Fascismo, teu novo nome é Consumismo

Como Pasolini enxergou, em 1968, que a ameaça já não eram Estados totalitários — mas o homem-consumidor individualista, refratário ao coletivo, mercantilizado

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Como Pasolini enxergou, desde 1968, que a ameaça já não estava nos Estados totalitários — mas no homem-consumidor individualista, refratário ao coletivo, entregue à mercantilização. O que isso tem a ver com o Brasil de 2018

Por Fran Alavina

Mesmo após sua morte atroz, em novembro de 1975, Pasolini não deixou de incomodar. Uma de suas últimas polêmicas, expressa nos seus textos (Scritti Corsari e Letterre Luterane), bem como no seu último filme Salò, era a afirmação do nascimento de um novo tipo de fascismo. Desta nova forma de totalitarismo disfarçado, o pensador italiano estava bem certo. Exatamente por isso, ocupava uma posição de deslocamento entre os intelectuais de seu tempo. Os contemporâneos viam seu diagnóstico do presente como algo exagerado. Uma visão que, segundo eles, diria muito mais sobre a personalidade de Pasolini, do que sobre seu próprio tempo.

Enquanto todos se contentavam com os avanços do estado de bem-estar social e estavam inebriados com o maio de 68, dificilmente poderiam compreender que Pasolini não se reportava aos riscos da volta do fascismo histórico, como aquele de Mussolini. Tratava-se, na verdade, de uma mutação do fascismo histórico, cuja gênese estava justamente naquilo que o estado de bem-estar social comportava em seu interior e que era um dos motivos de sua expansão: o consumismo. Ao mesmo tempo em que surgia uma nova cidadania, das benesses da social democracia, esta também ensejava um novo modelo de homem e mulher: o consumidor.

Hoje, com a volta da extrema direita e sua chegada ao poder em alguns países, os ambientes intelectuais ora se veem imóveis, incapazes de diagnosticar com precisão um fenômeno que aparece dramaticamente como algo inesperado, ora se movimentam para atestar sua existência — mas buscam compreendê-lo segundo o parâmetro do fascismo histórico. Logo, deixam escapar os novos elementos e as novas determinações.

É claro que o fascismo histórico não pode ser esquecido, pois é o modelo mais acabado do que foi um estado fascista, institucionalmente falando. Ocorre que, como apontava Pasolini, o novo fascismo não é, em primeiro lugar, institucional — mas sim uma nova forma de vida jamais vista, e por isso mais difícil de ser combatida. Ele esconde dentro de si uma nova lógica de poder, está mais arraigo nos indivíduos que em instituições ou oficialidades declaradas. Por isso, Pasolini referia-se a uma nova forma de poder: “anárquico”, sem centro específico e sem uma estética que pretensamente expresse identidade homogênea — ao contrário do que foi o fascismo histórico.

A negação da diferença não seria, advertiu o pensador italiano, feita pela força bruta. Decorreria da não aceitação de qualquer forma de vida individual ou social que não pudesse ser transformada em mercadoria — isto é, que não se adaptasse ao consumo. Como era necessário que o consumo acompanhasse o aumento da produção, o novo cidadão do estado de bem-estar social deveria ser levado cada vez mais à mercantilização da vida.

Daí que durante as ocorrências do maio de 68 pela Europa, Pasolini já denunciava seus limites e a acomodação do espírito de rebeldia pelo mercado. A própria rebeldia perdia sua valência política e tornava-se uma marca, um slogan. As novas formas de comportamento, quanto mais possam parecer novas, mais se acomodam ao consumo que já faz de si mesmo a imagem da única novidade possível. Este novo fascismo, que ao que parece só Pasolini conseguia ver, seguia os passos do fascismo histórico, pois instaurava uma nova linguagem: pobremente denotativa, como fora aquela que se materializava nos discursos de Mussolini.

