Venezuela: onde estão os nós econômicos

Moeda supervalorizada, dólar escasso e sistema de subsídios ineficaz alimentam dificuldades que oposição busca explorar. É preciso agir com rapidez

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Por Jacques Sapir, em Memoire des luttes | Tradução: João Victor More Ramos

[Uma das medidas propostas neste texto — a flexibilização ao menos parcial das taxas de câmbio entre o dólar e o bolívar — foi adotada pelo governo venezuelano em março. Um texto (em castelhano) de Mark Weisbrot explica de que forma, e com que objetivos (Nota de “Outras Palavras”)] 

A Venezuela enfrenta hoje uma grande crise econômica, numa situação onde a burguesia não abandonou seu objetivo de derrubar o governo bolivariano. A estabilização da situação econômica é necessária, mas não o suficiente para resolver os problemas que se colocam na ordem do dia. Devemos, portanto, considerar aqui uma seqüência de medidas.

Além da estabilização imediata, que pode ser obtida através de medidas administrativas, é preciso promover uma estabilização mais duradoura. Mas esta, em si mesma, não tem nenhum significado. A estabilização só tem significado se permitir o estabelecimento de um modelo de desenvolvimento que atenda aos objetivos a longo prazo da Revolução Bolivariana. Neste sentido, uma sequência de medidas, que vão de curto ao longo prazo, encontra-se presentes nesta nota.

1 – O governo venezuelano enfrenta atualmente uma desestabilização econômica que a oposição explora politicamente, utilizando meios antidemocráticos para agravar a situação econômica. Nesta difícil situação, o presidente Nicolas Maduro tomou as medidas necessárias para lidar com essas tentativas de desestabilização. As medidas tomadas ou anunciadas terão efeito por um período de um a três meses. No entanto, depois perderam sua eficácia causando efeitos adversos que se tornarão cada vez maiores. Na verdade, a desestabilização macroeconômica começou no fim de 2012, e ofereceu à oposição um contexto para suas manobras antidemocráticas. Se se desejam retirar da oposição seus meios de ação, é conveniente abordar esse contexto.

2 – O cerne da questão é o abismo crescente que hoje existe entre o nível da taxa de câmbio oficial (ou “administrativa”) e a taxa de câmbio, dita “da rua”. Esta diferença manteve-se relativamente baixa por um longo período começando a se expandir desde 2010. Porém, tornou-se verdadeiramente catastrófica desde o último trimestre de 2012. Nesta situação, com uma diferença entre as duas taxas de câmbio de 9/1, as atividades econômicas foram permanentemente deformadas em profundidade. A especulação de agentes privados sobre esta taxa de câmbio afeta todos os setores das atividades, convertendo-se em uma importante fonte de riqueza para uma pequena minoria. O fato de que as atividades econômicas são orientadas em torno da diferença entre a taxa de câmbio é por sua vez uma razão adicional de alargamento do abismo, pois resulta em grandes quantidades de bolívares alimentando a taxa de câmbio da rua. Tudo isso leva a uma profunda perda de confiança do povo venezuelano em sua moeda, o que tem consequências econômicas, como também políticas e psicológicas, potencialmente dramáticas.

3 – As causas da ampliação do abismo entre as duas taxas de cambio podem ser identificados. Elas são de dois tipos. Estruturalmente, a política de crédito, imposta pela crise e necessária para o desenvolvimento do país, resultou em um primeiro deslizamento sensível em 2010. A ineficácia de determinados investimentos veio então agravar o problema. Mas, conjunturalmente, a causa da desestabilização maciça que se observa desde 2012 é o financiamento da estatal petroleira PDVSA pelo Banco Central. Deve-se acrescentar que este financiamento foi necessário em vista de uma situação em que a PDVSA teve que vender as divisas de sua receita pelo valor da taxa oficial, mas foi obrigada a pagar seus fornecedores que faturavam seus serviços e seus produtos ao valor da taxa “da rua”. Alem disso, deve-se somar o comportamento psicológico da população, preocupada e angustiada pela doença e morte do presidente Chávez procurando acumular bens de consumo, como forma de preservar sua própria existência. Alias, a existência destas duas taxas de câmbio é simultaneamente uma causa e um sintoma da desestabilização da economia.

