — e aqui a palavra adquire uma tonalidade deleuziana — que nos prende em uma teia ou emaranhado feito de tempo, de atenção, de hábitos, de vício. De escrita. A partir daí, The Twittering Machine desdobra-se em seis capítulos, cada um deles intitulado a partir da primeira pessoa do plural, “todos”, seguida de todo um desfile de figuras e comportamentos comuns nas redes: “Todos estamos conectados”, “todos somo adictos”, “todos somos famosos”, “todos somos trolls”, “todos somos mentirosos”, “todos estamos morrendo” e, nas conclusões finais, “todos somos escrevedores” (tradução própria). O que Seymour tenta apontar é a condição coletiva, e portanto política, dessas figuras e lógicas. Não se trata de estabelecer um olhar moralizador, julgador, baseado na crítica de condutas individuais. Todos estamos, efetivamente, não apenas conectados, mas enredados nessas lógicas e figuras.

Por causa da própria infraestrutura das redes, todos exercemos e participamos, em um momento ou outro, em maior ou menor medida, daquelas. Porque além disso, os problemas “das redes” nunca são de fato delas. Como Seymour insiste repetidamente, as redes unicamente revelam — e certamente amplificam — problemas que já existiam ou existem antes ou fora delas. Se temos dependência das redes, não é causada (ou não somente) pela qualidade aditiva de seu projeto (a geração de dopamina, a satisfação do prêmio em forma de likes, como normalmente destacam as análises mais psicológicas), mas porque havia algo, um vazio, em nossas vidas, que as redes conseguiram preencher.

Deste modo, The Twittering Machine constrói uma fenomenologia persuasiva tanto de hábitos quanto de efeitos que nossa escrita e nós mesmos experimentamos nas redes: a busca (com uma sorte de ludopatia) do tuíte ou post que nos lançará à fama; a necessidade de reagir à última polêmica, mostrando enfaticamente nossa indignação, aprovação ou rechaço… Finalmente, como Seymour destaca, uma quantidade imensurável, mas perfeitamente calculável, de palavras, de tempo, de escrita. De trabalho.

Parte do problema das redes pode explicar-se mediante outra clássica oposição marxiana, a de valor de uso versus valor de troca. Talvez tenhamos notado como a palavra “conteúdo” adquiriu uma relevância especial na internet. Falamos continuamente do conteúdo que consumimos nas redes, já nem sequer para nos referir a conteúdos discretos, unidades singulares, mas sim do conteúdo como uma substância infinita que é se gera e circula constantemente. Basicamente, nas redes se dá uma exacerbação do valor de troca do conteúdo (o que importa é a contínua produção e circulação de conteúdo novo) frente a seu valor de uso. A produção de novidade constante frente à lentidão da aprendizagem e da discussão dessa mesma produção. Ao mesmo tempo, as redes nos individualizam como receptáculos de capital simbólico: somos indivíduos que, queiramos ou não, compartilhamos o que fazemos, pomos em circulação, à espera das reações imediatas de outros, acumulamos conexões, followers, likes, retuítes.

Para construir outras redes

Em suas conclusões, Seymour resgata a noção de “angústia”, uma paixão triste, próxima da melancolia e do tédio vital. Talvez a monotonia e o confinamento impostos pela pandemia tenham aumentado, se é possível, essa sensação. Pode ser que por causa da multiplicação de tarefas que o teletrabalho impôs, nos últimos meses, nosso tempo em telas (e portanto em redes) tenha aumentado. De alguma maneira, gera-se uma perda de valor do próprio tempo que leva, paradoxalmente, a que não importe perdê-lo ainda mais nas próprias redes. Esse tédio e essa falta de cuidado e de autovalorização da própria vida e do próprio tempo é a angústia que, acompanhada do vício, gera uma escrita de lógicas compulsivas, e uma contínua necessidade ou (auto)obrigação de expressar-se. A liberdade de expressão é agora uma obrigação, uma compulsão (auto)induzida. 

Como apontávamos no início, há muitas dimensões e frentes na luta política por outras tecnologias e redes. Há a questão do controle dos monopólios das grandes empresas (Amazon, Facebook, Twitter) e da propriedade e uso dos dados que são gerados. Autores como Nick Srnicek destacam a necessidade de lutar pela nacionalização dessas empresas. Há as consequências políticas do poder que essas corporações exercem sobre a esfera pública, como exemplifica o recente caso da suspensão da conta de Twitter de Trum e suas possíveis ramificações.

