UPPs: uma estranha forma de mediar conflitos

Polícia tenta levar, às favelas “pacificadas”, técnicas de mediação. Mas enxerga comunidade como inferior e mantém visão ultra-hierárquica de mundo

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Polícia e Justiça tentam levar, às favelas “pacificadas”, técnicas de mediação. Naufragam por enxergarem comunidade como inferior e por visão ultra-hierárquica de mundo

Por Gabriel Bayarri | Imagem: Alberto Costa

O Programa de Mediação em comunidades atendidas pelas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) é uma iniciativa destinada a capacitar os policiais integrantes dessas unidades para exercerem, com o uso de ferramentas próprias à técnica da mediação, o papel de mediadores dos conflitos de proximidade nas denominadas favelas cariocas.

A iniciativa faz parte de um acordo de cooperação, celebrado em 2011, entre o Tribunal da Justiça e a Secretaria de Estado de Segurança do Rio de Janeiro. O propósito dos centros de mediação de conflitos diminuir a “judicialização” das controvérsias entre próximos, ediminuir o abismo que ainda separa, da sociedade, o Direito e os tribunais.

Nos processos de mediação, as partes implicadas são as responsáveis por alcançar um acordo. O serviço que as UPPs oferecem tem sido constituído, em sua origem, sob as técnicas de uma mediação direta, em que as relações humanas e os conflitos não são vistos de forma isolada. Busca-se a justiça por meio de “soluções razoáveis”, construídas sob a lógica da interação como forma de estabelecer sistemas de valores que ajudam no manejo e resolução dos conflitos.

Porém, após a pacificação existe um primeiro “choque de ordem” – ou seja, uma adaptação às regras, direitos e deveres, entre o favelado e a representação do Estado na favela (ou seja, a Polícia Militar). Este processo pode alterar a parcialidade dos processos de mediação. A condição do favelado como cidadão, acostumado a ser guiado por uma lógica tutelar e a receber seus direitos como concessões, converte-o num indivíduo vulnerável diante possíveis arbitragens. Por outro lado, o fato de a polícia ser vista como representação do Estado outorga-se um comportamento tutelar que questiona a eficácia dos mecanismos de mediação imparcial.

Além disso, a hierarquia militar estrita leva a uma negação de autonomia no desempenho do trabalho. A conduta do policial na mediação dos conflitos não será medida pela sua criatividade na condução de negociações bem sucedidas, mas pelo grau de obediência a ordens superiores1. Assim, a preocupação do mediador policial ficará atrofiada ao cumprimento das regras, deixando relegadas a um segundo plano as regras de caráter moral. É o que o sociólogo canadense Erving Goffman denomina “mercador de moralidade”2.

Nas mediações, muitos problemas surgem da ausência de conhecimento de regras “do asfalto”, do não-favelado. E a polícia, como diria o filósofo alemão Friedrich Hegel, está ainda conhecendo o “bem vivente que protege”3, pelo que espera um comportamento de “pessoa de asfalto”, atuando também como educadora, psicóloga ou advogada. O fato de o Estado só estar presente na favela no âmbito da segurança traz como consequência a hipertrofia do papel da polícia, tendo que se apropriar de distintas funções, entre elas o ofício da mediação.

A aparição dos conflitos não deveria ser avaliada necessariamente como um fenômeno negativo: eles mostram que existem interesses incompatíveis, fator fundamental para desenvolver os mecanismos de acompanhamento nas mudanças sociais. No estudo da cosmologia do conflito, este deve ser problematizado através das formas em que é resolvido, da possível arbitrariedade latente em sua resolução, e de sua resolução pacífica. Não obstante, o conflito é um componente de interação humana necessário e o seu surgimento deveria ser entendido, no contexto da pacificação, como forma de liberdade, de acesso do cidadão à liberdade de expressão. No âmbito desta liberdade, surgem necessariamente as diferentes opiniões como princípio do conflito: surge o desacordo4.

Porém, o ethos policial está orientado pela lógica do extermínio do conflito e o combate do inimigo, sendo que a resolução de conflitos possui, de acordo com os princípios nativos, um lugar periférico à atuação policial. Conflitos entre vizinhos, parentes, etc. são concebidos pelos policias como “feijoadas”, vistas como desimportantes diante dos “conflitos” concebidos como legítimos (como o combate ao tráfico).

Interessa, portanto, continuar refletindo sobre o modo como os policiais apropriam-se, ressignificam e reinterpretam o princípio da “mediação” no tratamento dos conflitos de proximidade nas favelas “pacificadas”.

