As catracas da internet e a batalha pelo Comum

Termina, hoje, o Fórum de Governança da Internet, que reúne de lobistas do Vale do Silício a ativistas da cultura digital. Em disputa, dois conceitos de liberdade: a de bem-comum e pluralidade e o das Big Techs ditando todas as regras do jogo

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Conhecido por seu acrônimo em inglês, IGF, o Fórum de Governança da Internet começou no dia 6 de dezembro e acabou hoje dia 10. Trata-se de um encontro multi-setorial de discussão de políticas públicas para Internet. Desta vez, o fórum anual aconteceu de forma híbrida, na Polônia. Entre lobistas do Vale do Silício, diplomatas, ativistas da cultura digital, hackers, engenheiros, cientistas da computação e pesquisadores do direito e das ciências sociais, esteve presente, como havíamos de esperar, o secretário-geral da ONU, António Guterres.

As novas formas de regulação da Internet, observadas desde seu surgimento, estão ganhando um corpo mais definido na medida em que essa tecnologia cibernética tem se tornando cada vez mais ubíqua. Como a eletricidade no passado, a tendência da Internet é “desaparecer” do debate público ao fazer cada vez mais parte da nossa rotina.

Antes de avançar na apresentação de três argumentos básicos sobre a dita “governança da Internet”, gostaria de fazer dois comentários:

1o O desenvolvimento da Internet deve-se em grande parte ao programa de pesquisa multidisciplinar liderado pela cibernética nos anos 50 e 60. Programa esse que surgiu em resposta ao processo de especialização da ciência que já havia se intensificado com os esforços de guerra mobilizados pelos Estados-nação desde a 1Guerra, mas que se intensificou ainda mais durante a 2Guerra. A comunidade técnica e científica também foi “alistada” pelo Estado-nação nessa época. A história recente da computação nos mostra claramente esse agenciamento. Norbert Wiener (o “pai” da cibernética), Claude Shannon (o “pai” da teoria matemática da informação), Alan Turing (o “pai” da computação) foram todos recrutados na academia para desenvolver pesquisas na defesa, entre 1939-1945.

2 o Essas novas formas de regulação ou institucionalização da Internet levam um nome: “governança”. Lembremos que essa palavra foi empregada pela primeira vez pelo Banco Mundial, na década de 1990, para descrever (e por que não prescrever!) uma forma de governo que não se limitasse ao poder exclusivo de ingerência do Estado-nação. Governança seria então algo como um “governo sem Governo” (este último, com a 1letra em maiúscula).

Daí também o consequente emprego de uma outra palavrinha que costuma ser muito empregada no debate sobre regulação da Internet: multi-setorialismo. Governança e multi-setorialismo são palavras que estão na ponta da língua de quem frequenta as panelinhas internacionais e nacionais da governança da Internet – um mundo à parte que se desdobra em muitos outros… Para citar apenas dois espaços de governança da Internet no plano internacional, temos de um lado o IGF que acabou se configurando como uma instância para fomentar o debate sobre regulação da Internet e as reuniões da ICANN ou Corporação para atribuição de nomes e números de domínio onde de fato se bate o martelo.

Para fechar esse último comentário, é preciso lembrar de um certo imaginário em torno da Internet que tem atravessado muitos dos discursos que circulam nesses espaços de regulação. Esse imaginário tem suas origens no neoliberalismo da década de 1990, quando se criou um certo consenso de que a Internet era democrática per se e deveria permanecer sem regulação, “livre” da burocracia do Estado que atrofiaria sua inovação permanente… Para seu desenvolvimento saudável, a Internet teria de seguir então um modelo de regulação privatizado.

Não temos tempo aqui de entrar nos detalhes, mas a literatura crítica, mostra que a chamada governança multi-setorial da Internet, que deveria incluir representantes de setores sociais distintos (Estado, empresas, sociedade civil organizada, academia, etc.), tem sido regulada, na realidade, por um grupo muito restrito de empresas monopolistas dos Estados Unidos, entre elas as que formam o grupo GAFAM (Google, Apple, FaceBook, atual Meta, Amazon e Microsoft).

Gosto de pensar a regulação da Internet inspirando-me na tese de Karl Marx segundo a qual “toda forma de produção forja suas relações jurídicas, sua forma de governo”, isto é, suas próprias formas de regulação (esse insight tá lá na página 60 dos Grundrisse da edição da Boitempo).

