Palantir, o braço digital do fascismo tardio

Corporação do bilionário Peter Thiel multiplica seu capital fornecendo aos EUA e Israel sistemas que identificam quem deportar ou matar. Seus anúncios pregam o supremacismo do Ocidente. Conexão com Trump assegura contratos e imunidade

Arte: Dave Mckenna
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Por Alberto Toscano, no Contretemps | Tradução: Antonio Martins

Uma nova campanha de recrutamento surgiu, há alguns meses, nos campi das universidades mais prestigiadas dos EUA. Na Universidade Cornell em Ítaca (uma pequena cidade universitária situada a cerca de 280 km a noroeste de Nova York) e na Universidade da Pensilvânia, na Filadélfia, pôsteres sombrios exibidos em pontos de ônibus mostravam um alerta ameaçador: “A hora da verdade chegou para o Ocidente”. Eles acusavam os gigantes da tecnologia de negligenciar o “interesse nacional” ao decidirem “o que deve ser construído”.

Em contrapartida, a Palantir1, contratada de defesa especializada em análise de dados e autora desses pôsteres, declarava que não se limitava a criar produtos tecnológicos “para garantir o futuro da América”, mas sim “para dominar”.

A mensagem implícita desses anúncios ecoa a convicção dos líderes da Palantir — incluindo o fundador Peter Thiel (1967) e o executivo-chefe Alex Karp (1967) — de que a verdadeira missão do Vale do Silício é consolidar a supremacia militar dos EUA e do Ocidente: uma nostalgia reacionária da fusão entre Estado, engenharia e capital que marcou a Guerra Fria.

Nessa versão do ultranacionalismo tecnológico, devolver a grandeza aos Estados Unidos significa não só dominar adversários estrangeiros, mas também lançar uma ofensiva contra o “capital woke”, o consumismo considerado afeminado e um sistema universitário voltado à justiça social e à diversidade. (Os pôsteres da Palantir foram divulgados em paralelo a uma nova iniciativa para atrair estudantes do ensino médio com excelentes notas, oferecendo-lhes uma bolsa de quatro meses para “escapar do doutrinamento” do ensino superior.)

Pôster do ultranacionalismo tecnológico da Palantir: “Chegou o momento de acerto de contas para o Ocidente. | Nossa cultura caiu no consumismo superficial, abandonando o propósito nacional. Pouquíssimos no Vale do Silício se perguntaram o que deveria ser construído — e por quê. | Nós nos perguntamos”

A Palantir tem motivos de sobra para embarcar nessa onda de contratações. Apesar de seus críticos terem comemorado quando suas ações caíram brevemente, após os anúncios das tarifas aduaneiras do governo Trump, seu valor triplicou desde as eleições presidenciais dos EUA, em novembro de 2024. E o talento da empresa para cultivar relações de alto escalão na segurança nacional lhe rendeu uma enxurrada de contratos governamentais ligados ao autoritarismo crescente de Trump.

A Palantir já se aliou à SpaceX, empresa de Elon Musk (1971), e à Anduril2, contratada especializada em IA e robótica, para começar a construir o “Golden Dome”, “Escudo de Ouro” de Trump — uma versão norte-americana do sistema de defesa aérea israelense Iron Dome. Também colabora com o DOGE (Departamento de Eficiência Governamental) criado por Musk para estabelecer uma interface de programação de aplicativos3 que permita ao Departamento de Segurança Interna vasculhar dados da Receita Federal e identificar contribuintes indocumentados para deportação.

Em abril de 2024, a Palantir — que mantém parcerias de longa data com o exército, a polícia e os serviços de controle de fronteiras dos EUA — garantiu um contrato de US$ 29,8 milhões com a ICE (polícia antiimigrantes) para aprimorar seu “Sistema Operacional do Ciclo de Vida da Imigração”4, um sistema distópico que fornece informações detalhadas sobre imigrantes que o governo deseja monitorar, deter e deportar.

A empresa também se prepara para reorganizar o sistema de gestão de investigações da ICE, rastreando populações-alvo por meio de centenas de categorias de dados — desde cor dos olhos e tatuagens até endereços profissionais e números de previdência social. Ex-funcionários alarmados com o apoio ao programa repressivo de Trump publicaram recentemente uma carta aberta intitulada “The Scouring of the Shire” (A Limpeza do Condado)5, alertando que a Palantir (e as gigantes de tecnologia em geral) “normaliza o autoritarismo sob o disfarce de uma ‘revolução’ conduzida por oligarcas”.

O trabalho da Palantir em Pesquisa & Desenvolvimento fascista não se limita aos EUA. A empresa e Karp, seu executivo-chefe declararam abertamente seu apoio ideológico e material a Israel durante o genocídio em Gaza. Numa reunião extraordinária do conselho em Tel Aviv (janeiro/2024), a empresa destacou sua parceria estratégica com o ministério da Defesa israelense, fornecendo tecnologias bélicas como sua plataforma de IA — supostamente usada para decisões em tempo real em zonas de guerra via chatbots automatizados.

A direção da Palantir deixou claro que sua visão de supremacia ocidental inclui a defesa intransigente do sionismo no exterior e do nacionalismo de extrema direita em seu próprio país.

Por meio de tudo isso, a Palantir tornou-se o epítome do alinhamento da indústria tecnológica com o ultranacionalismo autoritário — indo muito além das saudações nazistas de Elon Musk, seu pró-natalismo de tabloide e seus trolls “dark MAGA”6. Nas palavras do pesquisador Jathan Sadowski: “Desde sua fundação, a Palantir busca fornecer a ‘camada ontológica’ do fascismo, materializando seus objetivos ideológicos”.

