Não há mercado após as Big Techs

Como as gigantes tecnológicas do Ocidente liquidaram a “liberdade de escolha” e a “concorrência”, criando imensos latifúndios virtuais em que são monopolistas. Por que a saída não é a volta das lógicas mercantis, mas pensar além delas

Imagem: Zoran Svilar/TNI
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Por Kean Birch para o Transnational Institute | Tradução: Maurício Ayer

Este artigo é parte da série de análises publicada pelo respeitado Transnational Institute que juntas constituem um aprofundado e instigante estudo sobre as configurações do poder na era das Big Techs, com suas plataformas e algoritmos. O relatório completo você encontra aqui State of Power: Digital Power 2023. Em parceria exclusiva, Outras Palavras publica as traduções originais desses textos. Leia outros textos da série aqui.

O poder das Big Techs não se deve apenas ao seu tamanho, mas ao fato de que elas coletam, controlam e monetizam as informações necessárias para o funcionamento dos mercados. Elas se tornaram mercados voltados para si mesmos. Para controlá-las será preciso pensar além da simples regulação.

O lema original do Google era “não seja mau” (“don’t be evil”). Hoje, a empresa se esforça para viver de acordo com esse nobre princípio, como demonstra amplamente um processo judicial recente e em andamento movido contra o Google. O documento de litígio mais recente afirma que “procura garantir que o Google deixe de ser mau”. Você pode não ter ouvido falar desse processo, mas ele oferece uma visão importante não apenas do Google, mas também de todo o edifício que as Big Techs construíram na última década, e que gradualmente tomou conta de nossas economias e minou nossos mercados.

O caso contra o Google está sendo liderado pelo estado do Texas, juntamente com outros 16 estados norte-americanos. Trata-se de um processo antitruste chamado In Re: Litígio antitruste de publicidade digital do Google e foi anunciado em 2020 pelo procurador-geral do Texas, tendo sido a sua versão emendada mais recente publicada em janeiro de 2022. O processo corre juntamente com um outro caso antitruste, mais conhecido, movido contra o Google pelo Departamento de Justiça dos EUA no final de 2020.

No cerne do processo In Re: Publicidade digital do Google consta a alegação de que o Google está monopolizando as tecnologias e informações de mercado que sustentam a publicidade programática on-line, incluindo o uso de nossos dados pessoais para tentar nos vender coisas. A publicidade programática é uma besta emaranhada no sistema que o Google monta como comprador e vendedor de espaço publicitário online. De maneira similar, o Facebook (agora Meta) também figura no centro desse mercado de publicidade online.

Aqui vai uma breve descrição de como a publicidade programática funciona e como esse mercado tem sido explorado.

Vamos fazer de conta que você é um anunciante: digamos que você queira vender seu livro – embora possa ser qualquer produto ou serviço – então provavelmente deseja alcançar pessoas que realmente vão querer comprá-lo. O Google se oferece para conectar você ao espaço de publicidade on-line mais adequado para essa finalidade por meio de sua “troca de anúncios”. A empresa consegue fazer isso coletando e agregando uma enorme quantidade de dados pessoais nossos, a partir de nossas pesquisas, e-mails, smartphones, terceiros usando seus aplicativos analíticos e assim por diante. Na grande maioria dos casos não temos consciência de estar entregando nossos dados pessoais; isso está oculto nas letras pequenas dos termos e condições que a maioria das pessoas simplesmente assina para usar produtos e serviços digitais.

Usando nossos dados pessoais, o Google pode fazer inferências sobre nossas preferências pessoais – por exemplo, que eu gosto de ficção científica – e decisões – provavelmente clicarei em um anúncio online. Com essas informações, eles automatizam a compra e venda de espaço publicitário nos microssegundos entre a abertura de uma página da Web e a visualização de um anúncio. O Google vende espaço publicitário on-line para você, que é o anunciante, de modo a direcionar seu anúncio com exatidão para cada pessoa que o visualizará. Um terceiro, como um jornal, vende espaço publicitário em seu site para o Google. Em outras palavras, o Google compra e vende espaços publicitários, também fazendo a mediação entre compradores e vendedores por meio de um sistema de leilão que ele controla – e do qual tira a sua fatia. 

