A Tecnologia da Adaptação — e como vencê-la
Falta à esquerda uma crítica mais profunda às redes sociais e à captura e tráfico de dados. Não se trata de “desmembrar o Facebook”, mas de opor, às “inovações” que apenas conservam a ordem social, uma possível Tecnologia Rebelde
Publicado 17/05/2019 às 19:49 - Atualizado 24/12/2019 às 11:55
Por Evgeny Morozov | Tradução: Gabriela Leite
No momento em que o Facebook confessa seus pecados digitais e promete tornar-se cidadão da aldeia global, respeitoso da vida privada e preocupado em evitar a compulsão digital, as bases da hegemonia cultural das grandes empresas de tecnologia parecem estar desmoronando. Mais surpreendente ainda: é nos Estados Unidos, país do Vale do Silício, que parecem estar mais fracas.
Mesmo em tempos de extrema polarização e de guerras comerciais, Trump, que tem constantes explosões contra a “censura” em plataformas de redes sociais, junta-se a políticos de esquerda como Elizabeth Warren e Bernie Sanders, ao apresentar a Big Tech como a maior ameaça aos EUA. O recente apelo de Chris Hughes, cofundador [afastado] do Facebook, para que a empresa seja “quebrada” dá pistas do que está por vir.
Nem os magnatas do Vale do Silício, nem os mercados financeiros parecem se preocupar, no entanto. A decisão recente de Warren Buffet — um dos investidores mais bem sucedidos, mas também mais conservadores dos EUA — de finalmente investir na Amazon é provavelmente uma indicação melhor do que esperam os gigantes da tecnologia em médio prazo: lançamentos na bolsa com resultados mais polpudos, mais dinheiro saudita, mais promessas para aplicação de inteligência artificial para resolver problemas causados pela inteligência artificial.
Mais de um ano após o escândalo da Cambridge Analytica, o debate sobre as grandes empresas de tecnologia continua restrito às mesmas questões velhas e batidas: eficiência de mercado, evasão fiscal e modelos de negócio que provocam, deliberadamente, dependência. Apesar de atraírem os eleitores, tais temas não abrem caminho algum para gestar um futuro alternativo, no qual os cidadãos possam se ligar a instituições sociais mais ricas que a fábrica ou o supermercado.
Os dois campos ideológicos, apesar de sua suposta convergência sobre as grandes empresas tecnológicas, provavelmente não usarão esse debate para reinventar seus próprios projetos políticos. Aqueles à direita que esperam conseguir resultados eleitorais ao atacar a Big Tech ainda estão calados sobre qual sua alternativa preferida de futuro. Além disso, como muitos desses movimentos desejam o retorno a uma sociedade conservadora e corporativista, comandada por forças não submetidas ao voto dos eleitores, o Vale do Silício, com sua vasta infraestrutura digital preparada para o soft power, é seu aliado natural.
No cenário internacional, o mito do salvamento pela tecnologia adquire força extra, já que há muito mais “salvação” a ser oferecida pelos gigantes. Isso estimula alguns líderes populistas a fantasias de transformar seus países em enormes feudos, eficientemente comandandos por algum suserano tecnológico. Tanto que o governo Bolsonaro, no Brasil, anunciou orgulhosamente que “sonha” com o Google ou a Amazon controlando seu serviço nacional de correios, que quer privatizar.
O Brasil de hoje, tão propenso a crises, revela ainda outra consequência de entregar o espaço anteriormente ocupado pela política ao complexo industrial da Big Tech. O efeito de longo prazo de suas atividades supostamente revolucionárias é, na verdade, cimentar o status quo, mesmo que isso seja feito por meio de soluções extremamente disruptivas.
Em nenhum lugar é tão evidente quanto as tecnologias digitais estão sendo usadas para lidar com os mais agudos problemas sociais. À medida em que as taxas de criminalidade decolam, o Brasil torna-se um cadinho de inovação no que podemos chamar de Tecnologia da Adaptação, com uma panóplia de ferramentas digitais sendo usada para checar a segurança de ruas e bairros, e para coordenar “respostas” conjuntas em nível comunitário.
