Desenvolvimento rural e Economia Ecológica: uma abordagem a partir do zoneamento

Introdução

O presente trabalho discute o desenvolvimento rural à luz de duas concepções de inovação: a inovação econômica competitiva, adotada ainda no início do século 20 como espécie de pedra angular da teoria do desenvolvimento econômico, e a inovação no contexto da economia ecológica. Esta última é uma antinomia e nunca um caso especial da primeira, pelo fato de não se adequar a uma previsível consequência da inovação econômica estrita – a chamada destruição criadora, que quando aplicada aos bens da natureza se traduz apenas como destruição irreversível.

Além desta introdução, o trabalho está estruturado em mais sete seções. A próxima introduz o debate acerca da inovação técnica competitiva enquanto armadilha do desenvolvimento face ao espaço rural. O problema conceitual colocado é precisamente o paradoxo da inovação técnica competitiva em geral, mas particularmente evidente no espaço rural, que é por excelência espaço da natureza. Quanto mais eficientes e lucrativas são as inovações econômicas – segundo o critério da minimização dos custos privados, estritamente obediente à ética do individualismo utilitário – maior seu potencial de danos ao espaço da natureza e, portanto, maiores os impactos sociais e ambientais (externalidades).

O critério da inovação ecológica, por sua vez, segue outra norma do agir econômico. Esta, para ser adotada, precisa superar o bloqueio normativo preexistente de um sistema de preços de mercado como regulador absoluto da atividade econômica.

A terceira seção trata especificamente do espaço rural brasileiro, submetido a uma estratégia de economia política nas duas últimas décadas baseada na superexploração com vistas à especialização na produção de commodities para atender demandas do mercado externo. E novamente aqui se constata a armadilha apontada na seção anterior. A pedra angular dessa estratégia primário-exportadora – saldos comerciais primários máximos a custos privados mínimos – tem como contrapartida várias pedras de tropeço, materializadas em quatro déficits exacerbados: a) das manufaturas expelidas das exportações; b) a triplicação dos serviços pagos ao exterior; c) do aumento considerável da emissão de gases do efeito estufa na atmosfera, da qual o setor primário torna-se o maior vilão; e finalmente d) a crise de abastecimento de alimentos da cesta básica (arroz, feijão, leite, carne, etc.) em plena pandemia da Covid-19.

A seção 4, em que são demarcadas as diferenças intrínsecas do desenvolvimento fundamentado na inovação ecológica na economia em relação ao crescimento econômico convencional, é complementada pela seção seguinte. Nela, abordam-se as condições necessárias à transição ecológica em diferentes domínios da atividade econômica, que, por variadas razões, têm se tornado os campos experimentais mais exercitados da Economia Ecológica internacional: energia limpa, alimentos saudáveis, gestão hídrica, economia circular (reciclagem de resíduos) e o reordenamento territorial.

As experiências de políticas de desenvolvimento nos campos citados respondem em grande medida a problemas provocados pela própria economia de mercado e, em geral, avançam mais rapidamente no espaço político que no espaço acadêmico. Neste, embora haja também tentativas de transição epistêmica – do paradigma clássico-neoclássico da economia de mercado ao paradigma da Economia Ecológica –, os bloqueios fundamentalistas à transição econômica são mais renitentes.

A seção 6 discute, da generalidade ao detalhe, a proposta do zoneamento agrohidroecológico, como mediação normativa necessária à introdução de inovações ecológicas no Plano de Safra Agropecuário brasileiro e a restringir atividades econômicas de graves impactos ecológicos.

A seção 7 dedica especial destaque à necessidade de justificação e convencimento ético-político como meio de legitimação da proposta do zoneamento, concebida como embrião de uma política de longo curso de desenvolvimento rural, sob a égide da economia ecológica.

Ainda na seção 7 retoma-se a discussão inicial do desenvolvimento, chamando a atenção para a necessidade de programas permanentes de transição ecológica, não apenas na economia rural, mas também em outras áreas sensíveis, a exemplo da energética, da gestão hídrica e, nos dias atuais, muito enfaticamente na saúde pública, campos imprescindíveis à noção de sustentabilidade ambiental.

A última seção, de Conclusões Finais, oferece uma síntese do conjunto do texto, mas também apresenta sugestões ao debate político e ético-político com a AS-PTA e demais entidades da sociedade civil envolvidas na defesa da Agroecologia. É ao mesmo tempo uma espécie de preâmbulo à continuidade da reflexão e ação pragmática no que se refere às questões levantadas no conjunto do texto.

A armadilha do desenvolvimento face ao espaço rural

A ideia do desenvolvimento econômico sustentado por inovações técnico-científicas ao estilo schumpeteriano – dos “[…] novos produtos, novos métodos produtivos, novas fontes de energia e de matéria-prima […]”[1] – é praticamente consenso nas várias escolas de pensamento econômico – clássica, marxista, neoclássica, keynesiana e estruturalista[2].

No entanto, é precisamente o caráter técnico-científico das inovações econômicas que estará sob crítica contundente do pensamento ecológico e econômico em duas abordagens, que podemos considerar como de fundamento e fundação da Economia Ecológica. A primeira abordagem crítica, de índole ético-filosófica e de autoria do filósofo Hans Jonas, trata da responsabilidade humana face aos riscos da tecnociência para os destinos da Humanidade. A segunda, de caráter científico, é uma crítica à economia de alta entropia, de autoria do filósofo e economista Nicholas Georgescu-Roegen. Os referidos autores publicaram seus trabalhos principais, de que voltaremos a tratar neste artigo, nos primórdios dos anos 70 do século 20 (sobre os autores citados, ver respectivamente as notas referenciais 9 e 12).

A essa crítica ética e científica original (anos 1970) irão se somar várias correntes de pensamento no século 21, com destaque para a importante Carta Encíclica Laudato si, de 2015.

Neste entremeio emergiu um problema de ordem planetária: a carbonização do espaço mais próximo da atmosfera, que concentrou as atenções das Conferências Internacionais do Clima, desde 1992, levantando a importante questão das Mudanças Climáticas – suas causas mais prováveis e as medidas necessárias e urgentes para deter tal processo.

O debate sobre carbonização e descarbonização da atmosfera tem conferido pragmaticamente enorme prioridade à Economia Ecológica. Mas é preciso que se diga que, embora atraia tanta atenção, dada a sua relevância e consequências, o problema da carbonização é um caso particular e especial, produto da inovação técnico-científica da linha schumpeteriana, que não se esgota em si.

Do ponto de vista do presente texto, a questão da carbonização da atmosfera merecerá o devido destaque nas seções mais específicas que tratam das medidas práticas para enfrentá-la (Seções 6 e 7); sem perda de substância à ideia central de que a mudança do paradigma do desenvolvimento econômico,[3] centrado na inovação econômica, é o verdadeiro problema a enfrentar.

É nesse contexto que precisamos colocar a Economia Ecológica e suas inovações como outro paradigma científico e cultural, comprometido com uma relação responsável (no sentido da ética da responsabilidade) para com a sustentação da vida e das condições de sua reprodução. Nessa abordagem ­ético-­ecológica, os vários fenômenos de alta entropia – carbonização da atmosfera, destruição de ecossistemas, deterioração dos sistemas hídricos, degradação de cadeias biológicas imprescindíveis à saúde humana e animal, etc. – são claramente expressões antinômicas.

