Política Cognitiva Solidária e o Brasil em reconstrução

Resgatar potencial tecnocientífico do país será tarefa árdua, mas essencial no pós-Bolsonaro. Exigirá mirada interdisciplinar, combinando Ensino, Pesquisa e Trabalho – e, frente ao exército de desocupados, construir a indústria do bem-estar

Imagem: Fernand Léger, La femme et l’enfant (Mother and Child), 1922
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Este texto se inicia analisando a política cognitiva (conceito com que, por coerência e serventia, enfeixo as políticas de Ciência, Tecnologia e Inovação e de Educação) promovida pela extrema direita, cujo inquestionável compromisso com a classe proprietária e suas empresas é oposto ao do governo que se espera ao que ele sucederá. Comprometido com a solidariedade e o Bem Viver, ele deverá enfrentar desafios mediante uma política cognitiva (PC) que demandará a exploração de uma agenda como a que se propõe.

A previsível Política Cognitiva da extrema direita

Adotando a prática conhecida de primeiro desmontar arranjos institucionais em que se apoia uma política, o governo está advertindo os envolvidos com a PC para irem se adaptando às mudanças que pretende implementar.

Para realçar aspectos dessa mudança, dado que informam a agenda que promoverá a orientação ideologicamente inversa, é necessário destacá-los na PC até há pouco vigente.

Nossa universidade é um enclave erigido, numa sociedade controlada por uma classe proprietária conquistadora, escravocrata, periférica e predatória, à imagem e semelhança das universidades dos países centrais. Lá, seu entorno econômico-produtivo condicionou as (e se beneficiou das) agendas de ensino e pesquisa por elas exploradas.

Mediante um efeito de transbordamento, ocorreu um aumento do bem-estar derivado da produção de bens e serviços de preço cadente e qualidade crescente, a empregos melhor remunerados e ao imposto sobre o lucro associado ao sucesso tecnocientífico das empresas que em parte retornava à sociedade como competitividade sistêmica.

Aqui, a renovada opção economicamente racional da classe capitalista periférica, de concentrar-se na exportação de bens primários e numa industrialização mimética e dependente, engendrou empresas que prescindem do resultado cognitivo da emulação daquelas agendas de ensino e pesquisa. O ganho dessa classe provém da expropriação do território e da extração de suas riquezas, e da apropriação, intermediada pelo “seu” Estado, do excedente socialmente gerado. E, o lucro, mais da exploração da mais-valia absoluta do que da relativa.

A elite científica, que mais do que lá controla a política cognitiva, cedo adicionou ao viés cientificista e de oferta de conhecimento para a empresa (típico e quase exclusivo do modelo que emula) outro objetivo: o de vincular-se com ela. Pretensiosamente visualizado como virtuoso ao ponto de mudar o comportamento empresarial revertendo sua baixa propensão à P&D e tornando relevante a contribuição da universidade, o viés vinculacionista conferiu à PC uma abrangência e expectativa de interação sistêmica entre os “mundos” da ciência e da tecnologia mundialmente precursoras.

O atual governo não acredita nessa expectativa nem numa possibilidade de alteração do comportamento empresarial. Parece ter compreendido, baseado no inferido há sessenta anos pelos Estudos de Ciência, Tecnologia e Sociedade latino-americanos e no fundamentado pela evidência empírica agora disponível, que ele é economicamente legítimo e racional. Além disso, entendeu que ele não necessita dessa alteração para implementar seu projeto político.

Por isso, diferentemente dos nacional-desenvolvimentistas que acreditaram na funcionalidade do viés cientificista-ofertista ou que toleraram seu custo desproporcional ao resultado que o vinculacionismo produzia, este governo e seus cientistas de extrema direita estão – previsível e diligentemente – desmontando o arranjo institucional da pesquisa e da pós-graduação. Ao transformar o racional e sistemático desdém da empresa pelo pessoal treinado para a pesquisa num “êxodo de cérebros”, estão intencionalmente “comprando uma briga”.

Caso se mantenham no poder, e dado que a tropa de choque que lhes apoia provém da milícia e das igrejas pentecostais e não da casa grande onde habita a elite científica, eles se sentem à vontade para matar por inanição esse arranjo “zerando” o recurso que recebia.