O processo do Texas faz duas alegações críticas:

  • Primeiro, que o Google e o Facebook conspiraram para monopolizar o mercado de publicidade online, excluindo assim os concorrentes do mercado; este acordo recebeu o codinome “Jedi Blue”.
  • Em segundo lugar, o Google lançou um programa secreto em 2013 chamado “Projeto Bernanke”, supostamente projetado para enganar anunciantes e editores de sites.

O Projeto Bernanke gira em torno do design do sistema de leilão do Google usado para comprar e vender espaço publicitário.

Os leilões podem ser concebidos de diferentes maneiras. Por exemplo, leilões usando lances selados são muitas vezes apresentados como uma característica fundamental da concorrência de mercado porque permitem que os atores do mercado revelem suas verdadeiras preferências sem medo de serem explorados ou de o sistema ser manipulado por outros atores do mercado. Isso porque ninguém vê os outros lances até que estes sejam revelados ao final do processo de leilão; portanto, ninguém pode alterar seu lance em função do que os outros licitantes apresentaram. Os leilões de lances fechados devem, então, ser o mecanismo mais eficiente para determinar preços “ideais” em uma economia de mercado.

Os economistas há muito procuram teorizar o melhor design para os leilões. William Vickery ganhou o famoso Prêmio “Nobel” por seu trabalho sobre os benefícios dos leilões de segundo preço, agora chamados Leilões Vickery. Um leilão de segundo preço é projetado para garantir que o maior lance vença, mas que pague o valor do segundo lance mais alto, incentivando assim os licitantes a revelarem suas verdadeiras preferências (ou seja, eles terão menos medo de dar lances). Há também leilões de terceiro preço, em que o maior lance pagará o valor do lance de terceiro maior preço.

Voltando ao Google e ao Projeto Bernanke. De acordo com o processo do Texas, o Google projetou sua troca de anúncios como leilões de segundo preço e disse isso a todos. No entanto, de acordo com a ação judicial, o Google “sub-repticiamente trocou o esquema do Google AdX de um leilão de segundo preço para um leilão de terceiro preço em bilhões de impressões por mês” [uma impressão é cada vez que o anúncio aparece numa tela].

Pode parecer complicado, mas não é. Basicamente, o Google disse aos anunciantes que eles pagariam o segundo lance mais alto e, aos editores, que estes receberiam o segundo preço mais alto. A alegação é de que, na realidade, o Projeto Bernanke mudou o sistema para que os editores recebessem o terceiro lance mais alto, enquanto o Google ficava com a diferença. De acordo com as acusações, isso redundou em uma perda de até 40% das receitas para os editores, sem que soubessem nada sobre isso. O Google então “reuniu” essas receitas extras e as usou para “inflar os lances dos anunciantes que fazem lances por meio do Google Ads para ajudá-los a ganhar impressões que, de outra forma, teriam perdido para os anunciantes que fazem lances por meio de ferramentas de compra que não são do Google”.

Como um comentarista observou, o Google basicamente cobrou a mais dos anunciantes e pagou menos para os editores, controlando as tecnologias e a arquitetura de preços de mercado; eles projetaram o mercado para beneficiar a si mesmos e expulsar os concorrentes.

Mercados e a longa cauda do neoliberalismo

A conclusão de tudo isso é que o controle que as grandes empresas de tecnologia, como o Google, exercem sobre as plataformas digitais permite que elas criem mercados da maneira que melhor lhes convier. A consequência da falta de transparência nessas plataformas é que os mercados podem se desviar consideravelmente das considerações dos pensadores pró-mercado e formuladores de políticas que dominaram a forma como entendemos a economia e a sociedade desde a década de 1970.

Frequentemente definida como “neoliberalismo”, os pressupostos subjacentes a essa visão de mundo podem ser descritos como um problema político-econômico e um projeto moral para redesenhar as sociedades para colocar os mercados no centro das tomadas de decisão, seja por governos, empresas ou indivíduos. Voltando ao trabalho de pensadores como Friedrich Hayek – o famoso economista peripatético austríaco – o neoliberalismo tem como premissa a ideia de que nenhuma agência (por exemplo, o governo) é capaz de coordenar a economia ou a sociedade porque lhe falta a capacidade cognitiva para processar todas as informações que individualmente produzimos e usamos para tomar decisões de todos os dias. Para Hayek e outros neoliberais, os mercados são os melhores processadores de informação para coordenar eficientemente nossas sociedades. Nas palavras de Hayek:

“A razão para este [problema econômico] é que os ‘dados’ a partir dos quais o cálculo econômico começa nunca são para toda a sociedade ‘disponíveis’ para uma única mente que possa elaborar as implicações e nunca poderão ser assim disponibilizados”.

