Como Tio Sam tropeçou no Tik Tok

EUA parecem dispostos a tudo para derrubar uma rede social que está vencendo as norte-americanas, sob regras que as favorecem. Para alcançar o objetivo vale, inclusive, jogar na lata de lixo o discurso pela “liberdade de expressão”

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Por Paris Marx, na Jacobin Brasil | Imagem: Liu Rui, Global Times

Nos anos após a eleição presidencial dos EUA em 2016, plataformas de mídia social como Facebook, Instagram e Twitter estiveram envolvidas em uma série constante de escândalos. Mas, apesar de suas deficiências óbvias, parecia não haver alternativa. O palco estava montado para um desafiante quando o TikTok explodiu em cena em 2018, após sua fusão com o Musical.ly

O crescimento do aplicativo de compartilhamento de vídeos teve um impulso adicional durante a pandemia e desde então se tornou um ponto central na cultura global, pois seu algoritmo altamente eficaz leva os usuários — principalmente os jovens — a voltar constantemente a usá-lo.

É exatamente o tipo de história que a indústria de tecnologia e seus impulsionadores na mídia e no Estado normalmente comemoram: uma empresa de tecnologia lança um novo produto e atinge um crescimento maciço em alguns anos, promovendoforte concorrência para as empresas estabelecidas e criando uma marca significativa.

Mas esse tipo de elogio não ocorre no caso do TikTok, porque a ByteDance, dona da plataforma, é uma empresa chinesa. Pela primeira vez, um aplicativo de mídia social chinês está efetivamente desafiando o domínio de seus concorrentes norte-americanos. Em consequência, sua ascensão está sendo vista com medo, em vez de celebração.

Resta saber se o governo de Joe Biden banirá o aplicativo nos Estados Unidos, alegando preocupações com as capacidades de vigilância chinesas. A proposta vai contra décadas de política tecnológica dos Estados Unidos, que promove a todo custo a expansão global da internet. 

Para justificar essa abordagem política, os formuladores de políticas dos EUA tendem a enquadrar qualquer restrição ao acesso à Internet como uma violação do direito das pessoas à liberdade de expressão. Mas a liberdade de expressão nunca foi o objetivo final: na realidade, o conceito de uma internet global e não censurada tem sido atraente principalmente na medida que garante que as empresas norte-americanas mantenham seu domínio do mercado. 

Agora que seu domínio está sendo desafiado, os supostos defensores de uma internet livre e aberta estão cantando uma música diferente.

Os EUA se voltam contra a China

Durante décadas, os Estados Unidos consideraram a China principalmente como uma fonte ilimitada de mão-de-obra barata e produtos de baixo custo, não como um concorrente econômico e geopolítico real. Essa atitude começou a mudar durante a era de Barack Obama, e a política dos EUA mudou significativamente com Donald Trump, quando as autoridades norte-americanas começaram a lançar alertas abertos sobre a ameaça do desenvolvimento tecnológico chinês.

O governo Trump impôs restrições aos equipamentos da Huawei, tentou banir o TikTok e o WeChat e promoveu uma visão de “Rede Limpa” que excluiria as tecnologias desenvolvidas na China. Em vez de recuar nas ações de seu antecessor, Joe Biden dobrou a campanha contra a tecnologia chinesa, apresentando-a como um risco à segurança nacional e lançando-a como parte de um conflito mais amplo entre os Estados Unidos e a China.

Após banir o TikTok dos dispositivos do governo dos EUA e fazer com que muitos outros países ocidentais sigam o exemplo, o governo Biden agora está indicando que pode forçar os proprietários chineses do TikTok a vender suas ações sob a ameaça de proibição total do aplicativo.

As preocupações declaradas do governo concentram-se na coleta, pelo TikTok, de dados dos usuários, e na afirmação de que os dados podem ser acessados ​​pelo Partido Comunista da China (PCCh) para obter uma vantagem geopolítica sobre os Estados Unidos. Mas essas justificativas para ganhar apoio nos Estados Unidos têm pouca base factual.