Isto posto, precisa-se desde logo antecipar que o processo de desenvolvimento econômico sob influxo das inovações ecológicas não é, e nem pode se esperar que seja, uma iniciativa dos mercados, sob a égide do seu sistema de preços[4], na linha das inovações econômicas competitivas. Tampouco é uma iniciativa fora do mercado, mas sob um marco regulatório apropriado, sem o que não se enfrenta a questão ambiental multifacetada.

Do contrário, o crescimento econômico seria uma espécie de outra face da moeda da crise ecológica. Isto porque é da índole do sistema assim proceder, guiado por critérios do individualismo utilitário em aliança com o progresso técnico, matrizes da teoria do desenvolvimento econômico. E, nesse contexto, quanto mais potente o perfil do progresso técnico, maior se torna seu potencial destrutivo sobre o espaço da natureza.

Para desencadear processos de mudança na economia, abrindo espaço à Economia Ecológica, é preciso que se aceite uma outra norma econômica na relação da atividade econômica com o espaço da natureza, sem o que a adoção da anterior norma mercantil estrita conduziria, como vem conduzindo, aos impasses ambientais brevemente descritos nestas notas preliminares.

O espaço rural brasileiro – potencialidades e limites do desenvolvimento sustentável

O espaço geográfico rural do Brasil, seja por dimensão física, seja pela diversidade e complexidade dos seus ecossistemas, coloca o país no rol muito restrito dos seis mais relevantes Estados nacionais com soberania sobre respectivos espaços territoriais – Estados Unidos, União Europeia, China, Brasil, Rússia e Índia.

Tendo presente essa situação de dotação de bens naturais, uma dada concepção de inovação econômica associada a uma estratégia de especialização do comércio exterior relançou o Brasil neste início do século 21 como um país primário-exportador de commodities agrícolas e minerais, em um tempo histórico bem distinto da especialização cafeeira, vigente até meados do século 20.

Essa economia primário-exportadora opera com o argumento esgrimido ainda no início do século 19 por David Ricardo: o das vantagens comparativas naturais no comércio externo[5],face aos cinco demais parceiros detentores de soberania sobre espaços territoriais similares, que, por sua vez, operam com vantagens comparativas construídas pela indústria e pelos serviços, mais complexas. Nossas relações econômicas e ambientais em 20 anos de plena hegemonia dessa especialização podem ser resumidas no argumento do saldo comercial das commodities, em paralelo ao custo de quatro déficits,[6] quase nunca explicitados:

a)   a crescente expulsão das manufaturas das exportações brasileiras, tornando o setor deficitário em termos de balança comercial;

b)   a exacerbação do déficit na Conta de Serviços do Balanço de Pagamentos, que de uma posição negativa de 23,7 bilhões de dólares (média anual) durante o período l995-1999 (primeiro mandato de FHC) passa a valores acima de 80 bilhões de dólares no período 2011-2014; e mesmo no período ultrarecessivo de 2017-2019 fica no patamar de 89 bilhões de dólares em termos médios anuais – (cf. dados à Tabela I do Anexo Estatístico).

c)   a conexão do setor primário da economia à forte expansão da agropecuária de commodities e da mineração, tornando-se o principal vilão da emissão de gases do efeito estufa, em simultâneo à crescente desmontagem dos aparatos de política ambiental. Outras formas de desorganização ambiental, a exemplo das contaminações por agrotóxicos, das frequentes crises hídricas de abastecimento urbano, da destruição de espécies nos ecossistemas e dos problemas sanitários emergentes, são outros componentes do déficit socioambiental, associados à estratégia primário-exportadora e indiretamente ao conjunto da política econômica brasileira.

d)   Mais além desses desequilíbrios econômicos e ecológicos referidos, há um quarto problema, velho conhecido da história econômica brasileira: o recrudescimento das crises de abastecimento alimentar, decorrentes não apenas da superconcentração produtiva em commodities para exportação, mas também da completa desmontagem dos aparatos de política agrícola ligados ao mercado interno, principalmente dos estoques públicos ligados à Política de Garantia de Preços Mínimos (PGPM).  O ano de 2020 é típico da situação supramencionada. Em um período de semidepressão econômica, houve elevação significativa de preços – da ordem de 15 a 20% – de quatro produtos, com repercussão no conjunto da cesta básica: arroz, feijão, leite e carnes.

No contexto da pandemia da Covid-19 e das mais altas taxas de desemprego aberto e disfarçado consequentes, a ilusão macroeconômica dos saldos comerciais da economia do agronegócio fez recrudescer um problema crônico na sociedade brasileira: a fome e a insegurança alimentar e nutricional. Nessas condições, o alimento básico se converte em recurso imprescindível tanto para gestão da crise sanitária quanto para a crise econômica a esta associada.

Mas a visão estreita dos operadores da política econômica brasileira e de sua política agrícola em particular não considera temas que para a mitologia oficial estariam superados – abastecimento alimentar, por exemplo –, por confiar cegamente na mão invisível dos mercados.

Tampouco se lhes ocorre a necessidade de fomentar a produção local de alimentos, ao estilo do Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA), programa exitoso durante uma década (2003-2014), mas que no final foi abandonado e definitivamente cancelado nos governos Temer/Bolsonaro.

Por outro lado, o argumento chave da política econômica brasileira para continuar apostando todas as suas fichas na especialização primário-exportadora pode ser expresso da seguinte forma. Há uma excelência de dotações naturais – terras agricultáveis, redes hídricas vigorosas, grandes campos petroleiros e de outras reservas minerais (ferro e bauxita principalmente) – que devem ser aproveitadas enquanto vantagens comparativas do Brasil no comércio internacional para gerar expressivo saldo comercial.

O mencionado superávit comercial agrícola não se faz acompanhar por diversificação do comércio externo de manufaturas e serviços. Ao contrário, ambos os setores têm apresentado forte queda, já que as grandes cadeias de commodities insistem na tese simplista de que sem o seu concurso seria muito maior o déficit na Conta Corrente com o exterior. E quanto ao déficit ambiental, o tema é evitado, como se não pertinente à agenda econômica. Idem para a questão do abastecimento alimentar interno.

A análise das situações citadas desse quádruplo déficit, sob qualquer enfoque – macroeconômico, social, ambiental e mesmo de economia agrícola –, revela a situação brasileira de especialização primário-exportadora como estratégia de economia política altamente inconsistente.

O déficit conjunto mencionado somente tende a se ampliar com a especialização em commodities, visto ser uma estratégia de dependência externa em todos os sentidos – industrial, tecnológico, financeiro, alimentar e, principalmente, ambiental, na contramão ademais de qualquer esforço concentrado internacional para estratégias planetárias de controle das mudanças climáticas.

Há argumentos críticos de diversas procedências para enfrentar o conjunto de déficits referidos, mas quase sempre sem mexer no espaço conquistado pelas commodities, como também sem mexer na liberalidade do setor privado para continuar operando com suas inovações econômicas estritamente mercantis. E isso não faz sentido, porque é causa do problema e nunca sua solução.

Vou me abster de comentar sobre essas aparentes soluções, internas aos chamados intelectuais orgânicos da economia do agronegócio, porque pretendo me situar em outro campo: o das inovações econômicas explicitamente vinculadas à Economia Ecológica, tema da próxima seção.