O Waze, um aplicativo popular de propriedade da Alphabet-Google, já alerta usuários de grandes cidades, como São Paulo e Rio de Janeiro, de que estão prestes a entrar em uma parte perigosa da cidade (a procedência dos dados que alimentam tais recomendações no geral é bastante obscura). Da mesma forma, moradores preocupados com a taxa de criminalidade em seus próprios bairros cada vez mais usam ferramentas como o WhatsApp para compartilhar informações sobre atividades suspeitas em tais áreas.
Com a piora da situação — e não apenas no Brasil — tais tecnologias permitem que cidadãos sobrevivam em meio ao caos, sem demandar nenhuma transformação social. A última década, com sua celebração à “austeridade”, tem sido boa para os negócios da Big Tech também. Toda a explosão tecnológica que seguiu à crise financeira de 2007 e 2008 pode ser explicada por essas lentes, com seus capitalistas de risco e fundos soberanos, que subsidiaram temporariamente a produção em massa da Tecnologia da Adaptação aos despossuídos e descontentes.
“Tecnologia de Adaptação”, contudo, é marca muito ruim para intitular conferências ou manifestos laudatórios. Ao invés disso, fala-se da “economia do compartilhamento” (com startups que ajudam os pobres a sobreviver, aceitando empregos precários ou alugando suas posses), da “cidade inteligente” (com os municípios entregando sua soberania tecnológica — em troca de serviços temporariamente gratuitos — às gigantes digitais), das “fintechs” (que apresentam como uma revolução de “inclusão financeira” os bancos que emprestam para os mais jovens, capturando e vendendo seus dados).
A não ser que as condições econômicas melhorem — uma hipótese improvável — os governos continuarão sua aliança implícita com a indústria tecnológica: é a única maneira de garantir que as multidões, crescentemente infelizes com os sacrifícios fiscais e comportamentais (vide os Gillets Jaunes) recebam pelo menos uma quantidade módica de segurança e prosperidade, embora de curto prazo e ilusória.
E assim, chegamos ao resultado paradoxal de hoje: 99% das inovações tecnológicas visam apenas assegurar que nada de substancial se rompa na sociedade. A miséria material e moral persiste, nós apenas nos adaptamos melhor a ela — com sensores, mapas, inteligência artificial e — por que não? — computação quântica. O verdadeiro evangelho da Big Tech, hoje — sancionado e celebrado por governos — é a inovação para o propósito da conservação.
Os programas devem ser lançados e celebrados sob a bandeira de “transformação digital”. Mas, na realidade, implicam muito pouca consciência e transformação social. Ao invés disso, o que é vendido sob essa chancela é a ideia exatamente oposta, por exemplo: a noção de que indivíduos e instituições devem se adaptar — e não transformar — o mundo tecnológico ao seu redor. Segundo se prega hoje, a “transformação digital” significa transformar as instituições e indivíduos para ajustá-los às condições sociais aparentemente imutáveis — e não o oposto disso.
As políticas favoritas dos que se dizem progressistas — quebrar a Big Tech, ou mesmo redistribuir seus dados — podem resolver alguns problemas reais. Mas é difícil ver quanto enfraqueceriam um mundo de Tecnologia da Adaptação. No fim das contas, tais engrenagens virtuais podem ser perfeitamente preenchidas por centenas de start-ups — o mundo alternativo da “tecnologia pequena e humana” — e não apenas pelos gostos da Microsoft e da Amazon.
Como alternativa, podemos imaginar um mundo futuro alternativo da Tecnologia Rebelde, que não vê as relações sociais como inscritas em pedra, para ser apenas aceitas e ajustadas por meio das últimas tecnologias. Ao invés disso, tecnologias poderiam ser adotadas para alterar, dar forma e — sim — articular a rebeldia contra condições sociais enraizadas. As distinções entre a Tecnologia da Adaptação e as Tecnologias Rebeldes não são apenas filosóficas; políticas mais inteligentes podem nos levar a mais do segundo conceito e menos do primeiro.