Nos últimos anos, a TikTok fez acordos com a Oracle para armazenar dados dos EUA e delineou planos para centros de dados adicionais na Irlanda e na Noruega para lidar com questões de segurança de dados em ambos os lados do Atlântico. Contrariando as alegações de alguns legisladores dos EUA, o TikTok é uma empresa privada, não uma empresa estatal sob a influência do PCCh.

Na verdade, se o partido quisesse acessar os dados do usuário americano, ele teria muitas maneiras mais fáceis de obter acesso a eles por meio de uma vasta rede de vendedores de dados obscuros. Isso não exigiria mobilizar o TikTok – embora, como sabemos, o FBI e o Departamento da Segurança Interna dos EUA façam-no com outras plataformas.

A coleta de dados e seu uso indevido não são apenas um problema do TikTok, mas algo mais amplo que envolve o restante dos aplicativos de mídia social e muitas outras empresas de tecnologia. O desejo do governo dos EUA de banir o TikTok em vez de tomar medidas em todo o setor é uma boa indicação de que sua campanha não é realmente sobre segurança nacional ou proteção de dados, mas algo muito mais profundo: a preservação da hegemonia econômica e geopolítica norte-americana.

Organizações de direitos digitais como a Electronic Frontier Foundation (EFF), uma renomada e histórica organização de direitos digitais, têm usado isso como uma oportunidade para exigir uma legislação de privacidade do consumidor que se aplique a todo o setor. 

Seria um passo bem-vindo — mas o esforço para banir o TikTok também mostra as falhas na abordagem das organizações de direitos digitais que dominam o debate sobre políticas de tecnologia.

No enquadramento dos direitos digitais, uma proibição do TikTok seria principalmente uma violação da liberdade de expressão dos usuários, assegurada pela Primeira Emenda à Constituição dos EUA. Isso não apenas tiraria do ar uma plataforma em que milhões de pessoas se comunicam, mas também a oportunidade para um número menor de “criadores” ganhar alguma renda ou até mesmo ganhar a vida com suas postagens.

O argumento não está totalmente errado, mas é guiado por um enquadramento libertário da internet como um desafio ao poder do Estado que nunca refletiu a realidade. Como resultado, não refuta o enquadramento da China como inimiga, nem explica por que os Estados Unidos estão mudando sua política de tecnologia agora.

Como a internet serviu aos interesses dos Estados Unidos

Em Internet for the People , Ben Tarnoff explica que durante a década de 1990, “a internet morreu abruptamente, e algo diferente apareceu”. Essa foi a década em que a internet, produto de pesquisas com financiamento público, foi finalmente entregue ao setor privado. Isso permitiu que as corporações colonizassem completamente o nascente ambiente digital e moldassem seu desenvolvimento, mas não sem a ajuda do Estado.

Em 1989, o senador norte-americano Al Gore argumentou que “a nação que assimilar mais completamente a computação de alto desempenho em sua economia muito provavelmente emergirá como a força intelectual, econômica e tecnológica dominante no próximo século”. Ele viu as tecnologias digitais se consolidando naquele momento como um meio de estender o poder dos EUA, e esse foi particularmente o caso da internet. 

Como explica Daniel Greene no livro The Promise of Access, a internet foi “um instrumento de soft power”, ou influência cultural, que se tornou um importante meio de expansão da influência global dos Estados Unidos e do mercado para suas empresas de tecnologia.

Vista por essa lente, a noção de que governos de todo o mundo deveriam garantir acesso irrestrito à internet para não violar os direitos de seus cidadãos fazia parte de uma estrutura neoliberal mais ampla que incluía expectativas de livre comércio e fluxos de capital irrestritos. Essas políticas fortaleceram ainda mais o capital dos EUA e do Ocidente às custas das indústrias de tecnologia domésticas de outros países.

Nos Estados Unidos, tal abordagem para a internet foi apresentada como um meio de proteger a liberdade de expressão no exterior, mas também garantiu que os governos de todo o mundo tivessem dificuldade em desafiar o domínio global das empresas de tecnologia dos EUA. Se os governos tentassem restringi-los em favor de alternativas domésticas, seriam acusados ​​de repressão autoritária.