O fundamento das inovações ecológicas no desenvolvimento rural sustentável

A ideia de uma revolução tecnológica – susceptível de converter escassez em abundância, fome em saciedade, pôr fim à pobreza e garantir desenvolvimento para todos – é um desses mitos da modernidade. A chamada Revolução Verde, por exemplo, chegou até a render o Prêmio Nobel da Paz a um dos seus precursores, o geneticista Norman Borlaug.

Passadas pouco mais de cinco décadas de aplicação sistemática das inovações econômicas da Revolução Verde, principalmente no campo das sementes geneticamente modificadas, o mundo inteiro conhece os seus resultados, os quais a física e filósofa indiana Vandana Shiva assim descreve no seu livro[7] em que analisa a situação no estado do Punjab, na Índia:

Foi concebida como uma estratégia tecnopolítica para a paz, através da criação da abundância pela superação dos limites e variabilidades da natureza. Paradoxalmente, duas décadas de Revolução Verde deixaram o Punjab devastado pela violência e pela escassez ecológica. Em vez de abundância, o Punjab ficou com solos doentes, colheitas infestadas de pragas, desertos encharcados e agricultores endividados e descontentes.[8]

O exemplo do Punjab multiplica-se pelo mundo inteiro. No Brasil, em particular, iniciou com sua modernização conservadora da agricultura dos anos 1970 e, mais recentemente, nos anos 2000, intensificou-se com sua economia do agronegócio, comentada na seção precedente.

O grande problema das chamadas revoluções tecnológicas, ou do moderno mito da tecnociência como espécie de ídolo da salvação humana, é precisamente seu caráter idolátrico, que precisa ser denunciado. E isso não é uma questão teológica ao estilo bizantino, sobre as intermináveis querelas sobre o sexo dos anjos. Mas sim, como tão bem compreendeu Vandana Shiva, uma questão sobre a vida e a violência sobre os seres da natureza, que atinge diretamente os humanos.

De uma perspectiva ético-filosófica, o filósofo Hans Jonas, em duas obras – O fenômeno da vida – rumo a uma biologia filosófica (1966) e O princípio da responsabilidade – ensaio de uma ética para a civilização tecnológica (1979)[9], preocupado com o valor da vida, concebe a tecnociência em expansão exponencial no mundo contemporâneo como risco iminente de destruição da cadeia íntegra da vida, da qual há uma única espécie conhecida capaz de agir conscientemente. É a espécie humana responsável pela reversão ética desse potencial destrutivo.

 Idêntica conclusão, algumas décadas depois, chega a Encíclica Laudato Si, do Papa Francisco em 2015, sobre a raiz humana da crise ecológica (Cap III), para o que formulará uma proposta ecumênica da ecologia integral (Cap. IV).

Por outro lado, para fazer a transição de uma economia de mercado, regulada pelo seu próprio sistema de preços, rumo a uma economia ecológica, regulada pelos princípios da Ecologia, há necessariamente que considerar as várias formas de mediação. Escolhemos a disjuntiva inovação econômica convencional x inovação ecológica como uma espécie de síntese do agir econômico, segundo finalidades completamente diferentes, mesmo quando a ação finalística se destina à utilização do espaço rural tendo em vista a obtenção de bens econômicos.

Mas antes de tratar especificamente dos processos concretos em campo sobre transição ecológica, na próxima sessão, é conveniente explicitar de forma mais clara certos critérios da antropologia econômica, que demarcam o modo de agir econômico do Homo economicus relativamente ao Homo ecologicus. Subjacentes a esses diferentes modos de agir estão postos os fundamentos éticos das distintas formas de inovação econômica, a saber.

 O Homo economicus é movido exclusivamente pela pulsão egoísta e utilitária no comportamento microeconômico, seja como consumidor, seja como empreendedor, seja como trabalhador. Suas relações econômicas com os outros indivíduos se dão nos marcos estritos do utilitarismo individual (espaço da troca mercantil); o mesmo se aplicando às relações com a natureza, à sociedade e a si próprio. O princípio de origem hedonista de obtenção do máximo benefício individual (prazer) ao menor custo privado (sacrifício próprio) é compulsório, pela expectativa de uma ética utilitária estrita da concorrência mercantil, que sanciona e impõe tal conduta. Assim agindo, alavancado pelo progresso técnico imiscuído na própria concorrência, essa conduta geraria crescimento econômico geral, balizado por um sistema de preços de oferta e de procura, conducente mecanicamente ao equilíbrio de preços entre compradores e vendedores. Todas as relações econômicas seguem os princípios da racionalidade instrumental, ignoram os efeitos externos de suas ações para com terceiros (externalidades) e principalmente para com a natureza.

O Homo ecologicus da Economia Ecológica, segundo os princípios da ecologia integral (Laudato Si), mantém relações completamente distintas – consigo próprio, com os outros seres humanos e com a natureza. Para as pessoas de fé, esse caráter relacional humano é expressão de sua relação com Deus, na linha de cultivar e cuidar toda a cadeia da vida.

Sendo como são seres da natureza (ou da criação no enfoque teológico), o consumidor, o empreendedor e o trabalhador da Economia Ecológica procuram a harmonia e o cuidado para com a natureza como norma geral de conduta humana. À produção e ao consumo ecológico estão associados, respectivamente, os padrões de ação econômica que minimizam todas as formas de entropia da terra (no sentido de território e planeta) e a geração de um valor de uso saudável para os frutos do trabalho, obtidos para consumo final.

Dentro desses critérios de uma ética da vida penetrando em todas as esferas do agir econômico, a perspectiva de reorganizar e reconstruir as bases de uma nova aliança do ser humano para com a realidade circundante – social, terrena e cósmica[10], situa a economia ecológica, ao estilo da ecologia integral, configurando em verdade uma nova cosmologia. Esta teria o sentido de reversão de determinadas tendências caóticas da economia moderna; em perspectiva de reconstrução de um ambiente cósmico recomposto em suas relações harmônicas com as redes vitais da natureza.

Esses conceitos teóricos – do agir econômico convencional e do agir econômico-ecológico –, que consubstanciam os conceitos antinômicos de inovação econômica e inovação ecológica aqui utilizados, são guias referenciais relevantes às respectivas estratégias de crescimento econômico convencional e desenvolvimento sustentável.

Por outro lado, o referencial teórico não dispensa o debate pragmático da transição ecológica, que precisamos fazer, tendo esses conceitos como polaridades, associadas a distintas normas de conduta econômica. Vejamos algo dessa transição, de suas condições necessárias e também de algumas contradições pelo caminho.

Sobre as condições necessárias à transição ecológica

Do ponto de vista estritamente epistemológico, a transição de uma economia de mercado a uma Economia Ecológica é uma mudança de paradigma científico da Economia[11], que em geral não é aceita pela ciência (econômica) normal, pelo fato de significar uma certa revolução científica, ainda não assimilada pelo mainstream econômico, mesmo depois de meio século de fundação da Economia Ecológica.

No entanto, neste meio século, desde as primeiras teses sistemáticas da Economia Ecológica sob o conceito da baixa entropia, segundo Nicholas Georgescu-Roegen[12], já foram criadas algumas instâncias institucionais, seja de disciplina científica[13], seja de programas políticos concretos de transição ecológica em vários países; a ponto de converter o debate do tema em discussão de políticas públicas.