Seymour, como dizíamos, prefere centrar-se no “nível usuário”, demonstrando a necessidade de “utopias de escrita”, de outros espaços e usos coletivos das redes. Refletindo acerca da necessidade e possibilidade da transformação dos hábitos graças à neuroplasticidade cerebral, o ensaio de Seymour constrói um belo paralelo implícito final, diríamos que spinoziano, com a estrutura mesma do livro. Se todos estamos conectados, e somos parte portanto desse cérebro coletivo que são as redes, transformar coletivamente nossos hábitos tem resultado parecido com essa neuroplasticidade cerebral, agora na escala total das redes.

Seymour conclui falando da necessidade de uma nova cyber-utopia, e de um neoludismo (diminuindo o uso pejorativo habitual da expressão). “Se queremos — escreve Seymour nas conclusões do livro — alcançar a liberdade de expressão hoje, não é mais suficiente exigir a abolição das constrições políticas. Devemos libertar a expressão da incessante produção de redundância, e libertar a nós mesmos da compulsão do trabalho. Devemos aposentar nosso trabalho e recuperar os prazeres da escrita como tempo de ócio” (tradução própria).

Ninguém está dizendo, é claro, que será uma tarefa fácil. Muito menos Seymour, cujo livro, como digo, é um retrato demolidor de uma realidade tão cotidiana e onipresente. Mas refletir sobre as perguntas que lança me parece um exercício urgente e necessário. Já há algum tempo, tem havido inúmeros abandonos das redes, e debates e preocupações recorrentes em relação a seu uso, pela permanente toxicidade, pela crescente presença de essencialismos ideológicos, à esquerda e à direita, ou devido aos perigos da chamada “cultura do cancelamento” (se bem que essa discussão deve ser discutida e graduada). Nesse mesmo meio, recomendo especialmente a entrevista de Marta Cambronero a Geert Lovink, sobre seu livro Tristes por projeto. Há algumas semanas, Nuria Alabao e Emmanuel Rodriguez compartilharam algumas reflexões sobre o moralismo político nas redes, a respeito do conhecido ensaio de Mark Fischer “Deixando o castelo do vampiro”, uma referência imprescindível para pensar em toda uma sintomática do discurso político em redes, e que foi objeto de uma sessão — com Nuria Alabao, Clara Serre e este que vos escreve — em um recente seminário do instituto de Estudos Culturais e Mudança Social. Também há propostas e práticas concretas, como o trabalho que está fazendo a conta [de twitter] @nolesdescasito para conscientizar sobre o funcionamento das redes em relação à presença da ultradireita e sua busca por atenção.

Trata-se, portanto, de uma reflexão coletiva sobre como e para que usamos as redes, e de como podemos usá-las de outras formas, e não sermos usados por elas. Uma conversa necessariamente coletiva, posto que afeta um aspecto (crescentemente importante) de nossa convivência. E, como tal, uma questão política, isto é, não redutível a uma bem-intencionada eleição de melhores maneiras ou atitudes individuais. Que queremos fazer nas/com as redes? Como queremos usar nosso tempo e nossa escrita? Para quê? Que espaços podemos construir? Que práticas e hábitos precisamos estimular?

A única proposta que posso fazer no momento é apelar à lógica do coletivo. Fora das redes da internet, claro, mas também dentro delas. Isso é, abrir e participar de espaços coletivos capazes de efetivamente “gerar conteúdos”, fazer divulgação e aprender coisas novas. Em outras palavras, combater a temporalidade individualizada da corrente de conteúdo quantitativo com os tempos compartilhados do qualitativo. Trata-se não apenas de consumir dados e fatos, mas encontrar e gerar sentidos compartilhados. Desse modo, talvez possamos, por um lado, articular novas narrativas e sentidos ao que nos ocorre e atravessa e, de uma vez só, proporcionar lógicas de cooperação e colaboração capazes de reconstruir um sentido orgânico dos espaços que ocupamos na internet. Há exemplos, práticas e espaços, como a Nociones Comunes — Universidad Experimental de Madrid, a Hidra Cooperativa, o Instituto de Estudos Culturais e Mudança Social, entre muitos outros, ou os que provêm as mídias independentes como a que você está lendo nesse momento. Mas é necessário pensar juntes em como fazê-los sustentar-se, crescer e adaptar-se a esse contexto.

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