Por que revogar a Emenda Constitucional 95

“Tripé macroeconômico” neoliberal e teto de gastos adotado por Temer devastaram o investimento público e levam o Estado a desrespeitar sistematicamente os direitos sociais

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Por Grazielle David

O excesso e desalinhamento das regras fiscais, como a regra de ouro, a lei de responsabilidade fiscal, o tripé macroeconômico e o teto dos gastos, colocaram o país numa situação em que é impossível obedecer a todas simultaneamente, tanto na elaboração quanto na execução do orçamento. No momento, o teto dos gastos tem dominado o cenário fiscal.

A política do “teto dos gastos” foi adotada em dezembro de 2016 por meio da Emenda Constitucional (EC) nº 95. Ela prevê que, durante 20 anos, as despesas primárias do orçamento público ficarão limitadas à variação inflacionária. Isso quer dizer que, no período, não ocorrerá crescimento real das despesas primárias, que são agrupadas em duas grandes categorias, as despesas de custeio (com serviços públicos) e as despesas com investimentos. A EC 95 não só congela, mas de fato reduz os gastos sociais em porcentagem per capita (por pessoa) e em relação ao PIB, à medida que a população cresce e a economia se recupera, como é comum nos ciclos econômicos.

Existe um elemento ainda pouco explorado sobre o efeito da EC 95 nas despesas primárias no momento de construção das leis orçamentárias (PPA, LDO E LOA). A regra do “teto dos gastos”, no formato em que foi adotada no Brasil, é particularmente maléfica porque ela gera uma disputa orçamentária entre estes dois grandes blocos das despesas primárias. Isso porque, ao longo dos anos, com o teto sufocando cada vez mais as demandas da sociedade e com a lenta retomada econômica, decorrente inclusive dessa escolha de política fiscal de austeridade, o governo tem que realizar cortes orçamentários.

Como o governo tem dificuldade em cortar as despesas com serviços públicos, por serem em sua maioria obrigatórias, a tesoura recai sobre as despesas com investimento, estas discricionárias, ou seja, o governo não tem obrigação de executar. O resultado disso é que o investimento público chegou em 2017 ao menor nível em quase 50 anos, de acordo com Orair e Gobetti. União, estados e municípios investiram apenas 1,17% do PIB – valor sequer suficiente para garantir a conservação da infraestrutura já existente.

Outro efeito da redução das despesas com investimentos é sobre a “regra de ouro” do orçamento público. A Constituição Federal prevê em seu art. 167, inciso III, que “são vedadas a realização de operações de créditos que excedam o montante das despesas de capital, ressalvadas as autorizadas mediante créditos adicionais suplementares ou especiais com finalidade precisa, aprovados pelo Poder Legislativo por maioria absoluta”.

Assim, inicialmente, a “regra de ouro” proíbe que o montante das operações de crédito supere o montante das despesas de capital, as quais abrangem investimentos, inversões financeiras e amortização da dívida pública. Entretanto, com o insustentável “teto dos gastos” limitando as despesas primárias, puxando as despesas com investimentos para baixo, e com a não retomada econômica, o governo fica sem espaço fiscal para respeitar a “regra de ouro”. Isso porque baixa atividade econômica implica em baixa arrecadação, que por sua vez limita a capacidade de financiamento das despesas públicas. Sem arrecadação suficiente, ao governo resta a possibilidade de emitir novos títulos da dívida. Entretanto, essa emissão tem o limitador da ‘regra de ouro’. A solução encontrada? Ao invés de revogar o teto dos gastos, manobrar a exceção da regra de ouro.

Sim, existe previsão constitucional para a que a regra de ouro não seja cumprida. Durante o exercício orçamentário, no caso em 2019, o governo poderia solicitar a abertura de crédito adicional ao Congresso, com o envio de um projeto de lei com justificativa detalhada e finalidades específica, que requereria aprovação por maioria absoluta. Entretanto, a Constituição ao disciplinar a exceção ao equilíbrio entre receitas de operações de crédito e despesas de capital, pressupõe a existência de um equilíbrio original entre os respectivos montantes na LOA – Lei Orçamentária Anual. E é nesse ponto que a LDO – Lei de Diretrizes Orçamentárias 2019 torna-se inconstitucional, por já prever que a LOA 2019 será elaborada sem o equilíbrio entre receitas de operações de créditos e despesas de capital.

Em estudo técnico conjunto das consultorias orçamentárias da Câmara dos Deputados e do Senado Federal sobre o tema, consta que “a interpretação lógica e sistêmica do art. 167, III, da Constituição indica que a regra de ouro se aplica tanto à fase de execução quanto à de autorização da despesa. Afinal, se a exceção (créditos adicionais com maioria absoluta) se aplica apenas no âmbito da execução orçamentária, conclui-se que a regra de ouro deve ser observada antes desse momento – na elaboração e na aprovação dos orçamentos. É acertada, portanto, a disciplina do § 2º do art. 12 da LRF, que exige o equilíbrio entre receitas de operações de crédito e despesas de capital no projeto de lei orçamentária”.