O “Grande Firewall” da China é de fato uma ferramenta de censura na internet que permite ao governo chinês restringir o acesso dos usuários a determinados tópicos. Mais importante, porém, é o papel que exerce em favor de uma forma de protecionismo econômico que limita as atividades de empresas de tecnologia estrangeiras para permitir que as empresas nacionais inovem e cresçam para até que se tornem competitivas internacionalmente. 

A China aplicou lições de longa data sobre o uso de barreiras comerciais e política industrial para desenvolver a indústria doméstica na era da internet e claramente teve muito sucesso. Mas isso teria sido praticamente impossível se não tivesse colocado restrições à concorrência estrangeira.

Os EUA estão protegendo o Vale do Silício

Depois de décadas alegando que banir os serviços de internet e restringir o acesso dos cidadãos a certos serviços da web é um exagero autoritário, os Estados Unidos agora estão brincando com essas mesmas políticas. Os argumentos dos direitos digitais não fornecem uma explicação adequada para a mudança. Em vez disso, precisamos olhar para a geopolítica e a economia política se quisermos realmente entender o que está acontecendo na indústria de tecnologia.

A realidade é que, por décadas, argumentos baseados em discursos têm sido usados ​​para justificar o domínio global das empresas de tecnologia dos EUA e, por extensão, a contínua supremacia tecnológica dos Estados Unidos. 

A recusa da China em cumprir essas expectativas e usar efetivamente a política industrial para desenvolver suas capacidades domésticas é o que permitiu que ela se tornasse um sério desafiante ao controle dos Estados Unidos sobre tecnologia de ponta, e isso é algo que o governo dos EUA não pretende permitir.

O TikTok não está sendo visado por ameaça a privacidade e segurança dos norte-americanos mais do que o faz qualquer outro aplicativo de mídia social – mas porque representa um sério desafio para serviços norte-americanos como Facebook e Instagram. 

Não é coincidência que, assim como o Vale do Silício estava sob maior escrutínio por causa de ações antitruste, alguns de seus executivos mais proeminentes começaram a falar muito mais sobre o bicho-papão chinês. 

A Meta financiou uma campanha contra o TikTok enquanto tentava atrair os criadores de volta às suas plataformas. Desde então, as ações antitruste enfrentaram grandes contratempos, pois o foco do governo mudou para o combate à concorrência tecnológica chinesa.

Os Estados Unidos estão enganosamente lançando sua campanha contra as empresas de tecnologia chinesas como uma batalha civilizacional, posicionando-se como defensores da democracia ocidental contra o comunismo autoritário chinês. 

Os formuladores de políticas querem esconder que os Estados Unidos construíram sua própria infraestrutura de com a ajuda das empresas do Vale do Silício; e que seus aplicadores ainda investem pesadamente em empresas chinesas como a ByteDance e até mesmo financiam concorrentes chineses para o ChatGPT. 

Isso sem mencionar como sua própria democracia está em perigo profundo, e suas instituições políticas parecem incapazes de articular uma resposta eficaz.

A saga da proibição do TikTok não é apenas uma questão de liberdade de expressão. É algo maior. Os Estados Unidos estão traçando uma linha mais firme entre si e a China para tentar defender a hegemonia global e supremacia tecnológica de uma potência em declínio e, em particular, para proteger o Vale do Silício da primeira competição real que enfrenta em décadas.

Esse conflito não é sobre o que é melhor para o público ou a proteção de supostos valores ocidentais contra estrangeiros que os prejudicariam. É sobre poder, lucro e a garantia de que a classe capitalista dos EUA permaneça no controle da ordem global.

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Paris Marx é um escritor de tecnologia canadense. Ele é o apresentador do podcast Tech Won’t Save Us e autor do livro Road to Nowhere: What Silicon Valley Gets Wrong about the Future of Transportation (Verso, 2022).

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