Em termos de políticas ou programas internacionais concertados, autoafirmados como de transição ecológica, podem-se distinguir alguns campos de maior destaque, quase todos com forte incidência na área rural, a saber:

a energia de baixa entropia, com ações significativas na União Europeia;

a agricultura biológica ou agroecológica (vinculada à Política Agrícola Comum , também na União Europeia);

a Economia Circular (misto de campo de pesquisa com disciplina científica), que trata da reciclagem de resíduos urbanos e industriais em quase todo o mundo;

a gestão hídrica;

o reordenamento fundiário e a reestruturação agrária.

À exceção do tópico 3, que se refere mais explicitamente à reciclagem de resíduos urbanos e industriais, com repercussão indireta sobre o espaço rural, todos os tópicos principais da transição ecológica, operados por meio de políticas públicas, têm no espaço rural um lugar de destaque.

Por sua vez, a adoção de políticas de Estado de grande envergadura e plenamente legitimadas na União Europeia, no âmbito das energias de fontes limpas[14] ou ainda de sua Política Agrícola Comum[15]para o caso da agricultura biológica, convertem esses campos – da produção de energia limpa (quanto à emissão de gases do efeito estufa) e dos alimentos saudáveis – em bandeiras da economia ecológica.

Os temas da gestão hídrica e do reordenamento fundiário, por seu turno, são também vistos com crescente preocupação política, notoriamente pelos problemas de escassez hídrica, poluição do espaço rural com lixo agrícola ou urbano e, principalmente nos últimos anos, com a frequente recorrência de incêndios florestais, grandemente influenciados pelas temperaturas de verão acima dos 40 graus Celsius.

Em todos esses casos há uma questão a enfrentar ou que vem sendo continuamente posta: a questão da transição normativa, tácita ou explicitamente colocada como obstáculo às inovações ecológicas.

A discussão normativa, que transcende o seu aparato legal, contém essencialmente o sentido ético da inovação que, no caso da economia convencional, está implicada na ideia-força do utilitarismo individual. Esta, de tal forma se naturalizou na sociedade capitalista que adquiriu foros de normalidade política resistente às mudanças.

Por sua vez, a adoção da inovação ecológica em cada campo de atividade reclama aceitação ética-ecológica distinta da ética econômica normal.

Daí que, para produzir energia em escala social ampla, é preciso construir uma política. Idem para os alimentos, a água, a reciclagem dos resíduos, o ordenamento territorial, etc. E, como tal, requer um debate ético-político em cada campo, como condição de possibilidade à adoção da economia ecológica, para além do nível microcósmico, que é seu campo original de experiência.

No exemplo citado de política energética, as sucessivas Conferências do Clima, desde 1992, terão tido um papel ético-político fundamental para abrir passagem a certo consenso político atual (europeu) sobre conferir prioridade às energias renováveis. Estas têm crescido exponencialmente nos últimos quinze anos, sinalizando avanços em direção à meta estabelecida de redução em um terço do consumo total de fontes não renováveis até 2030.

No outro exemplo também significativo, o da agricultura biológica, sua inserção no primeiro pilar da Política Agrícola Comum, suportada por recursos orçamentários da União Europeia, é manifestação evidente da prioridade política em todo o espaço abrangido pelos vários países envolvidos.

Por sua vez, nos casos citados como nos outros que envolvam desenhos explícitos ou implícitos de transição ecológica, é relevante sempre realizar a avaliação de conteúdo, no sentido da efetiva transição dos polos do agir econômico que mencionamos na seção anterior.

Não se pode esquecer que há uma concepção de economia ambiental, que nada tem a ver com a Economia Ecológica aqui conceituada, que se apresenta como domínio da convencional Economics e se candidata a cumprir papeis aos quais não está habilitada. Robert Solow, um dos inimigos viscerais da Economia Ecológica à moda Nicholas Georgescu-Roegen, assim apresenta a questão:

Não existe uma economia específica para os recursos naturais e ambientais. Os princípios econômicos que se aplicam a estes aspectos importantes e relevantes da vida social são os mesmos que se aplicam aos problemas econômicos em geral, embora tenham que ser adaptados às circunstâncias específicas que surgem quando tentamos analisar as interações entre a natureza e os sistemas econômicos humanos.[16]

Do ponto de vista epistêmico, a posição de Robert Solow significa uma negação à mudança de paradigma científico; e do ponto de vista político é certamente um dos principais obstáculos a serem enfrentados na estruturação de verdadeiros programas de transição ecológica. É exemplo dos vários obstáculos ideológicos à mudança da norma econômica para a construção da inovação ecológica.

Por outro lado, existe um fator diferencial crucial na chamada economia ambiental do mainstream econômico à moda Robert Solow, relativamente à abordagem da Economia Ecológica. Este fator significativo é a provisão de bens públicos ou bens comuns que necessariamente são objeto da Economia Ecológica – clima planetário, saúde pública na alimentação, água disponível e saudável, prevenção de catástrofes no espaço fundiário. Mas na economia mercantil, esses bens são externalidades, visto que esta foi construída essencialmente para produção de mercadorias e para mercadorizar todos os bens não produzidos pelo trabalho humano, principalmente no caso do crescimento econômico – do espaço territorial da natureza.

Tendo presente essas contradições no debate da economia política ambiental, é importante perceber que há uma tarefa relevante de legitimação política e econômica no percurso da transição ecológica. Começa sempre na sociedade civil organizada, que é o espaço de motivação e experimentação original da ecologia; e em algum momento histórico requererá adoção pelo Estado democrático, especialmente nos processos de desenvolvimento rural. Não há receita pronta e acabada sobre tal percurso, mas é necessário, de quando em vez, propor algum caminho pragmático para sua adoção política, tema a que nos reservamos a comentar na seção seguinte (seção 6).

Do exposto, emerge configurada a necessidade do debate ético-político, que precede e legitima mudanças significativas nas políticas públicas e que, por sua vez, requer propostas pragmáticas ao agir econômico.

Sobre a proposta do zoneamento agrohidroecológico

O espaço rural brasileiro está submetido a determinadas formas de exploração econômica que o tornam contraditoriamente impermeável e, portanto, altamente necessitado de inovações ecológicas em vários campos prioritários, dentre os quais escolhi cinco para exemplificação didática:

A produção agroecológica de alimentos da cesta básica alimentar, atendendo simultaneamente a critérios de soberania alimentar: descentralização, redução da dependência alimentar em nível territorial, respeito aos diversos hábitos e padrões culturais, etc.

A produção de energia limpa (de baixa entropia).

A transição da produção de commodities de altos custos sociais e ambientais para produtos agrícolas com certificado de procedência, de baixos impactos regionais.

A gestão de águas fluentes e aquíferos localizados no espaço territorial rural, de sorte a garantir quantidade e qualidade de água para consumo geral e garantir a preservação dos recursos hídricos.

A gestão da biodiversidade com vistas a precauções de saúde animal e humana, especialmente em relação a surtos epidemiológicos e zoonoses.

Praticamente todos esses cinco campos de inovação supracitados contêm simultaneamente vocações regionais bem caracterizadas e implicações sobre bens comuns e bens públicos, que se originam no espaço rural, a exemplo da rede hidrográfica e dos biomas, mas que atendem necessidades e interesses gerais.