A pesquisa universitária, cujo resultado (desincorporado e incorporado em pessoas) é uma mercadoria de valor aviltado na periferia neoliberalizada, e a formação de pós-graduados, cuja absorção via inbreeding, além de prejudicial para o mercado educacional, é “perigosa”, não terão porque seguir subsidiadas.

Os ingentes apelos à sociedade da elite científica para defender a sua PC não sensibilizam os empresários que ela sempre buscou beneficiar: não há um sequer que tenha se manifestado. O mesmo vale para a classe média; que dirá para os excluídos, onde o analfabetismo funcional que beira os 50% e a fome que aumenta, não deixa espaço a PC.

Em relação ao componente “inovação” da PC é provável que o que realmente interessa, a compra de máquinas e equipamentos, seja facilitada. Em relação ao da P&D, atividades que interessam a elites de poder econômico ou político serão seletivamente apoiadas como sucedeu em espasmos nacional-desenvolvimentistas da PC quando arranjos ad hoc “embutiram” virtuosamente aqueles dois vieses. Colegas empreendedores da parcela da elite científica engajada na atual PC já estão se candidatando a impulsar esses novos arranjos.

Desafios da política cognitiva solidária

São dois os maiores desafios dessa PC que devem informar sua agenda.

O primeiro, situado no plano global, é causado por vetores disruptivos de natureza ecológica, energética, tecnocientífica, cultural, de intensa concentração de renda e riqueza, adoecimento físico e psíquico sistêmico, derivados do acirramento das contradições do capitalismo.

Eles vêm causando um generalizado questionamento do perfil de consumo. O que tem levado à consciência crescente da necessidade de mudar do perfil da produção de bens e serviços. E, contrariando a ingênua expectativa de muitos, à percepção de que não está ao alcance da empresa mudar a forma como são produzidos. Seu comportamento, além de basear-se num cálculo individual de rentabilidade microeconômico, está subordinado à lógica do mercado; e uma tentativa de contrariá-la levaria à sua falência.

A inadequação da empresa para promover a mudança no perfil da produção vem gerando a proposição de arranjos econômico-produtivos alternativos como os associados à Economia do Comum, e a Economia de Francisco (e, na América Latina, à Economia Social, Popular, ou Solidária).

Uma pressão por uma terceira mudança – no padrão de geração de conhecimento tecnocientífico – surge do entendimento de que esses arranjos precisam de uma inédita plataforma cognitiva de lançamento. E que ela terá que se diferenciar da tecnociência – e aqui se inclui tanto as ciências (Exatas, também conhecidas como hard ou “desumanas” e Humanas, também conhecidas como soft ou “inexatas”), as tecnologias (de ponta ou rombudas, altas ou baixas), e uma infinidade de conhecimentos (que vão desde os populares ou empíricos, até aos religiosos) – usada ou gerada pela empresa, a Tecnociência Capitalista.

Considerada indispensável para promover essas mudanças, ela é epitomada no Norte como Inovação Social, Frugal, Responsável, etc. (na América Latina, como Tecnologia Social e, no âmbito da esquerda brasileira, crescentemente como Tecnociência Solidária). Por ser uma utopia não materializada nem mesmo no âmbito do socialismo real, ela carece de uma rota de implementação e de um marco analítico-conceitual consistente; mas, como se vê adiante, é o pivô da agenda aqui proposta.

O segundo desafio se situa no plano nacional e tem a ver com o grau de subutilização da nossa força de trabalho – a nossa população em idade ativa (PIA) – de 180 milhões de pessoas. Especialmente, com o fato de que destas somente 30 milhões têm carteira assinada e de que menos de 1/5 trabalham na indústria manufatureira (que muitos ainda consideram passível de ser alvo de um esforço de reindustrialização).

Estima-se em mais de 80 milhões as pessoas que nunca tiveram e nunca terão emprego. O analfabetismo funcional da maioria delas e as tendências tecnocientíficas que decretam sua “inempregabilidade” projetam, para os que desde a esquerda não visualizam a possibilidade de arranjos econômico-produtivos alternativos à empresa, um futuro de socialismo ou barbárie.

