Apple versus FBI: o impasse do Estado ilegítimo

Após praticarem vigilância maciça contra cidadãos de todo mundo, EUA já não podem usar “terrorismo” como pretexto para atacar privacidade

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Por Yochai Benkler, no The Guardian |Tradução: Rafael A. F. Zanatta

O confronto entre a Apple e o FBI (Federal Bureau of Investigation) não é, como muitos sustentam, um conflito entre privacidade e segurança. É um conflito sobre legitimidade.

As agências de segurança nacional dos Estados Unidos insistem em exercer um poder sem controle juntamente com o discurso “confie em nós, nós somos os caras bons”, mas a maioria dos usuários não tem essa confiança. O terrorismo é real, e a vigilância pode às vezes ajudar a preveni-lo, mas o único caminho para a acomodação sustentável entre tecnologias de sigilo e o policiamento adequadamente informado é por meio de uma reforma profunda nos freios e contrapesos do sistema nacional de segurança.

O princípio mais importante que o governo Obama e o Congresso norte-americano precisam considerar nesse conflito é: “Médico, cura-te a ti mesmo”.

O FBI, para recapitular, está exigindo que a Apple desenvolva um software que lhe permita acessar os dados protegidos do telefone de trabalho de um dos autores do ataque de San Bernardino1.

A Apple recusou-se a fazê-lo, argumentando que, para construir a habilidade de acessar um telefone, estaria efetivamente criando um “backdoor” que tornaria vulneráveis todos os seus telefones.

O debate está sendo enquadrado publicamente pelos dois lados como um profundo conflito entre segurança e liberdade; entre direitos civis dos usuários para garantir sua privacidade e os fins legítimos da aplicação da lei e da segurança nacional. No entanto, essa é a maneira errada de pensar sobre isso.

O problema fundamental é a quebra de confiança nas instituições e organizações. Em particular, a perda de confiança na supervisão da estrutura de segurança nacional estadunidense.

É importante lembrar que a decisão inicial da Apple de redesenhar seus produtos de modo que a própria Apple seja incapaz de obter os dados de um usuário foi uma resposta direta às revelações de Snowden. Aprendemos com ele que o sistema de segurança nacional norte-americano passou os anos após o 11 de setembro esvaziando o sistema de supervisão delegada que limitou a vigilância da segurança nacional após o escândalo Watergate e a denúncia de abusos de órgãos de inteligência nos anos 1960 e 70.

A criação, pela Apple de um sistema operacional impermeável até mesmo a seus eventuais esforços para quebrá-lo foi uma resposta à perda global de confiança nas instituições de supervisão da vigilância. Ela encarnou uma ética que dizia: “Você não precisa confiar em nós; você não precisa confiar nos processos de supervisão de nosso governo. Você simplesmente precisa ter confiança na nossa matemática”.

Muitas pessoas que conheço e admiro estão preocupadas com o presente impasse. Afinal, e se você realmente precisar de informações de um terrorista prestes a agir, ou um sequestrador com uma criança de refém? São preocupações reais e legítimas, mas nós não vamos resolvê-las olhando para os lugares errados. A dependência do FBI no All Writs Act de 1789 diz: “Eu sou o governo e você deve fazer o que é ordenado!”. De acordo com tal lógica, é irrelevante saber se os atos do governo são legítimos ou ilegítimos – porque o dever dos cidadãos é obedecer uma ordem legalmente emitida.

O problema com a abordagem do FBI é que ela trai exatamente a mentalidade que nos colocou na bagunça em que estamos agora. Sem comprometimento do governo norte-americano com a transparência e a supervisão democrática com instituições que funcionem efetivamente, os usuários irão escapar para a tecnologia. Se a Apple for forçada a abrir seus sistemas, os usuários irão para outros produtos. As empresas estadunidenses não possuem o monopólio sobre a matemática.

Nos dias tumultuosos após as revelações de Snowden, houve diversos comitês e forças-tarefa criados para propor reformas. Até mesmo um grupo de revisão formado por ex-funcionários da Casa Branca e da Agência de Segurança Nacional (NSA) propuseram reformas estruturais extensivas sobre como a vigilância operava e com era supervisionada. Nem o governo nem o Congresso conseguiram implementar de forma significativa qualquer uma dessas reformas.

A tecnologia da Apple é uma resposta à sede dos usuários por tecnologias que possam garantir privacidade e autonomia, em um mundo onde eles não podem confiar em qualquer instituição, seja do governo ou do mercado.

Por isso, é do interesse vital da segurança nacional dos EUA construir um sistema institucional de supervisão robusta e prestação de contas da vigilância e dos poderes investigativos. Precisamos de restrições significativas sobre a coleta e uso dos dados; precisamos de mecanismos de avaliação verdadeiramente independentes, com completo acesso à informação necessária e capacidade técnica proficiente para exercer tal avaliação.

Talvez mais importante, precisamos pôr fim à cultura de impunidade que protege as pessoas que dirigem programas ilegais e continuam a prosperar em suas carreiras depois de serem expostas, mas persegue vingativamente os whistleblowers que expõem tais ilegalidades.

Somente um sistema assim, que oferece supervisão significativamente transparente e consequências reais para aqueles que violam a confiança, possui qualquer chance de ser confiável o suficiente para remover a reivindicação global por plataformas que preservem a privacidade do usuário e segurança mesmo às custas do enfraquecimento das capacidades de policiamento e das agências nacionais de segurança.

O caso da Apple não tem a ver com o equilíbrio entre liberdade e segurança; mas com a confiabilidade das instituições ou tecnologias que independem de confiança. Não será possível resolver tal caso passando um rolo compressor na tecnologia a serviço de instituições não confiáveis.

1 Referência a atentado praticado em San Bernardino (Califórnia), em dezembro de 2015. Dois atiradores mataram 14 pessoas e feriram 22. Foram apontados pelo FBI como extremistas islâmicos. Leia mais na Wikipedia. [Nota de Outras Palavras]

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