Por outro lado, as inovações econômico-ecológicas estão de certa forma interditadas por critérios de normalidade econômica, que as restringem a espaços microcósmicos, sem possibilidade de disseminação geral.

O elenco de prioridade que enunciamos – de 1 a 5 – compreende em verdade um conjunto de condições e funções econômicas para o desenvolvimento do espaço rural, atendendo necessidades gerais de bens privados e bens públicos do país: alimento saudável, energia limpa, água disponível e limpa, produção agrícola de baixa entropia, precaução em saúde pública, minimização de riscos e catástrofes, etc.

Esse conjunto de bens e serviços, associado às inovações ecológicas, requer uma espécie de salvaguarda normativa para manter o espaço rural a salvo do risco de interdição pelas inovações econômicas normais, estritamente vinculadas à economia de mercado.

É nesse contexto que incluímos a proposta de um zoneamento agrohidroecológico do espaço rural brasileiro, nos marcos da política agrícola e agrária do país. De um lado, funciona como condição de possibilidade à disseminação da Economia Ecológica; por outro, compreende a restrição em vários graus das atividades econômicas regionalizadas com teores evidentes de degradação ambiental.

Os termos da proposta, mais adiante detalhada, podem ser assim sintetizados:

O zoneamento ora proposto, de caráter agrohidroecológico para Mesorregiões Homogêneas do IBGE, tem como objetivo estabelecer indicadores empíricos de produção ecológica e simultaneamente restringir as formas de produção antiecológicas. Ele operaria a priori com três indicadores sintéticos: a) consumo agrícola de água por tonelada produzida (ou por hectare cultivado) em dada bacia hidrográfica encravada na Mesorregião de referência; b) quantidade de produtos agrotóxicos utilizados por hectare cultivado; c) níveis de emissão de gases do efeito estufa conversíveis em equivalente do dióxido de carbono por hectare cultivado, de distintas culturas regionais.

Todos os indicadores são medidos por estabelecimento agropecuário, de forma direta ou amostral. A cada um deles estaria associada uma classificação em ordem decrescente de A para E, que refletisse um ordenamento da mais baixa à mais alta entropia no consumo da água e despejo de resíduos agrotóxicos no solo. O último indicador informa níveis mínimos e máximos da emissão de gases do efeito estufa por hectare agrícola cultivado ou explorado para fins pecuários.

Os valores observados em cada mesorregião dos indicadores supracitados (ver detalhamento mais adiante) são comparados aos valores prescritivos do zoneamento para aquela mesorregião, de sorte a propiciar prêmios ou restrições aos estabelecimentos agropecuários responsáveis pelos respectivos indicadores.

Assim, as notas mais altas, correspondentes aos níveis A, B e C, situados nos intervalos prescritivos sucessivos de mais baixa entropia à mais alta entropia, premiariam em ordem decrescente os estabelecimentos agropecuários nos seus contratos com a política agrícola e obrigações para com a política fiscal. Esses critérios se aplicariam respectivamente às políticas de crédito rural, preços de garantia e seguro rural, por um lado; e de outro lado, aos favores fiscais da Cédula G do Imposto de Renda.  A nota D, também dentro do intervalo prescritivo respectivo, é de sinal amarelo – retira quaisquer favores financeiros e fiscais anteriormente concedidos para novas safras agrícolas. Também se lhes acomete a condição de exclusão de quaisquer operações de anistia, perdão ou recomposição de débitos para com a União. E, finalmente, a nota E é de sinal vermelho, que, uma vez identificada, classifica administrativamente o estabelecimento nos seus espaços respectivos à condição de não cumprimento da função social e ambiental da terra, passível a ulteriores sanções previstas nos Artigos 184 a 186 da Constituição Federal. Essa condição limite não exclui as sanções de exclusão das premiações, aplicáveis à condição anterior (nota D).

O zoneamento ora proposto nos parece o método pragmático mais apropriado, para pedagogicamente induzir a mudança de estrutura produtiva agrária, no conceito da utilização econômica. Ao mesmo tempo contém uma cláusula limite, até hoje não levada a sério: a tipificação administrativa do critério constitucional para desapropriação do imóvel rural, inadimplente com sua função social-ambiental (Art. 186), cuja destinação serviria a programa de reforma agrária com sentido nitidamente agroecológico.

As diversas etapas para o zoneamento agrohidroecológico

A base regional prévia

O ponto de partida do zoneamento como instrumento do planejamento agrícola é o conceito de região geográfica homogênea, para o que adotamos o conceito de Mesorregião do IBGE (1990-92), definida como:

 …áreas individualizadas em uma dada Unidade da Federação, que apresentam formas de organização definidas pelas seguintes dimensões: o processo social como determinante, o quadro natural como condicionante e a rede de articulação como elemento de articulação espacial.

Essas Mesorregiões Homogêneas (ou geográficas) contêm em seu interior um número variável de microrregiões, com especificidades quanto à organização do espaço, referida à estrutura produtiva – agropecuária, industrial, extrativa e de pesca. O IBGE definiu mesorregiões para todos os estados brasileiros, mesmo para aqueles territorialmente menores. No caso do Rio Grande do Norte, por exemplo, o IBGE definiu quatro mesorregiões.

Portanto, é sobre as Mesorregiões do IBGE que iniciamos a descrição do processo do zoneamento, compreendido nos passos 2 a 5 a seguir.

A regionalização fundiária prévia

Tendo em vista o fato de que o zoneamento ora proposto contém também prescrições no limite, de mudança da estrutura agrária, é necessário inserir as Mesorregiões Homogêneas referidas no tópico anterior em uma espécie de regionalização preliminar dos regimes fundiários constitucionais. Em termos de técnica geográfica, o exercício consiste em superpor a regionalização das Mesorregiões Homogêneas do IBGE ao mapa também do IBGE de Ocupação da Área Territorial (Cf. Censo Agropecuário de 2006), fazendo a devida associação aos regimes fundiários constitucionais, que podem aí ser dedutivamente identificados, a saber[17]:

i)    das terras destinadas à produção agropecuária (Arts. 184-186), para as quais o IBGE especifica geograficamente a área de todos os estabelecimentos agropecuários; ii) das áreas indígenas reconhecidas e cartografadas (Art. 231) e dos territórios quilombolas idem (ADCT-Art. 68) ainda não cartografados pelo IBGE; iii) das áreas de Unidades de Conservação (Art. 225); iv) das áreas que o IBGE classifica indefinidamente como de “Outras ocupações”, no interior das quais é possível identificar subconjuntos legais da categoria de domínio da União (Art. 20) – zonas de fronteira, terrenos de marinha e terras devolutas da União e dos estados já arrecadadas.

O zoneamento até aqui desenhado – superposição das Mesorregiões com o Mapa de Ocupação Territorial (este último referenciado a regimes fundiários constitucionais que regulam essas ocupações) – constitui um primeiro passo com vistas à identificação das superposições ilícitas do ponto de vista fundiário, quais sejam: intrusão de estabelecimentos agropecuários em territórios indevidos (terras étnicas e Unidades de Conservação) e, principalmente, processos de grilagem em zonas definidas pelo IBGE como de Outras ocupações.

Esse primeiro passo do zoneamento é especialmente útil para ações administrativas e judiciárias, tendo em vista a verdadeira regularização fundiária dos territórios segundo os seus desígnios constitucionais, que incluem a reforma agrária.

