Qual o limite da vontade de prender?

Livro sobre hospital-prisão narra desumanização atrás das grades e expõe a obsessão carcerária de SP — que já concentra metade dos detentos do país

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Livro sobre hospital-prisão narra desumanização atrás das grades e expõe a obsessão carcerária de São Paulo — que já concentra metade dos detentos do país

Por João Peres | Foto Peu Robles

“Desterros – histórias de um hospital-prisão”, de Natalia Timerman

Editora Elefante, 2017 – 204 páginas

Confirme sua presença no lançamento, em 14 de fevereiro, na casa que abriga “Outras Palavras”

“São Paulo conta hoje com a polícia que mais prende no Brasil.” Não era fácil acreditar no que líamos. Em julho do ano passado, quando solicitamos à Secretaria Estadual de Administração Penitenciária alguns números sobre presídios, esperávamos dados alarmantes. Mas não contávamos com um comunicado que espelhasse orgulho com uma política de encarceramento em massa. Ingênuos, talvez, estávamos fora de nosso lugar.

Diferente do governador Geraldo Alckmin, que sabe bem a quem está falando e, de lá para cá, conquistou mais um mandato ao trocar escolas por presídios. Normalmente, as respostas obtidas por Lei de Acesso à Informação são técnicas, limitando-se a apresentar dados sobre as questões registradas. Mas a que recebemos em julho, quando decidimos atualizar os dados colhidos em 2014, mais se parece a uma louvação da qualidade de prender, prender, prender.

Não é por acaso que o secretário de Segurança Pública de Alckmin foi elevado a um ministro da Justiça notabilizado pela sanha punitiva. As declarações de Alexandre de Moraes refletem a agressividade com que um setor da população, majoritário ou não, encara a questão prisional. Não é preciso voltar a ecoar as bisonhas e incontáveis desinformações surgidas após os recentes massacres em presídios – 134 mortes desde 1º de janeiro, e o número continua crescendo.

Podemos pinçar apenas uma, entre tantas infelizes proferidas pelo ilegítimo Michel Temer, evocadora do lugar-comum que parece ter se tornado a regra em termos de administração pública. “Eu espero que daqui a 20 anos quem esteja nessa tribuna venha dizer: Olhe, eu estou construindo só escolas, só postos de saúde, não estou construindo presídios. Mas a realidade atual nos leva à necessidade imperiosa da construção de presídios.” Serão mais cinco federais, num total estimado em R$ 200 milhões, e muitos outros estaduais, num total de R$ 1,2 bilhão. Mas é a Previdência que custa muito. É o SUS que custa muito. São as escolas que custam muito.

A outra “solução” apresentada pelo governo, sempre sem debates com a sociedade e com os inúmeros especialistas dessa área, é endurecer a pena para determinados crimes. Como anota artigo publicado na Ponte Jornalismo por Felipe Athayde Lins de Melo, doutorando em Sociologia na Universidade Federal de São Carlos, e Victor Martins Pimenta, ex-coordenador-geral de Alternativas Penais do Ministério da Justiça, esse conjunto de medidas visa a federalizar o modelo paulista. “A história nos mostra que esse não é um bom caminho. Melhor será, portanto, não seguirmos por aí.”

Mas Alckmin, Temer, Moraes e seus iguais só sabem seguir por aí. O documento que nos foi enviado pela administração estadual diz que há um “contínuo aumento no número de inclusões”. Sim, inclusões, e às favas com seus pensamentos bobos sobre inclusão social. Em 2011, foram 8.447 “inclusões” por mês, passando a 8.949 em 2012 e 9.411 em 2013. Alckmin bem poderia fundar uma startup. Presidium. Escala não lhe falta. “Essa diferença de inclusão mensal, de cerca de 1.100 presos, entre 2011 e 2013, significa que seria necessário a construção de uma prisão a mais por mês”, diz o texto.

Desterros – histórias de um hospital-prisão, livro que a Editora Elefante lança em fevereiro, joga luz sobre uma das unidades do governador. O único hospital-prisão do estado. “A prisão: um lugar destinado a abrigar pessoas, cuja intenção principal, porém, não é o seu bem-estar. Diferente do hospital, cuja razão de ser é justamente o bem-estar. Um desencontro de premissas na mesma instituição que passa longe de ser apenas teórico”, registra a autora, a psiquiatra Natalia Timerman, que há cinco anos trabalha na unidade.

