Roberto Benjamin: o homem e os mitos

Um grande pesquisador da cultura popular se foi, no Nordeste. Que revelou sobre Brasil, e que perdemos com seu desaparecimento

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Por Theotonio de Paiva | Imagem: René MagritteO Peregrino

No início da semana passada, recebi de um velho conhecido lá do Recife, a notícia do falecimento do professor, pesquisador e cientista social pernambucano, Roberto Benjamin. A consternação é profunda e imediata. Embora sabendo da sua doença, a gente se socorre de uma última dúvida: é verdade?

Há anos radicado em Sergipe, aquele meu amigo me informa que o secretário de cultura da histórica cidade sergipana de Laranjeiras, cujos encontros de cultura tornaram-se simbólicos para muita gente, e, acredito, especialmente para Benjamin, confirmaria a notícia da morte.

Em meio a uma tristeza profunda, penso nos diversos brasis dentro desse Brasil, com as difíceis fronteiras, as suas terras segregadas, no sul, no quadrante norte, a leste do sol. O país imenso, com culturas tão especialíssimas, ditado por vasos comunicantes nada democráticos, que acintosamente impedem a circulação de bens culturais d’outras terras, d’outros mundos tão distantes, que, entretanto, cruzamos em poucas horas de avião.

Esse país carrega uma imensa dificuldade em se conhecer. Às vezes, numa mesma cidade grande, os limites, as diferenças sociais, étnicas são tão absurdamente medonhas, que se desenha um arco aparente intransponível. Na há dúvida: é necessário muito mais do que alguma sensibilidade e boas intenções para circular por sortilégios e quebradas do mundaréu. Que dirá, pois, num mundão perdido e densamente povoado, apequenado e espraiado, com vigas de concreto e chão de barro, como esse enigma chamado Brasil. Que dirá…

Aos 70 anos, quando vem a falecer, Benjamin era dono de uma condição valiosíssima para a empreitada que traçou para a sua vida. Nessa espécie de roteiro da existência que alguns homens e mulheres conseguem estabelecer com enorme clareza tinha ele dois grandes objetivos.

Por um lado, procurou levar adiante um pensamento renovador naquilo que entendia como a articulação entre a cultura popular e a comunicação. Este estudo que ficaria conhecido, a partir dos anos 70, como folkcomunicação, ele recebera do seu mestre Luiz Beltrão.

Em suas pesquisas, desenvolvidas sob uma perspectiva interdisciplinar, na UFRPE, distinguia o homem enquanto criador de mitos e o quanto essa condição se revela, independentemente da cultura, como um eixo central da nossa própria existência. Nesse sentido, segundo o escritor, os mitos das sociedades rurais e arcaicas têm sobrevivido ao fenômeno da urbanização, ao mesmo tempo em que novos mitos são “esculpidos”, ou recriados, pelas populações urbanas, a partir dos padrões legados pela tradição.

A segunda via daquela empreitada existencial de Benjamin fora se transformar numa espécie de “baluarte da preservação de nosso patrimônio folclórico” 1.

De minha parte, eu o conheci na editora de José Fernando de Sousa, situada na velha Recife. Estávamos no final da década passada, a dois dias do Natal. Aliás, foi por suas instâncias que assisti, na periferia de Recife, a Nau Catarineta de Canguaretama, do Rio Grande do Norte. Segundo Benjamin, era a “melhor Nau Catarineta” que ele conhecia. E isso não me pareceu pouco.

Embora já tenham se passado muitos anos, recordo-me até hoje da emoção profunda que senti, do choro convulso, que só a grande obra de arte consegue oferecer. Poucas vezes testemunhei uma experiência tão marcante diante de um fenômeno teatral.

Alguns dias depois, em Laranjeiras, pude observar melhor algumas características daquele homem de andar contencioso e verbo claro. Sempre em trajes claros, era visível uma erudição fabulosa, que aparecia quase espontaneamente. Possuía uma capacidade de observar em detalhes o toque de um pandeiro num bailado, as características de uma obra sacra numa igreja barroca, e, ao mesmo tempo, se orientar a pensar as grandes questões da cultura e da comunicação.