Tabela 1

Evolução do crédito interno e da base monetária

Base Monetaria Crédito interno
2009 16,7% 51,4%
2010 26,1% 82,4%
2011 40,4% 14,1%
2012 55,3% 55,7%
2014 54,2% 63,9%

Fonte: Banco Central de Venezuela

4 –  Dessa forma, o problema se concentra na política adotada pelo governo para controlar os tipos de câmbio. Atualmente é preciso constatar a crescente ineficácia dos métodos administrativos e passar a uma política em que a taxa de câmbio se regule por métodos indiretos. Por isso, é necessário organizar, no início de 2014, um “mercado” de cambio único, na qual todos, agentes, empresas e cidadãos (através dos bancos), possam comprar e vender bolívares e divisas. Evidentemente, será o governo que regulará a taxa de câmbio pelas ações do Banco Central, não deixando à mercê das forças do livre mercado (e potencialmente da especulação). Assim, o Banco Central pode influenciar na oferta de moeda estrangeira através da compra ou venda desta moeda (por flutuações no montante de reservas cambiais), mas também na demanda, exigindo que as operações se realizem a partir de uma conta no Banco Central, A implantação de juros variáveis e reservas obrigatórias nessas contas permitirá alterar em maior ou menor grau a compra de divisas. Note-se aqui que é possível favorecer um setor (por exemplo, as importações de alimentos ou peças para a indústria e agricultura), fixando tipos de cambio e diferentes taxas de reserva de acordo com o setor da atividade empresarial. No entanto, não seria desejável aumentar os benefícios de aposentadoria, se se busca manter o controle sobre a taxa de cambio. Esta taxa única será necessariamente muito menor do que a taxa atual chamada “da rua”, mas vai ser maior do que a taxa “oficial”. Além disso, ela permitirá acabar com a existência de fraudes e das várias especulações que se dá atualmente sobre a taxa de câmbio dupla, – minando a estabilidade política da sociedade, e deformando a natureza das atividades econômicas – bem como a escassez e o contrabando, igualmente resultado desta mesma taxa.

5 – Neste contexto, é importante compensar as famílias mais vulneráveis ​​ou aqueles cujas necessidades não podem ser cobertas por sua renda. A taxa de câmbio única implicará um aumento no preço em relação ao nível teórico destes para com a taxa de câmbio “oficial”. Seria conveniente colocar em prática uma renda adicional, cujo montante será progressivo e inversamente proporcional à renda real, beneficiando por sua vez as famílias mais pobres. O princípio do subsídio para as pessoas, e não aos produtos, é uma forma que permite maior justiça social, semelhante a um imposto de renda negativo para o benefício daqueles que mais precisam.

6 – Para ser eficaz, este sistema implica reorganizar as instituições existentes, reforçar o poder das alfândegas e controlar o sistema bancário. O controle das transações de importação e exportação é importante para garantir que não haja nenhuma fraude sobre a realidade dessas transações ou na data em que foram efetuadas. Assim, um importador deverá comprar sua moeda, 24 ou 48 horas antes da operação comercial ser realizar. Da mesma forma, o exportador estará obrigado a repatriar  sua moeda dentro de 24 horas após o recebimento. É por isso que o papel das alfândegas na estabilidade do sistema é particularmente importante. Mas também é importante que os bancos que tenham contas de negócios (contas correntes) e concedam empréstimos (via Banco Central) para a compra de moeda estrangeira estejam sob controle público para garantir a transparência mais eficaz dos mecanismos bancários. De modo geral, é necessário aumentar a transparência das operações tanto alfandegárias como bancarias para que o controle público possa ser realmente eficaz.

7 – Esta unificação das taxas de câmbio corresponde a um objetivo claro e justamente afirmado pelo presidente Nicolas Maduro de reforçar o valor do bolívar. Este é um ponto importante sobre o qual só podemos aplaudir a previsão do presidente. De fato, um enfraquecimento da moeda pelo sistema de taxa dupla de câmbio é prejudicial tanto econômica, política, e socialmente. Economicamente, porque provoca uma rejeição da acumulação e do investimento em favor de operações de curto prazo, e também do consumo. Politicamente, dada a incerteza cada vez maior, conseqüência da incerteza monetária, gerando preferências coletivas instáveis e levando ao país se situar no campo emocional e irracional. Do ponto de vista social, porque está claro que a debilidade monetária tem conseqüências diferentes dependendo das classes sociais. Nesse âmbito, as classes populares são as mais afetadas. Por isso é preciso projetar a unificação da taxa de câmbio como uma medida de justiça social, de estabilidade política e eficiência econômica manifestado pela consolidação do bolívar.