Outra superposição cartográfica também relevante, que por ora não será objeto deste texto, seria o das Macrorregiões ou biomas – Amazônia, Cerrados, Pantanal, Semiárido, Mata Atlântica, Pampa etc. –, aplicável a outros objetivos de planejamento.

Levantamento de dados primários e zoneamento prescritivo

O processo do zoneamento ora em discussão contém partes predominantemente técnicas, de que estamos tratando nesta seção; e outras partes essencialmente ético-políticas, que trataremos na seção seguinte (n. 7), todas necessariamente articuladas.

A construção técnica da proposta precisa partir de um levantamento primário, ou de fonte censitária, dos três indicadores empíricos que definimos: 1- consumo agrícola de água por hectare cultivado; 2 – utilização de agrotóxicos por hectare cultivado e 3) emissão de gases do efeito estufa por hectare cultivado ou explorado.Essas informações unitárias são ponderadas em cada região de pesquisa, pelo peso respectivo dos estabelecimentos na produção total da Microrregião de referência.A pesquisa desses indicadores nas Mesorregiões Homogêneas do IBGE pode ser feita de duas maneiras: pelo confronto de dados diretos dos dois últimos Censos Agropecuários do IBGE (2006 e 2017), naquilo que é possível obter mediante informação direta do próprio Censo, ou ainda de forma indireta e dedutiva, com base nesses mesmos dados e auxiliado por informação técnica específica.

Exemplo: estabelecimentos da microrregião X; área cultivada Y; tecnologias utilizadas: 1,2,3 (1 = uso de agrotóxicos, 2 = uso de irrigação; 3 = monocultivo predominante).

A associação das informações citadas com as informações técnicas respectivas de uso por hectare permite chegar à informação dos três indicadores unitários, devidamente ponderados pelo tamanho das áreas agropecuárias exploradas na respectiva Microrregião.

Também é possível realizar pesquisa primária direta em algumas Mesorregiões, a depender dos recursos disponíveis em cada caso, para aferir situações específicas de dados dos estabelecimentos. Contudo, não vamos entrar nesse grau de detalhamento, que por ora é desnecessário.

Pragmaticamente, o que é viável de imediato é a pesquisa de dados secundários com base nas fontes censitárias. Essa pesquisa nos permitiria conhecer em dois pontos recentes do tempo – 2006 e 2017 – a evolução real dos indicadores unitários ponderados no Mapa das Mesorregiões Homogêneas para cada estado da federação. Essa base de dados nos fornece a distribuição de frequência, dos níveis mínimos aos níveis máximos em cada região do país; e ainda permite a comparação temporal em uma década.

Temos, com base nesses dados, condições de estabelecer o ranking real dos níveis mínimos e máximos de entropia econômica da agropecuária brasileira, base empírica indispensável à definição dos níveis prescritivos do zoneamento A, B, C, D e E (ver tópico 5), com direta incidência normativa sobre o Plano Safra Agropecuário.

Por outro lado, o levantamento empírico, devidamente ponderado, é ainda uma informação parcial. É diretamente útil em primeira instância para alguns indicadores de alta entropia explícita, a exemplo da emissão de gases do efeito estufa ou da distribuição de agrotóxicos no território. Mas o indicador de consumo da água precisa ser interpretado em cada Mesorregião levando-se em conta a situação da(s) bacias hidrográfica(s) encravadas na Mesorregião. Nesse sentido, não há uma informação direta censitária sobre alto ou baixo consumo de água por estabelecimento – à exceção provavelmente dos pequenos – sem que se defina a efetiva capacidade de recarga hídrica de cada bacia no período mais recente.

Isso posto, para estabelecer valores prescritivos de A até E para o consumo de água por estabelecimento, compatível com uma gestão hídrica de interesse geral desse bem comum, é necessária uma avaliação regional da situação da bacia hidrográfica em consideração.

A definição dos níveis prescritivos regionalizados

Essa etapa do zoneamento é simultaneamente normativa e técnica. Herda toda a informação precedente, apresentada na seção anterior, e lhe confere um caráter normativo, aplicável ao Plano Safra (ver tópico 5).

As prescrições normativas aplicam-se aos estabelecimentos estratificados cujos titulares são pessoas físicas e jurídicas. Estas se relacionam com a política agrícola mediante contratos ou obrigações, respectivamente com a política agrícola – crédito rural, preços de garantia e seguro rural – e a política fiscal (Imposto de Renda) e recomposições de débitos com a Fazenda pública; sendo por essas políticas em geral objeto de favores do Estado.

O que se vai definir com base na informação precedente é uma espécie de matriz de prêmios e restrições, substitutiva à situação atual da política agrícola, tendo por base os três indicadores citados, relativamente à sua incidência regional em termos de suas implicações ecológicas.

Isso posto, é relevante considerar: a) o indicador unitário; b) a ponderação do indicador na região respectiva em termos proporcionais da quantidade média produzida; c) a informação qualitativa externa ao Censo Agropecuário relativamente aos níveis toleráveis de uso de água para fins agropecuários; que uma vez obtida permite a construção da matriz com as mesmas características dos demais indicadores, com a seguinte configuração genérica:

Matriz de Confronto de Indicadores – Reais e Prescritivos à Inovação Ecológica

 Indicador unitárioIndicador ponderadoNíveis prescritivos do indicador unitárioNíveis prescritivos do indicador ponderado
 2006     20172017A B C D EA B C D E
Estratificação por área cultivada (ha)     
0-10     
10-20     
20-50     
50-100     
100-500     
500-1000     
>1000     

As três matrizes respectivas dos indicadores – água, agrotóxico e carbonização – contidas no zoneamento definem um ranking de prêmios e restrições ao Plano Safra em elaboração para cada ano, considerada a informação precedente obtida no nível microrregional a ser utilizada no ano safra em planejamento, na forma que se apresenta no tópico seguinte.

O zoneamento no Plano Safra

A escolha do Plano Safra como instrumento de fomento e restrição às inovações econômicas que estão sendo indicadas é a peça essencialmente político-administrativa desta proposta. Isso implicaria a inclusão da matriz de prescrições para percepção de incentivos financeiros e fiscais no ano agrícola que se inicia para os contratos de crédito rural, preços de garantia e seguro rural aos titulares de estabelecimentos classificados nos níveis A, B e C, em ordem decrescente, e de restrições para os níveis D e E, sendo que de maneira similar para as obrigações fiscais do Imposto de Renda e de recomposições de dívidas fiscais e previdenciárias para com a União, relativamente ao ano fiscal subsequente.

Sobre as regras de gradação ou exclusão dos incentivos financeiros e fiscais associados à tipologia prescritiva que vai de A até E, creio que o exercício é prematuro neste nível de abordagem, visto que envolveria uma análise muito detalhada de políticas agrícolas e de seu recorte fiscal-financeiro, o que extrapolaria os objetivos deste texto.

Por sua vez, a conversão da Matriz de Prescrições, baseada em indicadores pretéritos microrregionais e convertida ao Plano Anual de Safra, envolve várias mediações políticas e jurídicas, até mesmo porque, em mais de meio século de edição contínua, o Plano Safra sempre operou com incentivos dirigidos a produtos determinados. Agora, no entanto, estaria se dirigindo a estabelecimentos rurais estratificados e vinculados a indicadores de entropia da terra.