Natalia se vale da absurda realidade que se apresenta cotidianamente diante de seus olhos para construir uma narrativa poderosa. Ao longo das páginas, e ao longo de sua vivência no Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário, ela justamente se digladia para não banalizar o absurdo, esta matéria-prima fundamental da literatura.

O aumento da população prisional paulista entre 2011 e 2014 foi de 41.811 pessoas. Por isso, o Plano de Expansão de Unidades criará 49 novos presídios, com 42 mil novas vagas. Estações de metrô são inauguradas a cada quatro anos. Unidades de ensino são fechadas – só no final de 2015, seriam quase 100, não fosse a pronta reação dos estudantes secundaristas. Penitenciárias vêm à luz todos os dias.

Não nos enganemos criticando apenas o governador de São Paulo: praticamente todos os governadores, em nossos e em outros tempos, ganham, ganharam e ganharão muitos votos ao “incluir” milhares de pessoas no mundo da exclusão. A maioria dos deputados e senadores também é fã deste tipo de “solução”. Neste caso, à diferença de outros, não estão desconectados dos anseios de nossa sociedade. São, como em poucos assuntos, o espelho de uma imagem distorcida, alimentada e trazida diariamente aos lares por programas sensacionalistas. Circule pelas ruas de qualquer cidade brasileira no final da tarde. Bares, salões de cabeleireiro e padarias provavelmente estarão exibindo um Cidade Alerta da vida. E haverá alguém sentado, vibrando com uma morte promovida pelo tribunal de rua. Assim, reproduzem o existente e o reforçam, em um infinito jogo de retroalimentação.

É preciso ser cínico, ou muito mal informado, para acreditar que esta política de prender cada vez mais esteja dando certo. A segurança, após um breve intervalo na década passada, voltou a ser uma preocupação central da população. Até mesmo José Mariano Beltrame, que recentemente se despediu de um período violento no cargo de secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, admite que estamos vivendo na irracionalidade. Ele pede um amplo debate sobre descriminalização das drogas, que “não pode passar desse governo”, e que a questão seja tratada sob o prisma da saúde, e não da repressão.

Vivemos uma vertiginosa era em que tudo em que acreditávamos sobre a lenta e incompleta construção do Estado democrático no Brasil está ruindo. Mas, na questão dos presídios, jamais pudemos alimentar esse autoengano. Por trás das grades, jamais tivemos sequer indícios de qualquer coisa que se possa chamar por democracia. Agora, nossas banalidades do mal simplesmente se estendem a outros campos, ou se tornam mais visíveis.

Satisfaz-se uma sinistra necessidade por vigiar e punir. Por esconder o que incomoda. No caso de Alckmin, há de se desconfiar que esteja criando clientela fixa para as empresas que comprarão os presídios do estado. “Em 20/01/2014, tínhamos 208.968 presos sob custódia da Secretaria de Administração Penitenciária. Esse número equivale a cerca de 40% da população prisional do Brasil e cabe ressaltar que a população do estado de São Paulo equivale a 20% da do país.”

O caso central de Desterros é, por si, evocador de uma série de debates. Donamingo, uma angolana, é presa em São Paulo por tráfico de drogas. Ganharia R$ 5 mil para sair do país com cocaína rumo a Luanda. Atrás das grades, ela descobre que espera um filho. O bebê nasce prematuro e Donamingo se vê sob a ameaça da morte, dele e dela, e sob a ameaça da separação, que, neste caso, também recebe o nome de morte. Infelizmente, nada foi inventado. É tudo verdade.

Afinal, o que queremos das pessoas que cometem algum tipo de infração? Parece infinita a demanda por mais e mais masmorras que garantam que nossos olhos não precisem fitar a realidade. Em São Paulo são 165, e há mais 18 em construção neste exato momento. Curiosamente, aquela em que trabalha Natalia fica bem em frente ao antigo Complexo do Carandiru, demolido em 2002 pelo mesmo governador para dar lugar a um parque, numa demonstração de que é isso o que acontece com presídios que ousam ser vistos: vão ao chão, na vã tentativa de fazer desaparecer as 111 mortes do pior massacre da história do sistema prisional brasileiro.