Assim, os mercados são a melhor forma de coordenar a sociedade, pois são capazes de nos fornecer informações para fazer as decisões certas. Eles fazem isso por meio do mecanismo dos preços, no qual os preços são representantes de informações que nos dizem o que e quando produzir, quando mudar nossas preferências e a melhor forma de administrar nossos recursos coletivos. Os mercados são, neste enquadramento, ao mesmo tempo uma realidade factual e um mecanismo moral; eles nos informam como decidir e quais decisões são as melhores a serem tomadas.

Dentro dessa narrativa neoliberal, a informação se torna um componente crítico no funcionamento dos mercados. As pessoas não podem revelar suas preferências ou tomar decisões sem informação. A partir de Hayek, o problema da informação passa a permear grande parte do pensamento econômico ortodoxo. No entanto, é justamente no pensamento neoliberal sobre a informação que seus pressupostos sobre os mercados começam a desmoronar. Isso ocorre porque, pelo menos nas esferas política e jurídica, o pensamento neoliberal mudou, gradualmente, da visão de Hayek (de que as sociedades evoluiriam gradualmente em direção aos mercados e ao pensamento de mercado) para uma perspectiva em que simplesmente se presume que as sociedades operam como mercados, em que todos se comportam como se fossem agentes de mercado que respondem a incentivos, definidos por preços como representantes da informação.

Isso é maravilhosamente delineado por S.M. Amadae em seu livro Prisoners of Reason [Prisioneiros da razão]. Seu argumento básico é que o objetivo do pensamento neoliberal e da formulação de políticas é que, depois de descobrir o que os mercados devem fazer, então você não precisa mais deixar que os mercados surjam espontaneamente, à moda hayekiana. Em vez disso, você pode projetar mercados para obter o que eles precisam fazer para alcançar o resultado desejado das políticas.

E foi exatamente isso que aconteceu; as várias ideias sobre design de mercados ou mecanismos – como leilões de segundo-preço – ficaram associadas a suposições de quais deveriam ser nossos objetivos individuais e coletivos, de modo que os formuladores de políticas pudessem projetar mercados para esse fim. Assim, quando os governos procuram privatizar ativos públicos, ou desregular o fornecimento de eletricidade, ou leiloar o espectro das ondas de rádio ou da telefonia celular, eles estão usando o design de mecanismo. Os resultados são variados, às vezes geram enormes receitas governamentais (por exemplo, licenciamento do espectro UK G3), mas às vezes levam a problemas significativos (por exemplo, desregulamentação da eletricidade na Califórnia).

Esse tipo de mercado ou design de mecanismo tem uma história relativamente curta, que remonta ao trabalho de economistas como Vickery na década de 1960, mas foi somente na década de 1980 que a prática realmente decolou e se tornou um elemento básico da formulação de políticas. Os leilões de segundo e terceiro-preços, explicados acima, são um exemplo de como projetar mercados; tais leilões se configuram pelo pressuposto de que somos seres racionais e movidos por interesses, que buscam maximizar seus próprios ganhos, que por sua vez gerarão benefícios sociais coletivos. Por exemplo, supõe-se que os leilões de espectro de telefonia celular gerem o máximo possível de receita do governo, sem desestimular a inovação.

A chave, então, seria criar mecanismos de mercado que nos permitam revelar nossas preferências por meio da projeção de “arquiteturas de escolha”, como leilões, garantindo que seremos sempre verdadeiros quanto aos nossos desejos ao fazer escolhas. Muitas concepções contemporâneas de mercados – e não apenas a versão neoliberal – dependem dessa ideia de que os mercados trazem à tona informações com as quais podemos todos agir como indivíduos, sem a (suposta) interferência distorcida de um planejador central (por exemplo, o governo). O design de mercado, no entanto, realmente vira tudo isso de ponta-cabeça. Os projetistas de mercado podem criar os mercados que quiserem para alcançar os resultados que quiserem; preferências e decisões individuais são deixadas de lado, uma vez que os projetistas podem construir qualquer arquitetura de mercado de que precisem para nos incentivar a fazer o que eles desejam (por exemplo, aumentar as receitas, o bem-estar ou a eficiência).