Provavelmente a grande objeção dos excluídos dos incentivos financeiros e fiscais seria a discriminação contra o estabelecimento em sua zona respectiva, sem prova direta de que este se apresentasse na faixa de indicadores ponderados, objeto da exclusão de favores D e E ou da sua redução para B e C.

Essa objeção pode ser corrigida desde que o estabelecimento considerado faça a prova direta, contra as evidências regionais do Censo Agropecuário para as microrregiões consideradas (na microrregião sob análise), de que é credor de uma outra classificação.

Evidentemente, quanto maiores os estabelecimentos e também os seus indicadores ponderados regionais, tanto maiores devem ser as objeções. Mas, para isso, o zoneamento dispõe de meios empíricos adequados para defender sua normatividade, apoiada em tipologias de fácil aferição.

Outra questão política relevante é sobre a definição final das prescrições A, B, C, D e E  dirigidas a estratos de estabelecimentos rurais nas microrregiões associadas às Mesorregiões respectivas. Como ponderar os três indicadores? É válido usar o indicador unitário ou apenas o indicador ponderado? Qual o foro técnico político que realiza essas definições? Como fica a relação federativa na situação – do estado para com a União, sendo cada estado sede das Mesorregiões sob influência do Plano e a União responsável pela elaboração e financiamento do Plano Safra? E, finalmente, que papel cumpre a sociedade civil neste processo, questão que não ficará como interrogativa, mas merecerá abordagem na próxima seção.

Por último, é importante observar que o zoneamento prescritivo ora proposto, juntamente com o zoneamento cartográfico preliminar, são instrumentos técnicos importantes a outras políticas agrícolas dirigidas à mudança de estrutura produtiva e da estrutura agrária regional, que podem ser objeto de ação dos níveis estadual e municipal da Federação.

Obviamente, sem a adesão do governo federal, a própria ideia de planejamento de políticas de inovação ecológica se enfraquece, visto seu mais alto grau de controle da política agrária, de desenvolvimento científico-tecnológico e ambiental. Mas há também espaço constitucional para políticas simultâneas dos demais entes federativos.

Justificar e legitimar a proposta: o enfoque ético-político

A proposta técnica do zoneamento agrohidroecológico é apenas um ponto de partida para o debate ético-político nacional, com clara incidência e diferenciação regional sobre as justificativas para sua adoção.

É bom relembrar, como fizemos anteriormente, de que se trata de uma condição necessária à transição ecológica, que requer mediação normativa de caráter político face às normais interdições da economia convencional e de seus arraigados interesses.

É preciso, portanto, dedicar uma parte importante deste trabalho, como também da implementação concreta do zoneamento, ao esforço de convencimento de mentes e corações sobre a legitimidade do que ora é proposto. Pois é na justificativa e legitimação social de uma proposta técnico-política que se consolida a raiz do fenômeno político – a base ética imprescindível –, para obter apoio às mudanças de rumo ao projeto de desenvolvimento rural subjacente.

Vou iniciar pela justificativa dos indicadores empíricos escolhidos, com omissão de outros que em determinadas regiões poderiam ser mais significativos.

Os indicadores – consumo agrícola da água, utilização de agrotóxicos e emissão de gases do efeito estufa – são informações que podem ser disponibilizadas em todo o espectro de Mesorregiões do país e dão conta, sinteticamente, de fenômenos sociais conhecidos e associados: crises de abastecimento de água, contaminações pessoais e ambientais por determinada tecnologia agrícola e consequências das mudanças climáticas.

Haverá certamente situações locais em que se sobrepõem outras variáveis – queimadas, contaminações de alimentos, destruição de ecossistemas, etc –, algo que não está excluído por complementação. Mas quando pensamos em um índice sintético nacional, aferível e verificável em todas as regiões do país e significativo como indicador de entropia da terra, tivemos que fazer a escolha mais restrita.

O consumo agrícola de água, juntamente com a contaminação de águas superficiais e de aquíferos pelo uso de agrotóxicos ou outros resíduos tóxicos, são informações do maior interesse geral, até porque afetam a disponibilidade contínua de um bem essencial à vida. Operar com essa informação, seja em biomas de forte escassez hídrica, como é o caso da Bacia do São Francisco, seja em biomas de abundância relativa, como o Pantanal, o Planalto Paulista, a Amazônia, etc., significa uma primária prestação de serviço público a vários destinatários.

Por sua vez, a emissão de gases do efeito estufa é um indicador já legitimado internacionalmente pelas Conferências do Clima, com conhecidas implicações sobre a carbonização da camada mais próxima da atmosfera, além de outros efeitos predatórios internos.

Por seu turno, com a utilização desses dados, levantados em dois Censo Agropecuários mais recentes, com informações estratificadas até o nível de estabelecimento rural da microrregião, é possível estabelecer uma discussão local sobre a normatividade do próprio zoneamento. A própria definição dos foros locais ou estaduais de participação no controle da política ambiental, com necessária presença da sociedade civil organizada, poderia ser um dos meios de mobilização social para acompanhar esse processo.

O objetivo maior de organizar e promover a discussão do zoneamento por Mesorregião não é propriamente técnico, mas sim ético-político. É forma de socialização de conhecimento e participação efetiva em atos de interesse público, com calendários estabelecidos, e que poderia se prestar ao papel de verdadeira formação da cidadania relativamente aos padrões de desenvolvimento rural implícitos na proposta do zoneamento regional.

Outras inovações ecológicas, a exemplo das cinco áreas prioritárias antes enunciadas – energia limpa, agricultura ecológica, gestão hídrica, reciclagem de resíduos e reestruturação fundiária –, com incidência específica em dada Mesorregião, podem também ser campo de interação, chamados a participar da iniciativa local.

Claramente, programas e políticas agrícolas e ambientais mais amplos no domínio do desenvolvimento rural, que não se restringem ao Plano Safra Agropecuário, podem se apropriar da ideia-força do zoneamento, que é uma linguagem de prioridade à utilização do espaço regional. Nesse sentido, o espaço político local do zoneamento agrohidroecológico é uma espécie de embrião legitimador do movimento ecológico, no contexto de participação no âmbito do Estado democrático.

Mas é preciso que se advirta: há zonas institucionais interditadas à proposta ora em discussão – o atual governo federal e o seu Ministério do Meio Ambiente, por exemplo. E em alguns estados também se replicam situações parecidas. Nos níveis locais ou regionais específicos onde há clara associação entre crime ambiental e exploração primária capitalista, não se poderia cogitar o estabelecimento dos foros de participação democrática para efeito de gestão política e formação da cidadania. Mas nesses casos emergem relevantes situações de denúncia que podem permitir apelo à judicialização.

Apenas nos espaços onde subsistem condições de prevalência do Estado democrático é admissível cogitar a instauração dos processos de legitimação política aqui levantados.

Políticas e planejamento do desenvolvimento rural em continuidade

Toda a discussão conceitual sobre desenvolvimento que fizemos nas seções iniciais deste texto – seção 2, sobre as armadilhas do desenvolvimento; seção 3, sobre o espaço rural e sua utilização atual; e seção 4, sobre fundamento das inovações ecológicas – precisa ser interpretada à luz das políticas de transição ecológica. Nesse contexto, a proposta do zoneamento é para ser lida como ponte; e nunca uma finalidade em si.