Em outras palavras, a Palantir cria infraestrutura digital a serviço das múltiplas formas de violência e controle estatal que sustentam o autoritarismo contemporâneo — desde softwares que facilitam deportações em massa até IAs usadas em guerras contra povos colonizados.

Menos de um mês após a volta de Trump ao poder, Karp lançou The Technological Republic: Hard Power, Soft Belief, and the Future of the West — mistura curiosa (e verbosa) de manifesto neoconservador e propaganda corporativa. No centro do livro está a versão tecnológica do velho lamento da direita: para Karp, as elites liberais “woke”, estudantes militantes e até intelectuais como Edward Said (1935-2003) teriam “emasculado” o Ocidente, enfraquecendo seu ímpeto tecnológico justamente quando enfrenta a revolução da IA e o avanço da China.

Mas por trás dessa retórica estereotipada sobre guerra cultural, é fácil discernir a raiva de Karp contra a resistência organizada dos trabalhadores do setor tecnológico — como as campanhas #NoTechForICE7 e a Tech Workers Coalition — que combatem o projeto de construir o arsenal do fascismo. Aqui, a ideologia se funde com um argumento comercial.

A Palantir não só lucra com o medo — seja de migrantes, da IA ou de futuras guerras travadas com enxames de drones — que leva governos a abrir os cofres públicos. Também tira partido da onda midiática em torno de seu modelo comercial distópico, que promete fundir análise de dados e violência estatal.

Seu valor na bolsa quintuplicou no último ano, ultrapassando US$ 290 bilhões — muito além do crescimento real de receita. Essa lacuna é preenchida por especulações sobre um futuro que a Palantir retrata como uma escolha entre supremacia norte-americana ou dominação chinesa.

Por trás dos lamentos de Karp sobre uma crise ocidental de “crença”, o que ele realmente quer que aceitemos é a Palantir: uma nova interface reluzente para o velho comércio de racismo, repressão e guerra.


Notas

1A Palantir Technologies Inc. é uma empresa norte-americana fundada em 2003 e listada na Nasdaq. Fornece plataformas de análise de dados em massa (Gotham, Foundry, AIP) para agências governamentais (defesa, inteligência, polícia, imigração). Em 2024, faturou US$ 2,87 bilhões, com lucro de US$ 214 milhões no 1º trimestre de 2025. Suas ações saltaram 73% desde o início do ano, elevando sua capitalização para quase US$ 300 bilhões – colocando-a entre as 40 empresas mais valiosas do mundo. Essa explosão financeira é sustentada por contratos lucrativos com a Immigration and Customs Enforcement — ICE, a polícia antiimigrantes dos EUA — (US$ 30 milhões em abril) e o Pentágono (US$ 178 milhões só em março), além de seu papel central no desenvolvimento da IA. É um sucesso econômico alarmante para ativistas de direitos humanos, que denunciam vigilância em massa e tendências autoritárias.

2 A Anduril Industries é uma empresa norte-americana fundada em 2017, especializada em sistemas autônomos de defesa (drones aéreos e submarinos, vigilância, lançadores de foguetes), controlados por sua plataforma de software “Lattice”. Em junho de 2025, sua avaliação atingiu US$ 30 bilhões após captação excepcional de US$ 2,5 bilhões. Atualmente colabora com gigantes da defesa como a Rheinmetall para produzir drones na Europa, e possui ampla carteira de contratos (defesa dos EUA, marinha australiana etc.), consolidando crescente poder militar e industrial.

3 Em abril de 2025, a revistaWiredrevelou que a Palantir colabora com o DOGE (Departamento de Eficiência Governamental, iniciativa de Elon Musk para desenvolver um megaportal acessando todos os bancos de dados da IRS (agência tributária dos EUA). O projeto centraliza dados sensíveis – nomes, endereços, números de previdência social, declarações fiscais -, usando o software Foundry da Palantir como hub único de leitura dos sistemas da IRS, gerando preocupações sobre concentração e segurança de dados privados. Ver Makena Kelly, “Palantir Is Helping DOGE With a Massive IRS Data Project”, Wired, 11/04/2025.

4 Immigration Lifecycle Operating System (ILOS): plataforma digital criada pela Palantir para a agência ICE, usada para catalogar, rastrear e facilitar a deportação de migrantes. Apresentada como ferramenta de “eficiência”, exemplifica a deriva securitária e racista da tecnologia a serviço de políticas migratórias repressivas e desumanizadoras. Ver https://notechforice.com.

5“The Scouring of the Shire” (“A Limpeza do Condado”) é o penúltimo capítulo de O Senhor dos Anéis, onde os hobbits retornam para encontrar o Condado corrompido por Saruman. Através de laços comunitários, derrubam esse regime opressivo, cumprindo dupla missão moral: destruir o Anel e defender seu lar.

6 O termo “dark MAGA” designa um movimento político online, apoiado por Elon Musk e figuras da tecnologia, que combina estética gótica (bonés pretos, montagens vermelho/negro, olhos laser em retratos de Trump) com ideias abertamente fascistas. Usa símbolos como o Sonnenrad (“Sol negro” nazista originalmente usado pelas SS) e runes das SS, reforçando imagens de extrema-direita radical em memes virais que reinventam a retórica MAGA com códigos neonazistas.

7A #NoTechForICE é campanha iniciada em 2018 pela organização Mijente para encerrar contratos entre empresas de tecnologia (como Palantir, Amazon e Microsoft) e a agência norte-americana ICE (polícia antiimigrantes), denunciando o uso de tecnologias de vigilância e bancos de dados em políticas de deportação e detenção de migrantes. Ver https://notechforice.com.

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