A ascensão das Big Techs

Até relativamente pouco tempo atrás, não era efetivamente possível estender o design de mercado para além de um objetivo ou resultado específico. Tudo isso mudou, no entanto, com o surgimento das Big Techs, como Apple, Amazon, Alphabet/Google, Microsoft e Meta/Facebook. Elas transformaram a maneira como nossas economias e sociedades funcionam e, cada vez mais, não funcionam – com todo o medo em relação à desinformação, aos impactos cognitivos, a padrões obscuros e coisas do gênero. Voltarei a alguns desses pontos mais adiante.

Hoje, não há dúvida em afirmar que as Big Techs são os intermediários-chave em nossas vidas diárias e para as informações das quais dependemos: eles nos conectam uns aos outros, operam a infraestrutura que usamos para trabalho e lazer, nos fornecem bens e serviços úteis e muito mais. Grande parte dessa mediação depende de plataformas digitais, como aquelas que conectam você com outras pessoas (por exemplo, Uber), com conteúdos (por exemplo, YouTube) ou com anúncios (por exemplo, Facebook/Meta). Obviamente, elas não fazem isso por bondade do coração; em troca do que fornecem, tomam de nós os nossos dados pessoais, comerciais e de uso das plataformas, e transformam-nos em outros produtos, serviços e infraestruturas.

De maneira crescente, elas projetaram e reconfiguraram suas tecnologias, como plataformas digitais ou interfaces de programação de aplicativos, com o objetivo específico de coletar nossos dados em quantidades cada vez maiores, pois seu sucesso se tornou mais e mais dependente dos enclaves de dados. Esses enclaves representam os acervos de dados criados, à medida que se dissemina a influência das Big Techs, através de seu ecossistema de dispositivos, aplicativos, softwares e plataformas.

É difícil abarcar o tamanho total das Big Techs, ter uma noção mais clara de como a existência delas faz tanta diferença em nossas vidas em comparação com outras empresas. Até recentemente, as Big Techs estavam entre as cinco maiores empresas do mundo, com capitalização de mercado de mais de US$ 5 trilhões em 2020, representando quase 25% do mercado de ações dos EUA. Desde então, essas empresas decresceram em termos de tamanho de mercado, mas não porque tenham se tornado menos importantes em nossas vidas. De acordo com um relatório de 2020, resultado de uma pesquisa do Congresso dos EUA, 81% de todas as buscas em geral e 94% de todas as buscas em celulares usam o Google; 99% dos smartphones usam sistemas operacionais Android ou iPhone; 80% dos navegadores são Google Chrome ou Apple Safari; Facebook, Instagram, Messenger e WhatsApp têm, combinados, 2,47 bilhões de usuários ativos por dia; estima-se que 50% de todo o comércio eletrônico dos Estados Unidos passe pela Amazon; e Amazon, Microsoft e Google dominam a infraestrutura de computação em nuvem. As Big Techs são tão onipresentes que agora é difícil viver sem elas.

Capitalização de mercado das Big Techs (EUA, S&P 500). Fonte: https://journals.sagepub.com/doi/full/10.1177/20539517211017308

Enquanto os críticos, inclusive eu, debatiam se o neoliberalismo estava morto, moribundo ou renascendo após a crise financeira global de 2008, as Big Techs simplesmente pegaram a onda de dinheiro fácil desencadeada pelos bancos centrais com a flexibilização da liquidez [quantitative easing] para se estabelecer como os players dominantes em nossas economias. Isso foi especialmente verdadeiro no caso dos EUA, onde o Federal Reserve liberou mais dinheiro entre 2008 e 2010 do que em seus 95 anos de existência anteriores. O jornalista Christopher Leonard descreve as consequências negativas e não intencionais dessa política no livro Os senhores do dinheiro fácil. Como ele aponta, esse fluxo de dinheiro fácil resultou em um regime de juros baixos de uma década – estagnado apenas com o recente aumento da inflação – no qual os diretores dos bancos centrais esperavam que as empresas alavancassem o dinheiro barato para investir em novos ativos e empregos. Poucos o fizeram, preferindo usar o dinheiro para recompra de ações ou investimentos em bolhas de ativos, incluindo a florescente indústria de tecnologia, que teve um crescimento espetacular no financiamento de capital de risco.