Referências:

1 KANT DE LIMA, Roberto. (2003), “Direitos Civis, Estado de Direito e “Cultura Policial”: a formação policial em questão”. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 41. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, jan-mar, p. 241-256

2 GOFFMAN, Erving. La mise en scene de la vie quotidienne. Paris: Ed. Minuit, 1973. 251p. (Les sens commun). Titulo original: Presentation of self in everyday lifeConteúdo. V.1: la presentation de soiConteúdo. V.2: les relations en public.

3 HEGEL, Friedrich. Principios da Filosofia do Direito. Ed. Martins Fontes. 2003

4 LUCI DE OLIVEIRA, Fabiana. UPPs, direitos e justiça. Um estudo de caso das favelas do Vidigal e do Cantagalo. Ed. FGV. 2012

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3 comentários para "UPPs: uma estranha forma de mediar conflitos"

  1. noele disse:

    Caio,
    boa tarde!
    Eu sou mediadora de Conflitos em uma comunidade pacificada,sou Policial Militar e achei o artigo totalmente surreal.Está claro que não houve pesquisa de campo.Como alguém pode se dar o trabalho de escrever um artigo sobre algo que não conhece nem de longe! Totalmente preconceituoso,e sem conhecimento algum da realidade da Mediação nas UPPs e o pior como alguém pode se achar capaz de falar de visão de mundo de forma generalizada como se policiais fossem seres de outro planeta sem individualidade,sem princípios, incapazes de refletir ou fazer críticas.
    Tratar pessoas como coisas,não respeitar e reconhecer a individualidade de cada ser,e formar estereótipos e estigmatizar pessoas foram atos que marcaram as maiores atrocidades que aconteceram na humanidade e infelizmente eu vejo indícios dessas atitudes em vários discursos com relação a PM,eu acho realmente que após passar 1 ano em formação para assumir um cargo público deixei de ser ser humano ,na visão de muitos,ou seja deixei de ser gente por ter escolhido essa profissão.
    Por favor parem de generalizar as pessoas pelo simples fato de terem a mesma profissão,acho que na “altura do campeonato” nós deveríamos como sociedade abandonar esse revanchismo à ditadura militar que só tem nos levado a retrocesso.
    Quero sim que aqueles que cometeram crimes durante a ditadura sejam investigados e presos,mas não posso e não vou aceitar este estereótipo de policial monstro que certas pessoas parecem gostar de atribuir de forma generalizada a todos os policiais.
    Toda a iniciativa que os Policiais tem é sempre vista como arbitrariedade,fruto de um ódio que teve início na ditadura,mas quero deixar claro que eu nasci após a ditadura,não tenho culpa pelas coisas que aconteceram naquela época e realmente eu faço mediação com toda a boa intenção do mundo,não por me achar superior àqueles que moram em “favela” como foi dito mais sim porque eu acredito que existe sim a possibilidade de nós adquirirmos uma cultura de paz ,não só na comunidade mas na nossa sociedade como um todo,faço mediação lá porque é lá que eu estou mas não acho que as pessoas que moram lá sejam inferiores nem que precisem ser “civilizadas” .O aprendizado que ganhei na mediação mudou minha vida e eu compartilharei isso com qualquer um que queira independente do local.(a mediação é voluntaria)
    E fica o convite para qualquer um que quiser ver com seus próprios olhos como funciona a mediação de conflitos nas UPPs,para que possam tirar suas próprias conclusões e não formem opiniões baseadas nos conceitos dos outros e sem experiência própria.
    Muito Obrigada.

  2. Caio disse:

    Mariana Ivens, acho que você não leu ou não entendeu o texto e parece ter raiva de quem escreveu.
    Ao levar técnicas de mediação, justiça e polícia naufragam por enxergarem a comunidade como inferior e pela visão ultra hierarquica de mundo (da justiça e da polícia).
    O artigo trata unicamente disso.
    Mortes antes e depois da UPP? O quê isso tem relação com o artigo?
    Você parece mais preocupada em defender a polícia do que entender qualquer questão a ser colocada.

  3. Mariana Ivens disse:

    Como alguém, honestamente, pode dizer que algo naufragou sem comparar as mortes antes e depois das UPPs? Como alguém pode achar que a estrutura miitar é a culpada por desvios de violência, se estes não ocorrem perceptivelmente nas forças armadas militares, mas ocorrem também na polícia civil – que desnecessário ressaltar, é civil? Factoides psoloides para debiloides. Pergunta a alguém que mora na comunidade se antes de UPPs se podia andar tranquilo, se não morria muito mais gente (Tim Lopes é só um exemplinho do modo como morria qualquer um que ‘vacilasse’ por lá).

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