No arcabouço jurídico nacional a regra de ouro deve ser obedecida de forma absoluta nas etapas de elaboração e aprovação das leis orçamentárias anuais. O próprio Ministro do Planejamento à época, Dyogo de Oliveira, em janeiro deste ano, afirmou que “a regra de ouro tem que ser revista para 2019 porque você não pode fazer o orçamento prevendo o descumprimento. A Constituição só prevê o caso se houver problema durante a execução orçamentária”.

Cabe destacar que a ‘regra de ouro’ é limitada por desconsiderar que algumas despesas de custeio, como as sociais, também podem funcionar como investimento e garantia de justiça geracional, uma vez que elas têm efeitos multiplicadores e de longo prazo. É o caso, por exemplo, das despesas com educação, em que a cada R$ 1,00 gasto com educação pública gera R$ 1,85 para o PIB. Entretanto, não é manobrando essas regras que alcançaremos maior justiça fiscal no Brasil.

É nítida e urgente a necessidade de rever as regras fiscais. Para isso, é essencial que sejam consideradas duas premissas: 1. A política fiscal é uma política pública como todas as outras, assim, a participação social deve ser garantida tanto na sua elaboração quanto no seu monitoramento; 2. A política fiscal está sujeita às normas do Pacto Internacional dos Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais, e não o contrário, como vem ocorrendo hoje. Assim, devem existir mecanismos na política fiscal para que ela seja reordenada sempre que ocorrerem riscos à não garantia dos direitos no orçamento.

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2 comentários para "Por que revogar a Emenda Constitucional 95"

  1. Fernando Mundim Veloso disse:

    No dia 30/05/2019 defenderei a minha dissertação de mestrado cursado na Universidade Federal de Uberlândia, na Faculdade de Direito. O tema é justamente a alegação da inconstitucionalidade da Emenda do Teto, segue aqui o resumo da minha dissertação:
    A Inconstitucionalidade Material da Emenda Constitucional 95 de 2016
    O presente trabalho tem como problema analisar se a Emenda Constitucional 95 de
    2016, que instaurou o Novo Regime Fiscal, viola as cláusulas imodificáveis
    elencadas pelo § 4º do art. 60 da Constituição Federal e fere o princípio da vedação
    ao retrocesso social. Mesmo que tenham sido obedecidas formalmente todas as
    exigências do Diploma Maior, no que tange à apresentação, trâmite e aprovação de
    alterações constitucionais, o que abarca a verificação de adimplemento dos
    requisitos formais e circunstanciais de constitucionalidade, a emenda constitucional
    aprovada pode, ainda assim, ser submetida por um dos legitimados a propor ação
    direta de inconstitucionalidade (art. 103, incisos de I a IX, da CF) ao crivo do
    Supremo Tribunal Federal (STF), órgão que ostenta em nosso ordenamento o status
    de guardião da Constituição, em sede de controle concentrado de
    constitucionalidade das normas(caput do art. 102 da CF). Diante desse contexto, já
    existe protocolado no Supremo Tribunal Federal, sete ações questionando a
    constitucionalidade da referida emenda. A Constituição Federal de 1988 trouxe para
    o centro de seu ordenamento jurídico a proteção aos direitos fundamentais. Nesse
    sentido, o citado Diploma Constitucional, que ficou conhecida popularmente como a
    Constituição Cidadã, obriga o Estado brasileiro a garantir uma série de prestações
    em forma de políticas públicas como garantia de defesa à própria dignidade da
    pessoa humana. Com esse intuito, o texto Constitucional consagra uma série de
    direitos fundamentais que deverão proteger o cidadão e que gozam de um status
    constitucional diferenciado. a presente dissertação partiu da hipótese que esta
    emenda constitucional não é compatível com o regime constitucional vigente, visto
    que a proteção a dignidade da pessoa humana está no centro da Constituição
    Federal vigente, e o novo regime fiscal inviabilizaria o Estado de prestar políticas
    públicas com viés de garantir os direitos fundamentais e suprir o chamado mínimo
    existencial. Utilizou o método dedutivo, partindo de uma premissa geral, a
    Constituição Federal de 1988, chegando na Emenda Constitucional 95 de 2016, com
    suas particularidades. Utilizou-se o método de pesquisa bibliográfico. O objetivo
    deste trabalho consiste em analisar se a Emenda Constitucional 95 de 2016 padece
    de inconstitucionalidade material. Foi analisado se a mudança do chamado Regime
    fiscal, que limitou por 20 anos os investimentos do Estado em gastos primários viola
    as cláusulas imodificáveis elencadas pelo § 4º do art. 60 da Constituição Federal e
    se desrespeita o princípio da vedação ao retrocesso social, a proteção que a mesma
    tem sobre os direitos fundamentais e uma breve conceituação sobre estes.
    Palavras-chave: Emenda Constitucional 95 de 2016. EC 95/16. Constituição de
    1988. Direitos Fundamentais Sociais. Inconstitucionalidade Material.

  2. Pedro Luiz Christiano disse:

    A PEC do teto é um mecanismo criado pelos golpista para permitir ao seu braço togado asfixiar e inviabilizar qualquer futuro governo que se proponha a fazer algo pelo povo.

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