Assim, o novo fascismo trazia consigo um novo gestual que, segundo as palavras de Pasolini, impedia que se pudesse diferenciar, na Europa, um jovem das classes populares de um jovem burguês. Os dois já falavam do mesmo jeito, já gesticulavam do mesmo modo: enfim, todo o campo da expressividade havia se tornado único. Desfazendo, desse modo, qualquer referência às diferenças entre classes sociais. Ora, não era o sonho do fascismo histórico produzir um tipo de sociedade radicalmente homogênea?

Não parece, pois, ser mera coincidência que hoje os gestos e a linguagem da extrema direita tenham se tornando tão aderentes nas redes sociais. Também sendo pobremente denotativa, a linguagem das redes sociais levou o consumo ao seu ponto máximo: já não se consumem coisas, pode-se consumir pessoas. A transformação das subjetividades em algoritmos impõe um novo padrão de homogeneidade. Aqueles que já não falam a língua das redes, mesmo fora delas, tendem a desaparecer, pois só aqueles que falam a língua do consumo imediato permanecem. Não é pura ocasionalidade que os políticos de extrema direita falem como se youtubers fossem. Trump não discursa como se estivesse no twitter? Mas essa nova linguagem pressupõe aderência entre os falantes: portanto, supõe que os falantes já se identifiquem apenas como consumidores.

Também não é mera coincidência que o atual estado de coisas a que chegamos no Brasil tenha sido precedido por uma ascensão e crise das classes populares ao consumo. A classe trabalhadora, falsamente identificada como nova classe média, passou a ver a si mesma como consumidora, mais do que com qualquer outra identidade. O mesmo movimento se deu naqueles países europeus mais afetados com a crise econômica de 2008.

Os antigos consumidores jogados para fora dos padrões de consumo não se voltam mais, como outrora, aos partidos trabalhistas ou de centro esquerda (pois foram estes os principais fiadores da social democracia e seu estado de bem-estar). Não se veem mais como trabalhadores expropriados, mas como consumidores incapazes de consumir. A afirmação da identidade de classe foi perdida. Por isso, no caso brasileiro, por exemplo, não aparece como contradição seguir um discurso que promete a volta dos empregos por meio de uma agenda neoliberal extremada e que ao mesmo tempo retira direitos dos trabalhadores.

Se o fascismo histórico se guiava pela noção de um aparelho estatal grande e forte, o novo fascismo pode aderir ao estado mínimo justamente por não se tratar mais de instituições, mas de formas de vida que consomem a si mesmas. Logo, a aderência do discurso da meritocracia, que cria a imagem da sociedade como um grande aglomerado de indivíduos em eterna concorrência. Incapaz de engendrar qualquer forma de solidariedade social, esta noção consumista e individualista de si mesmo é um prato cheio para discursos do culto da força, pois a violência já internalizada pelos indivíduos concorrentes torna-se completamente naturalizada.

Não por outro motivo, Pasolini apontava que o novo fascismo era muito mais perverso que o fascismo histórico. “Estamos todos em perigo!”, dissera ele, nem tanto aos seus contemporâneos, mas a nós, 40 anos depois de seu assassinato. É porque estamos todos em perigo que precisamos vencê-lo. Não apenas pela resistência e uma nova superação eleitoral das forças políticas que encarnam o novo fascismo, pois trata-se mesmo da criação de uma nova forma de vida. Afinal, nunca se pode esquecer que a democracia não é simplesmente uma forma de governo, porém uma forma de vida: talvez a única que se possa dizer plenamente vida.

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10 comentários para "Fascismo, teu novo nome é Consumismo"

  1. Ricardo Cavalcanti-Schiel disse:

    Prezado Fran.

    Minha menção ao Marcuse não tinha a intenção de “contrapor” os frankfurtianos a Pasolini.