Quebrar as gigantes tecnológicas, fazê-las pagar um volume justo de impostos, fazer melhor uso de seus dados: são todas condições necessárias. Mas, infelizmente, insuficientes para transformação social efetiva — não apenas a individual ou institucional. Hoje, slogans ditos progressistas são frequentemente construídos a partir de pontos de partida depressivamente conservadores. Eles implicam que, contanto que a indústria tecnológica aceite sua responsabilidade como sucessora ungida da indústria automobilística — tornando-se, no melhor dos casos, uma impulsionadora mais ecologicamente correta do crescimento econômico — voltaremos em algum momento ao confortável e próspero mundo como o dos anos 1960 e 1970 quando reinava, nos países ricos, a social-democracia.
Embora essa visão pareça atraente, ela apenas camufla a falta de qualquer pensamento estratégico entre as forças progressistas ou social democratas sobre um tema crucial. O surgimento da Big Tech é uma consequência, não a causa, de nossa crise política e econômica; nós não vamos resolvê-la meramente nos livrando da Big Tech ou reprimindo suas operações.
A Tecnologia Pequena e Humana pode ser de alguma valia. Porém, sem uma visão mais abrangente — e um plano concreto — para abandonar a Tecnologia da Adaptação em favor da Tecnologia Rebelde, as forças progressistas não vão ter muito a dizer sobre a técnica — e, portanto, a política contemporânea.
Caro Yuri,
Obrigado pelo alerta. Na pressa, não associamos o texto à ficha do autor, em nosso site. Trata-se de Evgeny Morozov, cientista social originário da Bielorrússia. Já está corrigido. Agora, você pode encontrar um pouco mais de informações, além de outro texto que também traduzimos, aqui: https://outraspalavras.net/author/evgenymorozov/
Abraços
Caro André:
Seu comentário nos levou a rever o texto, e melhorá-lo. Obrigado! Porém, o fato de você não concordar com as ideias, ou o estilo do autor, não o torna desimportante para os demais leitores. Gostamos bastante do Morozov e de suas ideias não-conformistas sobre a internet. Julgamos necessárias em todo o mundo e também no Brasil. Por outro lado, a tradução jornalística de um texto não pode aspirar, na maioria das vezes, à precisão de uma tradução literária — muito menos a não cometer erros. Temos um grupo de tradutores voluntários. Caso você se julgue apto e deseje participar dele, será muito bem-vindo.
Olá pessoal, acompanho o Outras Palavras há tempos, e gostaria de saber a autoria desse texto tão preciso, para além da assinatura da “redação”.
Gente, não queria ser aquele comentarista chato, mas vou fazer esse papel. Acredito na proposta do site (e do artigo): acho que para acabarmos com o capitalismo, não basta fazer a crítica; tem que fazer melhor.
Vocês precisam de editores e revisores. Ideias geniais não circulam se permanecerem enterradas num texto críptico, confuso, caótico. Qual é O PONTO? Porque ele não é afirmado logo no começo? Quais são as evidências? Seria possível deixar elas mais claras? Escolher apenas o que é contundente? E que tal pensar nas objeções de leitores críticos? Se trata de uma tradução? Por que raios alguém escreve “adição” em vez de “vício”?
Esse parágrafo:
“Em nenhum lugar, é mais evidente o quando as tecnologias digitais estão sendo usadas para lidar com os mais agudos problemas sociais. À medida em que as taxas de criminalidade decolam, o Brasil se tornou um cadinho de inovação no que podemos chamar de Tecnologia da Adaptação, com uma panóplia de ferramentas digitais sendo usada para checar a segurança de ruas e bairros, e para coordenar “respostas” conjuntas em nível comunitário.”
Não se trata de gramática, nem de erros de digitação que confundem a gente (quando/quanto) mas de confusão sintática. “Em nenhum lugar é evidente o quanto”? As taxas “decolam” (informal, clichê), “cadinho” (quem usa isso???), “panóplia” (sério mesmo?). “À medida…” (Indica algo em duração), “decolam” (no presente), “se tornou” (pretérito). “Checar”? Outra vez, parece tradução.
E são parágrafos e mais parágrafos de texto assim! Quantas ideias boas, mas desperdiçadas…
Devo imaginar a dificuldade de editar e revisar tudo, mas sem compromisso com um padrão minimamente aceitável, vocês só vão perder a credibilidade.
Força, continuem, abraços,
André