Esse estudioso radicalmente sensível e provocador nós iremos encontrar igualmente em seus artigos e livros.

Dono de uma natural liderança, visível entre os pesquisadores, os artistas populares, lideranças religiosas, que o procuravam sempre com muita cordialidade, era incontestável o seu manejo na forma de pensar a dinâmica cultural.

Nesse sentido, havia em Roberto Benjamin um entendimento do tradicional, ao que nos parece, capaz de se articular dialeticamente àquilo que é novo, que avança, sem, entretanto, excluir nenhum dos lados da disputa.

Não é difícil perceber que essa concepção da tradicionalidade, na qual tradição é uma idéia que está sempre sendo renovada, transmudada, nos coloca diante de um embate extremamente interessante.

Nessa condição, os fatos novos se inserem sem necessariamente promoverem uma ruptura com o passado, na medida em que constroem sobre esse mesmo passado.

Em outras palavras, o pesquisador afina a sua e a nossa sensibilidade.

E, nesse jogo, nos comunica com todas as advertências possíveis que não se justifica mais — melhor, não faz sentido o entendimento do folclore como uma mera sobrevivência de uma condição pretérita.

Essa constatação se explicita pela inequívoca e vigorosa e sempre constante evolução de todos os fatos culturais.

Assim, há fatos novos na cultura popular, tanto quanto nas outras expressões e criações dos homens. Ora, se negar a perceber isso, mais do que idealizar o povo, significa menosprezar a sua capacidade de reinvenção e apropriação das outras esferas do conhecimento e das artes.

Na verdade, essa concepção idealizante retira arbitrariamente o próprio povo do fluxo do tempo, daquele bailado expresso na vida contemporânea.

Mas não fica apenas aí.

Inadvertidamente, segrega a experiência popular numa espécie de nicho, distante e inacessível, assim como a estrela Vésper e os escritos de Machado. Desse modo, quanto mais distantes, mais motivações vão sendo criadas para o estabelecimento de preconceitos, incompreensões e afastamentos de toda a ordem.

No caso específico da cultura popular, uma tal concepção atinge diretamente aqueles que vivem à margem dos poderes.

Na maioria das vezes, isso ocorre simultaneamente à espetacularização das manifestações das culturas populares. É aí, pensava Benjamin, quando os artistas e brincantes são sistematicamente estimulados a se adequarem a um mercado ditado pelo poder público. E o grave é que estão eles distantes, muitas vezes, de estabelecerem condições mínimas de autodefesa.

Isso queria nos dizer esse grande estudioso do Brasil real, do Brasil profundo.

E dizia com a autoridade de um humanista, na melhor acepção do termo, preocupado com as condições de vida das classes populares, com as constantes lutas e sofrimentos de um povo.

Além disso, em sua condição de procurador do Estado de Pernambuco, afinava-se igualmente com os sofrimentos dos presos, os direitos das minorias e as liberdades das práticas religiosas afrobrasileiras e afroameríndias.

Como dissemos, o intelectual Roberto Benjamin organizava os diversos ramos do saber a partir de uma perspectiva interdisciplinar.

Se pudermos usar uma imagem consagrada pela modernidade do cinema, portava-se assim como um técnico numa antiga moviola. Com efeito, procurava editar, com o seu olhar sempre atento e preocupado, os delicados fotogramas que campos distintos do conhecimento, há muito, se mostraram receptivos a participar de uma mesma aventura humanista.

O tempo, já nos ensinava Heráclito, aponta para o futuro. Por sorte, ele é representado como um garoto brincalhão. O tempo e a criança, misturados num só, exprimem uma mesma face utópica. Esta se reencontra constantemente nos ritos e imagens do riso popular que acompanha a festa das ruas, das trilhas enlameadas, em noite de lua, nas praças e adros das igrejas.