    Em primeiro lugar, a precedência cronológica da proposição do Marcuse a respeito do “homem unidimensional” não é mais do que de 4 ou 5 anos com relação à crítica do Pasolini. Ambos podem ser reconhecidos como parte desse ambiente intelectual que gestou o maio de 68. Nesse sentido, minha menção não é muito mais que uma nota de rodapé, quase que enciclopédica.

    Só que em Marcuse, a proposta interpretativa é mais sistemática, foi sustentada em todo um livro e, à diferença da crítica cultural pontual, ela assume a dimensão de análise estrutural, qual seja, a que vai além da fenomenologia, para explorar uma lógica de relações, que é uma lógica de geração simbólica, de produção de sentido.

    E é por aí que apelo para essa ideia de “matriz” (matriz de produção de sentido), para além do simples “dispositivo” (homologação, por exemplo).

    Dou-lhe inteira razão ao observar como o consumo é normatizador da possibilidade mesma da “diferença” no capitalismo tardio, diferença que meu professor Eduardo Viveiros de Castro chamou certa feita de “diferença factícia” (artificiosa): “distinções narcisistas que repetem ao infinito a morna identidade dos consumidores, tanto mais parecidos entre si quanto mais diferentes se imaginam”.

    A sua crítica aos dispositivos de homologação encontra analogia com a crítica aos mais sofisticados mecanismos de controle comunicacional da contemporaneidade, como sugere um artigo de três anos atrás aqui no Outras Palavras, do Rafael Evangelista (https://outraspalavras.net/posts/o-facebook-muito-alem-do-arco-iris/). Para mim, não é nenhuma casualidade. É a matriz simbólica que está por trás.

    Está vendo? Não sou materialista. Sou estruturalista. Rsrsrsrs.

    Mas o que quero ressaltar, ao lançar mão dessa perspectiva analítica, é que o sentido da produção da diferença e da sua reificação utilitarista hoje (expressa pela agenda identitarista) são sucedâneos de uma mesma lógica simbólica. Esse é o horizonte universalista da normatização pelo consumo.

  2. Fran Alavina disse:

    Não se trata do PT, mas sim de um tipo de programa social-democrata incapaz de pensar suas concessões a um modelo econômico que lhe corroí por dentro! O caso especifico do PT, foi pensar que o acesso ao consumo seria suficiente. Uma das consequências deste erro, é que o partido dos trabalhadores seja cada vez mais inaudível aos trabalhadores.

  3. Fran Alavina disse:

    Ricardo, muito grato pela leitura e comentários! Lerei os textos de tua autoria que você apontou. Te adianto, porém, duas questões aqui. A primeira é quando comparado, por exemplo, aos autores filiados à teoria crítica e a escola de Frankfurt, Pasolini nos traz um ganho: trata-se de uma visão predominantemente estética, mais até que artística, portanto ganhamos em elementos novos que não encontramos nas teorias filosóficas e sociais, sem deméritos ou hierarquização de saberes. Nesse sentido, a precedência de Marcuse em relação a Pasolini, é um dado cronológico que neste caso não diz muito na nossa tentativa de diálogo com Pasolini.
    A segunda é que sobre o “moralismo prescritivo sobre a política”, Pasolini identificou algo importante em seu nascedouro, trata-se da diferença entre verdadeira conquista de direitos e homologação. Ou seja, a falsa tolerância que se dá da aceitação de diferenças e minorias a partir de suas entradas nos nichos de consumo. Ora, é justamente a homologação cultural que baliza boa parte do politicamente correto, pois ela incide, em primeiro lugar, sobre a linguagem e suas bases materiais estão onde a aceitação pelo consumo já se tornou eficaz. É o que tento explora, por exemplo, no seguinte texto:

    https://outraspalavras.net/posts/gays-a-armadilha-da-aceitacao-pelo-consumo/

    Retorno ao diálogo contigo, após ler os teus textos, um abraço,

    Fran.