Um massacre que, por sinal, ganhou recentemente sua enésima chancela pública. Em 30 de setembro de 2016, a 4ª Câmara Criminal Tribunal do Júri decidiu anular quatro julgamentos, num total de 73 policiais envolvidos no caso. Não apenas a decisão é de causar espanto. O nível de argumentação do relator, Ivan Sartori, ex-presidente do Tribunal de Justiça, é bolsonariano e, portanto, contrário ao que se esperaria do Direito, independentemente de qualquer posição ideológica. A tese de legítima defesa, certamente apoiada por grandes segmentos de nossa sociedade, dá muito o que pensar. Como diz o velho lugar comum, um país que não conhece sua história está fadado a repeti-lo. Nossos tempos são a prova disso.

“Não conheci ninguém, nos mais de dois anos em que trabalho no Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário, que tenha se tornado uma pessoa melhor, qualquer que seja o significado disto”, escreve Natalia Timerman. “O tempo que precisa ser passado mais depressa, com o qual se quer liquidar, é sentido, na prisão, na maioria das vezes, como tempo morto, aquele cujo melhor fruto possível é simplesmente que passe rápido, que acabe logo.”

Dados do Conselho Nacional de Justiça apontam para uma reincidência na casa de 25%, ou seja, um a cada quatro presos voltam o sistema prisional brasileiro em menos de cinco anos. Estamos enxugando gelo.

É mais ou menos isso que disse o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, ao confessar que estava cansado de ver a máxima Corte do país julgando habeas corpus de pessoas que haviam vendido um par de gramas de qualquer droga. São estes os casos que enchem os presídios – e que atingem sobretudo as mulheres –, forçando a construção de novas e novas unidades. Estes e as pessoas que estão presas sem acusação formal. Estes, as pessoas que estão presas sem acusação formal e as que estão presas devido à “fé pública” de algum policial.

Sim, porque, se você vive no Brasil real, que dificilmente aparece na tela da Rede Globo, sabe que há flagrantes forjados pela PM, via de regra contra pobres e negros. Se você vive no Brasil real, sabe também que há juízes dispostos a ignorar todas as evidências de armação. E que há muitas e muitas pessoas dispostas a aplaudir a violação do direito de defesa. Nesta triste década que vivemos, vimos gente evocando a volta da ditadura, aplaudindo atitudes arbitrárias, linchando em praça pública. E também vimos que há gente que fecha os olhos para o assassinato de um trabalhador ambulante pela PM à luz do dia e em pleno centro de São Paulo; que apoia prisões forjadas; que urra de felicidade quando um ex-presidente, um ex-ministro, um deputado entram no camburão, como se isso expiasse todos nossos problemas.

E, não, isso não é exclusividade de quem bate no peito para se declarar conservador. A recente prisão de Eduardo Cunha (sim, é recente: foi em outubro do ano passado) deu demonstrações de que há muito mais gente que encarna o ideário encarcerador e a noção de que a prisão é o único caminho para se fazer justiça – ou seria vingança o nome disso? Não foram poucas as vozes que deram vivas ao encarceramento do ex-presidente da Câmara, desconhecendo as consequências do gesto. E desconhecendo que, ao final de contas, a prisão de um corrupto nada significa para os corruptores, que desde há tempos imemoriais são donos do Estado.

 

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Um comentario para "Qual o limite da vontade de prender?"

  1. Luiz Cláudio Fonseca disse:

    Transcrevo: “E, não, isso não é exclusividade de quem bate no peito para se declarar conservador.” Vê-se, com profundidade social, a cidadania de última hora infiltrada no Estado e vivendo da aparência (burguesa) e das tragédias familiares como sinônimo de conservadorismo diante de um Estado que não pode mais ser burguês. Será que o liberalismo torna o terno da moda conservador? É um desafio lançado à tola sociedade. Será que a Seguridade Social e a Previdência são coisas distintas?

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