Em contraste, as Big Techs colocaram esse dinheiro fácil em bom uso, sobretudo aumentaram seu estoque de ativos tangíveis, como data centers, cabos de alta velocidade e itens similares, o que lhes permitiu expandir suas atividades de coleta de dados e a capacidade de computação necessária para transformar esses dados em valor e consolidar seu poder de mercado. Amazon, Google e Facebook (Meta), em particular, aumentaram significativamente a participação de ativos tangíveis em seus balanços.

O verdadeiro pontapé inicial de tudo isso, no entanto, vem com a digitalização do design de mercado introduzida pela ascensão das empresas de Big Tech e seus ecossistemas de plataformas. Como Salomé Viljoen, Jake Goldenfein e Lee McGuigan apontam, o design de mercado foi turbinado por tecnologias algorítmicas viabilizadas pela coleta em massa de dados pessoais e a vasta capacidade de computação das Big Techs. Os autores discutem como o “design de mecanismo algorítmico ou automatizado” dá às Big Techs uma capacidade especial e sem precedentes de traçar o perfil de seus usuários, clientes, fornecedores e outros.

Em vez de se preocupar com os resultados das políticas, as Big Techs aplicaram o design de mecanismos para ganhar dinheiro, como ilustra o exemplo inicial deste texto, em suas várias plataformas e ecossistemas. Elas estão usando o design de mecanismos para incentivar tipos específicos de engajamento e impressões do usuário com e dentro de seus ecossistemas, incentivando-nos a passar mais tempo usando seus produtos e serviços.

Como designers de experiência do usuário observe que algo tão simples quanto a rolagem de tela constante, um recurso que define plataformas como Facebook, Twitter e Instagram, foi projetado e implementado precisamente porque as empresas sabem que leva a um comportamento viciante, mantendo nossa atenção grudada em nossas telas; o mesmo se aplica a notificações, “curtidas” e outras tecnologias de engajamento digital. E quanto mais tempo e atenção dedicamos às nossas telas, mais valor as Big Techs conseguem capturar a partir de nosso comportamento. Conforme argumentam Viljoen e seus colegas, ao projetar mercados dessa maneira, as Big Techs são capazes de cultivar e explorar as chamadas “assimetrias informacionais”, ou seja, as informações que as empresas possuem, mas seus usuários, não.

Desafiar as Big Techs?

Por causa de seu poder social e de mercado, as Big Techs enfrentam atualmente desafios crescentes ao seu domínio. Alguns deles são desafios coletivos, mas outros surgem das contradições inerentes e internas em suas próprias estratégias e operações.

O processo do Texas mencionado no início é apenas uma das muitas ações coletivas movidas contra as Big Techs, tanto por governos quanto por concorrentes. Esforços mais concentrados foram realizados por jurisdições soberanas para controlar o poder das Big Techs, alguns dos quais parecem mais eficazes do que outros. A União Europeia (UE), em particular, tem atuado nessa área conforme crescem as preocupações com os impactos anticompetitivos das Bigs Techs. Recentemente, a UE introduziu várias políticas e regulamentações, incluindo:

  • Lei dos Mercados Digitais estabelecendo regulamentos ex ante para controlar o comportamento das chamadas empresas “porteiras”, como as Big Techs. Ele proíbe certas ações, como combinar dados pessoais de plataformas com dados coletados para outros serviços. Entra em vigor em 2023;
  • Lei de Serviços Digitais, projetada para aumentar a transparência na publicidade on-line, reduzindo o conteúdo ilegal e a desinformação. Entra em vigor em 2024; e
  • Lei de Governança de Dados, para abrir e padronizar o compartilhamento de dados entre organizações, limitando a capacidade das empresas de acumular dados. Ainda está no legislativo.

Outros países e jurisdições também estão agindo, como a Austrália e os EUA, embora haja nesses locais um forte lobby das Big Techs e outras empresas baseadas em dados.