  4. Lucas Pacheco disse:

    Talvez o PT seja justamente o início racional de uma mentalidade coletiva sobre a necessidade de se humanizar mais, e não nos tornar escravos de mega empresários e consequentemente da oligarquia da indústria.

  5. Alessandra Schmitt disse:

    Parabéns Fran pela clareza e linguagem acessível. Artigo que dá gosto compartilhar!
    É como também vejo: o estilo de vida moderno, onde tudo quase é industrializado e o consumo de alta rotatividade, alimenta o sistema de opressão que não queremos. A mudança está em nossas mãos e corações.

  6. Silvio Reis disse:

    Abordagem e textos bem interessantes.

  7. josiela disse:

    Seu artigo me ajudou muito!

  8. Grazia Tanta disse:

    Sem tirar qualquer mérito a Pasolini e ao Fran, há um aspeto ligado ao consumismo que amarra as pessoas ao sistema financeiro – a dívida e a sua vulgarização, a sua naturalização, para comprar apartamento, viagem, automóvel, computador. A dívida que alimenta o consumismo é uma captura do futuro do endividado; e sem a adesão ao consumismo as pessoas sentem-se deslocadas, não podem exibir as suas últimas compras conseguidas a crédito, sentem-se pertencentes a um tempo passado. E como o crédito e o endividamento são facilitados a vida torna-se um ciclo que comporta pagamento da dívida já constituida e a preocupação em surfar a onda, a moda que irá exigir novo endividamento

    O sistema financeiro captura a Humanidade e o seu futuro através da dívida

    http://grazia-tanta.blogspot.pt/2016/12/como-o-sistema-financeiro-captura.html

    A dívida pessoal, a dívida empresarial para aumentar a rendabilidade e incrementar as vendas e a dívida estatal que é imputada aos povos sob a forma de austeridade

    Curiosamente, na chamada esquerda europeia – ou o que assim vulgarmente se designa – entende-se importante reestruturar a dívida pública, olhando esta como uma questão financeira apenas e jamais como uma questão que se prende com as amarras que o capitalismo tece

  9. Ricardo Cavalcanti-Schiel disse:

    Os artigos do Fran Alavina sempre são muito competentes. Neste, a sua incursão na relação autoritarismo-individualismo, no contexto da sociedade de hiperconsumo (ou da “cultura do narcisismo”, como já a chamava Christopher Lasch há bastante tempo atrás), foi realmente prometedora. Mas ainda está tímida.

    Os nexos ainda a serem explorados são aqueles entre um universalismo do consumo (estilo “homem unidimensional”, do Marcuse — e nisso ele precede Pasolini) e o particularismo identitarista do “neoliberalismo progressista” (Nancy Fraser) como solução utilitária para a regulação social.

    Ambos são crias da mesma matriz.

    Alavina defende a constatação da “aderência do discurso da meritocracia, que cria a imagem da sociedade como um grande aglomerado de indivíduos em eterna concorrência”. Só que essa constatação é apenas parcial.

    O discurso particularista, a reificação do “lugar de fala” e outros bibelôs “politicamente corretos” partem da mesma matriz utilitarista, possessivista e antissocial.

    Não é por acaso que o moralismo prescritivo sobre a política, manobrado pelo discurso “politicamente correto”, padeça igualmente de tentações totalitárias, com tanta pretensão a se querer como “pensamento único”.

    Em torno de tudo isso, vejam-se, por exemplo, um artigo meu aqui no Outras Palavras (https://outraspalavras.net/brasil/os-diabos-no-meio-do-redemoinho/) e uma entrevista recente minha para o IHU (http://www.ihu.unisinos.br/584387-do-falso-bem-estar-social-lulista-ao-individualismo-predatorio-bolsonarista-entrevista-especial-com-ricardo-cavalcanti-schiel).

  10. tereza oyagi disse:

    Seguindo o raciocínio de Pasolini então o pt colaborou com o fascismo moderno.

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