Daí ser imprescindível uma incursão à esfera do modo de produção dos protocolos da Internet. Em outras palavras, é preciso olhar para como essas tecnologias tornam possível a interoperabilidade da “rede de todas as redes”. Mas o que são exatamente os protocolos da Internet?

Protocolos da Internet não são propriamente códigos de software, mas uma linguagem numérica e textual que faz a interoperabilidade acontecer e podem ser encarados como uma espécie de “acordo” entre redes de computadores à semelhança de um contrato informal, baseado na palavra, celebrado apenas com um aperto de mãos. Um contrato, em certo sentido, “fora da lei”, mas não ilegal aos olhos do Estado-nação. Como afirma a professora Laura DeNardis, “protocolos não são necessariamente validados pela lei, embora nunca tenham deixado de regular o comportamento humano”.

Pois bem, agora vamos finalmente aos três argumentos sobre governança da Internet que gostaria de expor aqui por ocasião do IGF de 2021.

1o A Internet pode ser descrita como um conjunto de protocolos técnicos e políticos. Mas por que políticos? Protocolos são técnicos e políticos porque controlam tanto o fluxo de dados quanto as decisões que definem o modo mesmo como a Internet funciona. Só uma rápida observação: a Internet tem múltiplas camadas (de hardware, software e conteúdo). Estou falando agora apenas de sua camada software.

2o Esse conjunto de protocolos tecnopolíticos encerra uma contradição. Se na Web, referente à camada de conteúdo, a experiência de comunicação entre seus usuários se dá de modo distribuído (o fluxo de dados na rede é descentralizado) e observamos uma grande quantidade de códigos abertos, na camada software observamos o contrário: sua gestão se dá de maneira altamente centralizada, através de instituições técno-burocráticas privadas cuja jurisdição encontra-se em países do norte global, sobretudo nos Estados Unidos, como é o caso, por exemplo, da ICANN [Corporação da Internet para Atribuição de Nomes e Números], regida pelas leis da Califórnia.

Essa instituição privada transnacional, formada por representantes dos interesses das big techs, dos Estados-nação e da sociedade civil organizada, controla os protocolos que fazem a interoperabilidade da rede acontecer, os chamados recursos críticos da Internet, os nomes e números de domínio. E como a ICANN faz a rede não cair? Através de uma tecnologia de endereçamento (o DNS ou domain name system) cuja arquitetura é hierárquica e centralizada. Pra quem nunca ouviu falar da ICANN, pense nos “.com”, “.net”, “.edu”, “.org”  etc. O mais famoso, o “.com”, por exemplo, é um dos domínios explorados comercialmente pela Verizon – empresa estadunidense bilionária que fatura muito com o aluguel deste nome de domínio em todo o mundo.

3o É importante notar que essa lógica protocolar da Internet inscreve-se em um quadro histórico mais amplo, relativo ao surgimento de uma razão de Estado que ainda nos é contemporânea: a “governamentalidade neoliberal”, tal como descrita pelo filósofo francês Michel Foucault. Afinal, foi o liberalismo que introduziu a questão da liberdade no interior da Razão de Estado transformando-a num imperativo das novas práticas de governo. Com o deslocamento da economia do espaço doméstico (gestão da casa) para o espaço comum (gestão do território e da população) vemos inaugurar uma das orientações fundamentais do governo moderno e contemporâneo: a nova missão do Estado é garantir a liberdade, mas de que liberdade estamos mesmo falando? Da liberdade concorrencial no capitalismo monopolista.

Por fim, gostaria de fazer um último e rápido comentário. Há pouco tentei chamar a atenção para o fato de que devemos olhar para o modo como os protocolos da Internet são firmados. É verdade, mas devemos olhar para essas infraestruturas digitais sem perder de vista os cabos de transmissão e os provedores das empresas que coletam, armazenam e processam nossos dados por meio da Internet. Para compreender a economia das plataformas digitais como um todo é preciso articular as peças do quebra-cabeça digital que faz mover o capitalismo no século XXI. A Internet não se reduz ao GAFAM, muito embora este grupo de big techs dite, muitas vezes, a regras do jogo.

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