O fato de que este desafio reforça ainda mais a centralidade das propostas da Economia Solidária e da Tecnociência Solidária identificadas no plano global justifica seu rebatimento na agenda.

Uma agenda para a política cognitiva solidária

Até que se consolide um arranjo institucional que contemple sistemicamente essas duas propostas internalizando uma nova cultura de PC, o campo dos Estudos de Ciência, Tecnologia e Sociedade terá uma importância crucial.

@s integrantes do campo que, centrados na universidade, adquiriram envergadura através do contato com professor@s e alun@s das ciências duras, das atividades teóricas e práticas de extensão, do engajamento nos movimentos ambientalistas, feministas e antirracistas, e da crítica ao inovacionismo que contagiou o tripé ensino, pesquisa e extensão, serão o embrião de arranjos que funcionarão como os institutos de pesquisa que, na industrialização via substituição de importações, implementaram o viés vinculacionista.

Esse arranjo estará focado na viabilização cognitiva de uma reconversão industrial (e não de uma reindustrialização que seguirá privilegiando injustificadamente a empresa privada) orientada à produção de bens e serviços de natureza industrial, em especial os de uso coletivo ou comum, os que atendem aos mais pobres e os que possam ser alvo da compra pública, por redes de Economia Solidária.

É para a consideração dess@s colegas que aponto três competências (entendidas como capacidade de mobilizar recursos de diversos tipos) que a agenda da PC solidária deve alavancar.

A primeira, é a de identificar as demandas tecnocientíficas embutidas nas necessidades por aqueles bens e serviços. E de elaborar rotas de adequação sociotécnica para o reprojetamento da Tecnociência Capitalista coerentes com a propriedade coletiva dos meios de produção e a autogestão que caracterizam as redes de Economia Solidária que irão produzir, comercializar ou consumir esses bens e serviços.

A segunda competência é ainda mais difícil e mais exigente de capacidades latentes nas nossas instituições de ensino e pesquisa, como a interdisciplinaridade e a dialogicidade freiriana. É a de identificar no amplo, diversificado e valioso estoque de conhecimentos tácitos daqueles 80 milhões de quase analfabetos funcionais, aquilo que nos pode conduzir ao Bem Viver. E que deve ser codificado para conversar com o denso e variado potencial tecnocientífico dessas instituições para, em conjunto, processar aquelas demandas cognitivas.

A terceira, é a de garantir que esse arranjo institucional promova, de modo solidário e fraternal, pela via da interação d@s integrantes de nossas instituições de ensino e pesquisa junto @s trabalhador@s dos empreendimentos solidários os quatro movimentos – conscientização, mobilização, participação e empoderamento – indispensáveis para a crescente autonomização que merecem.

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2 comentários para "Política Cognitiva Solidária e o Brasil em reconstrução"

  1. Ricardo T. Neder disse:

    De fato, mais do que uma necessidade, um imperativo a reconstrução da pesquisa, extensão e ensino no Brasil na era pós-neoliberal no sentido que o autor defende com detalhes como uma nova política cognitiva (educação, ciencia e tecnologia articuladas). O que enseja a reconstrução de uma área ministerial da Educação associada com a da Pos-Graduação, Pesquisa e Inovação para serem operacionalizadas como Política Nacional de Extensão e Residência. São muitas as saídas – quando as condições políticas o permitirem – para realizar o que o Autor defende. Um política cognitiva para a Economia dos Setores Populares (ESP). Isto porque num país como o Brasil, onde vivem de ocupações precárias mais de 55% da população ocupada. Neste cenário, deve ser imperativa a politica cognitiva de requalificação dos 14 milhões de desempregados e de qualificação do contingente de 1 milhão de pessoas que ingressam no mercado de trabalho a cada ano. Diante de um quadro limitado (a 30-40 milhões) de emprego formal assalariado regular, é cada vez mais viável o desenvolvimento da tecnociência solidária aplicada à economia solidária, entendida como empreendimentos associativos e em cadeias articuladas. Fontes de financiamento para estas atividades não faltam: FAT (Fundo de Apoio ao Trabalhador; Sistema S com participação dos sindicatos, e não menos importante, a reconstrução do Ministério do Trabalho, associado a atribuições de fomento a Emprego e Economia Solidária.

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