Um desafio diferente, porém, parece estar surgindo dentro das próprias empresas de Big Techs, ou seja, os crescentes efeitos contraditórios decorrentes de suas próprias operações e estratégias. Como qualquer pessoa que já usou seus produtos e serviços sabe, as ofertas das Big Techs estão se tornando muito menos úteis e até disfuncionais. Minhas experiências pessoais incluem: comprar via Amazon produtos desonestos, que são imitações ou fraudes; usar a pesquisa do Google, mas ter que rolar a página até a metade para evitar publicidade; navegar pelo Facebook, mas sendo o tempo todo desencorajado pela publicidade (alguém tem camisetas dos Cavaleiros Templários?); ter que alterar as configurações dos produtos da Microsoft por causa de algum efeito automatizado bizarro; e evitar a Apple como uma praga porque não quero ficar preso em um enclave.

Outros estão tendo experiências semelhantes – empresas orientadas por dados estão achando mais difícil atingir seus objetivos: por exemplo, empresas de carona como Uber e Lyft estão tendo que aumentar os preços para níveis iguais ou superiores aos das empresas de táxi; empresas de entrega de comida como Doordash ou Deliveroo têm causado danos aos restaurantes dos quais dependem para sua própria existência; e a Airbnb é atormentada por golpes e está transformando os mercados imobiliários de maneiras bastante problemáticas. E nem se fale em coisas como “fazendas de cliques”.

Geralmente, precisamos encontrar maneiras de limitar a coleta e o uso dos nossos dados pessoais e creio que haja um espaço político crescente para isso, pois as empresas que atuam com base em dados enfrentam uma gama crescente de problemas com seus modelos de negócio e inovação. Temos opções. Um caminho é canalizar sentimentos pró-mercado transformando nossos dados pessoais em nossa propriedade – o que provavelmente não resolverá nada, por mais atraente que pareça, pois é difícil determinar quem deve possuir quais informações. Outra opção é criar data trusts descentralizados, talvez administrados por governos ou agências públicas, fornecendo acesso a todo tipo de dados digitais e oferecendo, simultaneamente, a supervisão do uso – isso pode ajudar a resolver alguns problemas e abrir nossos dados para usos com os quais concordamos, mas não necessariamente impediria as Big Techs de acessar nossas informações pessoais. Uma terceira opção é criar sistemas descentralizados como cooperativas de dados ou comunas de dados, coletivizando nossos dados pessoais e permitindo mais supervisão e responsabilidade local – eles podem ser administrados por grupos, organizações ou comunidades específicas, mas exigiriam um esforço significativo para executar e gerenciar todas as preocupações de privacidade que as pessoas têm sobre seus dados pessoais.

Uma coisa é certa: veremos muito mais dados digitais em nossas vidas e, se quisermos usá-los para nosso benefício coletivo, precisamos encontrar maneiras de governá-los coletiva e democraticamente, em vez de deixá-los nas mãos de poderosas corporações para que façam o que quiserem.

Para concluir

O design de mercado sustentou a ascensão das empresas de Big Tech na última década. Uma nova gama de tecnologias digitais e algorítmicas permitiu que essas e outras empresas baseadas em dados monetizassem as próprias informações das quais os mercados são supostamente dependentes (por exemplo, quem quer comprar X, que pessoa Y pagaria para ter Z, quantas pessoas veem A); essas informações de mercado devem ser transparentes e verdadeiras para garantir a concorrência, mas estão cada vez mais guardadas e escondidas em enclaves de dados construídos pelas Big Techs para garantir seus monopólios. Portanto, em vez de simplesmente monetizar informações pessoais, as Big Techs foram muito além dos temores de “vigilância” de muitos pensadores críticos, como Shoshana Zuboff.

Hoje, no entanto, as Big Techs enfrentam desafios em diferentes frentes: de políticos e formuladores de políticas que desenvolvem novos marcos legais para reduzir o seu poder; e das contradições e disfunções internas em suas próprias operações. Tudo isso levanta a questão: os mercados voltarão com força total ou o que estamos vendo é o começo de algo novo? Um ponto importante para os ativistas, grupos da sociedade civil, organizações não governamentais (ONGs) e o público lembrarem em sua busca por ampliar a conscientização ou o engajamento com os governos para confrontar o poder das Big Techs é que, se não houver mais mercados, quando os reguladores retornarem às suas formas desatualizadas de entender o mundo para controlar as Big Techs não vai funcionar. Temos que pensar além do mercado.

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