8 – A desestabilização econômica é também produto de uma situação onde não existem incentivos para poupar. É urgente pensar em sistemas de incentivar as pessoas a poupar, e, em particular, as economias de mecanismos de habitação que podem ajudar a esterilizar em curto prazo parte da liquidez atual. No entanto, trata-se de pôr em discussão o princípio da habitação gratuita (ou quase gratuita) que agora parece dominar a política do governo na área da construção civil. Se não se avançar nessa direção, a única solução é a de pagar altas taxas de juros sobre a poupança, com os consequentes custos elevados para o Estado. É necessário um sistema de aluguel na proporção do salário (10% a 15% do salário, dependendo da quantidade deste último). Uma parte da renda pode ser pago antecipadamente por economias feitas durante um período de 3-5 anos e que dá direito ao benefício das moradias. É aqui que está colocado o problema da gratuidade.

9 – Além da unificação das taxas de câmbio, se coloca o problema da reforma do sistema fiscal venezuelano e o sistema de subsídios. Os dois problemas estão, na verdade, intimamente relacionados. O atual sistema de subsídios é realmente um sistema de cálculo negativo do sistema fiscal. Mas é um sistema que se baseia na gratuidade ou quase gratuidade de certos bens, com numerosas injustiças. Quando o consumo de um bem e um serviço tem pouco ou nenhum efeito sobre os outros, é melhor subsidiar o consumidor e não o produto. Por outro lado, quando o consumo tem efeitos importantes sobre os outros (como no caso da saúde e da educação), a gratuidade, o subsidio de bens e serviços se justificam plenamente. Recordemos a definição marxista do socialismo: “a cada um segundo as suas obras”, e não implica qualquer viés em favor da gratuidade. Portanto, é importante separar o que precisa ser gratuito (ou quase gratuito) e o que deve ser pago pelo custo (a um custo mínimo), mesmo que alguns consumidores são subsidiados. Também é importante revisar a fundo o sistema tributário. A carga tributária é muito baixa. Isto significa que existem muita distribuição e pouca redistribuição. No entanto, a redistribuição é necessária se se busca desenvolver uma economia orientada para o futuro. Deve-se ressaltar aqui que a taxa de imposto fiscal na Rússia (cuja economia tem semelhanças com o da Venezuela) é de 22% a 25% do PIB, enquanto na Venezuela são apenas 13%. Há uma margem importante, e a pressão fiscal pode ser aumentada progressivamente a fim de financiar a redistribuição.

10 – A combinação da unificação da taxa de câmbio, e consequentemente a consolidação do bolívar; a introdução de incentivos para os sistemas e uma profunda reforma do sistema fiscal e de subsídio da poupança irá criar um contexto para o desenvolvimento da economia . Este último deve ser o resultado da combinação de iniciativas privadas e iniciativas públicas. É necessário relançar a política de desenvolvimento agrícola melhorando sua eficiência. Além disso, dado o salário relativamente alto na Venezuela, em comparação com os seus vizinhos (nível que é devido ao emprego quase pleno, mas também a taxa de câmbio), devem-se desenvolver atividades (relativamente) de grande valor acrescido. Isto implica um apoio especial à inovação, a reforma do ensino superior e secundário, enfatizando a educação científica e técnica, bem como o desenvolvimento de cursos especializados na formação de técnicos e engenheiros.

Fundamentalmente, o governo deve responder a estas reformas, a partir do início de 2014. Ele deve anunciar os objetivos da Revolução Bolivariana, indicando que alguns métodos serão alterados. A “Lei Habilitante” será um instrumento ideal para o presidente construir essas reformas.

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Um comentario para "Venezuela: onde estão os nós econômicos"

  1. agroesdras disse:

    Essas reformas que podemos dizer que são reformas de um estadismo atuante.
    Eu não sou Economista sou Engenheiro Agrônomo, mas acredito que são reformas que atuam desde a raiz do capitalismo com fundamentos Marxistas.

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