Nesse quadro, encontramos autoridades, párocos, sem saber, por vezes, qual a chave a ser utilizada para a compreensão daquilo a que assiste. Desse modo, suportam silenciosos as criações gestadas por um Brasil semi-agrário. Nestas, presenciamos as inversões de uma ambivalência risonha e cruel, cujo sentido é uma verdadeira “morte e ressurreição” de um mundo em estado perpétuo de “inacabamento”, de um povo que se renova sempre.

Num contexto próximo a esse, recordo um momento de rara comunhão entre a cultura popular e o saber oficial.

No final do Encontro Cultural de Laranjeiras, no domingo de Reis, ocorre a tradicional missa em louvor a N. Sra. da Conceição e São Benedito e coroação da Rainha das Taieiras.

Do lado de fora, perto do adro, sob um sol escaldante, inúmeros grupos de folguedos, com seus mestres e brincantes, pesquisadores, amigos, turistas, povo do lugar. Dentro da igreja, corria a cerimônia, celebrada por dois sacerdotes: o primeiro deles pertencendo àquela região e um outro de fora, na condição de visitante.

É importante registrar que, após a missa propriamente dita, acontecem várias exposições de sincretismo religioso, admitidas dentro da igreja. É um traço cultural plenamente assimilado. Assim, aqueles grupos que estavam lá fora são convidados a entrar. Como num pequeno cortejo, encaminham-se através da nave central, exibindo-se para um público comovido e perplexo. E aí, temos cheganças, reisados, pastoris etc, com seus cantos e loas, entoados aos santos louvados.

Nesse meio tempo, o padre da região se retira, sem dar uma palavra. Aquela situação gera um indisfarçável mal-estar entre os presentes. No entanto, o padre visitante ali permaneceria assistindo atento a tudo.

No momento bem próximo ao final de toda a cerimônia, o sacerdote de fora se levanta a fim de se recolher para a sacristia. Movido por uma intensa curiosidade, vou atrás dele para conversar. Estava diante de visíveis comportamentos antagônicos que me interessava compreender melhor. Nesse instante, sou surpreendido pelos passos rápidos do professor.

O padre já retirava os seus paramentos, quando irrompe Benjamin na sacristia. Havia nele um estado de alegria e satisfação. Num ato contínuo, se abre em total sinceridade:

– Há mais de trinta anos que participo desse evento. Pois bem, pela primeira vez, estou diante de um padre que compreendeu o significado de todo o cerimonial!

Aquilo nos impressiona a todos: o padre e eu. Benjamin fez menção ao fato do outro sacerdote ter se retirado muito cedo. Tudo levava a crer que estivesse profundamente incomodado com a manifestação ecumênica, de profundo fervor, porém, que se estendia, por vezes, numa linguagem, em alguns casos, irreverente, plena de sensualidade e temor bendito.

Após aquele breve diálogo, o padre “estrangeiro” sorria com as palavras daquele homem. Com certeza, entendia plenamente a atitude do colega, mas resolveu ficar e se mostrava muito satisfeito com tudo o que vira. Ele era negro e baiano.

P.S.: Leio numa belíssima entrevista à RIF, provavelmente uma das últimas que Roberto Benjamin concedeu, que, nos últimos trinta anos, o pesquisador podia ser encontrado nas tardes dos domingos de carnaval apreciando o cerimonial da “trincheira” do Maracatu Rural Cambindinha, na cidade de Arassoiaba, em Pernambuco. Benjamin procurava deixar claro o fato de que sempre retornava para devolver o que havia levado da comunidade: as cópias dos conteúdos das fotos, fitas cassete e VHS, CDs e DVDs realizadas no ano anterior. Esse texto é igualmente uma maneira de demonstrar modestamente uma imensa gratidão com os ensinamentos recebidos, compartilhando-o de alguma forma.

1 A pesquisadora Betânia Maciel, sua antiga orientanda, juntamente com o advogado e folclorista José Fernando de Souza, fraterno amigo de muitas décadas, realizaram uma ampla compilação das homenagens prestadas a Roberto Benjamin. Esse material foi publicado, em 2010, no Anuário Unesco/Metodista, volume 14.

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