Muito ainda temos que avançar na linha da construção de políticas de desenvolvimento, até mesmo porque as inovações econômicas de estilo estritamente mercantil criam problemas em muitos outros campos, além da agricultura, dos recursos hídricos e das mudanças climáticas, objetos parciais principais do zoneamento proposto.

Sobressaem relevantes na atualidade vários outros campos de pesquisa e atuação política – como saúde ambiental, organismos geneticamente modificados, transportes e, destacadamente, política energética[18]– que clamam igualmente por planejamento de políticas públicas de desenvolvimento, com enfoque na inovação ecológica.

A comunidade de praticantes e estudiosos da Ecologia e de suas aplicações, a meu ver, precisa ter clareza sobre a imprescindibilidade do seu trabalho na antecipação dos rumos do novo papel do desenvolvimento e, para tanto, articular inovações econômico-ecológicas que, embora aparentemente inviáveis em conjunturas ultra adversas, contêm sinais de necessidade premente.

Por último, creio que há também outro meio seminal para antecipar políticas e projetos de desenvolvimento alternativos ao status-quo: a educação em todos os níveis sobre os riscos do padrão de crescimento atual e a formulação didática das inovações ecológicas em curso no mundo inteiro.

É preciso ter em conta que são justamente nos momentos de crise aguda e contínua do sistema econômico dominante que se abrem as oportunidades mais fecundas para a inovação no âmbito da chamada economia crítica, no seio da qual se insere a Economia Ecológica com um conjunto de temas sensíveis.

Trazer essas questões para o âmbito das políticas públicas de desenvolvimento requer mediações, que precisam ser objeto de análise e adaptações a cada contexto histórico e ecológico.

Conclusões finais

O crescimento econômico adquiriu entre nós um certo grau de consenso pragmático e legitimidade política, quase sempre em contraposição à estagnação, que em certo sentido preteriu discussões mais aprofundadas sobre causalidades e implicações, como também das armadilhas conceituais que estão contidas no seu homônimo teórico – o desenvolvimento.

Ao longo do século 20 consolidou-se uma teoria do desenvolvimento econômico, que atribui ao progresso técnico a condição de matriz geradora do desenvolvimento econômico. Nesse contexto, comparecem as inovações técnico-econômicas à maneira teorizada por Joseph Schumpeter como vetores efetivos à elevação da produtividade do trabalho em termos do sistema econômico, gerando em consonância crescimento econômico autossustentado. O mesmo autor também teorizou sobre as crises cíclicas, oriundas das ondas de progresso técnico na economia capitalista, interpretando-as à luz da sua conhecida tese da destruição criadora[19].

Todo o consenso teórico e político na esfera dos pesquisadores e agentes do desenvolvimento econômico contém a armadilha principal naquilo que é seu próprio núcleo teórico – a inovação técnica como matriz do desenvolvimento –, quando incorporamos a relação do progresso técnico com o espaço da natureza. Essa tem sido a tarefa crítica essencial da Economia Ecológica, sistematicamente formulada a partir dos anos 1970, cujo ponto de objeção principal está na destruição irreversível dos bens da natureza que a destruição criadora capitalista acarretou e ainda acarreta.

A Economia Ecológica, misto de novo paradigma científico com experiência econômica alternativa, vem propondo o conceito distinto da inovação ecológica na economia como critério chave a uma ideia de desenvolvimento sustentável. Esse é conceito qualitativamente antinômico à inovação econômica estrito senso e persegue um outro objeto: a relação harmônica da economia com as forças da natureza – e não sua subordinação utilitária-individual ao estilo praticado pelos mercados autorregulados por seu sistema de preços.

O debate do pensamento ecológico, refletido pela economia ecológica, é proposto de forma mais sistemática pela ética da responsabilidade ecológica, cujo formulador original, o filósofo Hans Jonas, identifica no próprio crescimento exponencial dos aparatos técnico-científicos ao longo das várias Revoluções Industriais, desde final do século 18, um risco iminente de destruição irreversível dos bens da natureza. E, nesse contexto, há um único ser da natureza com capacidade pensante, que seria responsável para estabelecer os limites preventivos e corretivos desse processo de destruição iminente.

Essa ética da responsabilidade (ecológica) colocou sub judice um conjunto muito amplo de autoproclamadas revoluções tecnológicas, a exemplo da chamada Revolução Verde na agricultura, sob influxo de inovações biológicas, químicas e mecânicas, que o Brasil adotou sob a etiqueta de modernização da agricultura no período 1965-85. Viria a retomá-la com destaque nos anos 2000, agora sob o signo da especialização em commodities no setor externo e reestruturação da chamada economia do agronegócio.

Passado mais de meio século da Revolução Verde e de suas congêneres, acumulam-se evidências históricas dos efeitos de alta entropia dessas inovações: solos doentes, colheitas infestadas de pragas, desertos encharcados e agricultores endividados, para utilizar uma síntese muito significativa da experiência indiana, relatada por Vandana Shiva[20].

Tais limites agrícolas, muito evidentes em países superpovoados como a Índia e a China, aparentemente poderiam ser ignorados por outros, como o Brasil, cujo processo de expansão da fronteira agrícola se dá em paralelo à sua reinserção no modelo da Revolução Verde em pleno século 21.

Por outro lado, as objeções pertinentes da ética da responsabilidade e da própria formulação teórica da Economia Ecológica sobre os vários riscos da agricultura de alta entropia não nos podem deixar inertes para o caminhar irreversível da catástrofe. E esta está implicada no modelo de superexploração do setor primário, replicando técnicas da Revolução Verde há pelo menos duas décadas, sob farto incentivo fiscal e financeiro do Estado.

A questão pragmática e ao mesmo tempo teórica central que se põe no contexto brasileiro é de abrir espaço político à inovação econômico-ecológica e ao mesmo tempo restringir a liberalidade de propagação das inovações estritamente de economia de mercado (autorregulada) comprovadamente danosas ao ambiente.

É importante perceber algo inescapável. A opção pela Economia Ecológica como paradigma de inovações no desenvolvimento, especialmente no desenvolvimento rural, implica a ruptura com o velho paradigma estritamente mercantil da Revolução Verde e de quaisquer outras formulações de economia ambiental subordinadas ao velho paradigma dos mercados autorregulados, a exemplo da chamada economia financeira verde. Os modelos éticos subjacentes à Economia Ecológica e ao utilitarismo individual da economia mercantil não combinam.

Mediações técnico-políticas são necessárias para fazer a transição ecológica. E neste texto propomos uma mediação: a do zoneamento agrohidroecológico, incorporado aos Planos de Safra Anuais. Há outras experiências mais avançadas em outros contextos históricos, a exemplo da União Europeia, que em algum momento poderemos seguir algumas pistas.

 Por sua vez, o que nos parece mais oportuno no contexto histórico e social brasileiro é aproveitar para colocar as experiências impostas pelos vários déficits do modelo atual de crescimento agropecuário – das próprias contas externas, do abastecimento de água, do abastecimento alimentar, das contaminações por agrotóxico, da forte emissão de gases do efeito estufa etc. – na conta das inovações técnicas mercantis, para assim obter legitimação e direitos normativos específicos às inovações ecológicas na política agrícola.

A proposta do zoneamento é pragmática, dentro de um dado corpo teórico ecológico. Contém um sentido seminal, descentralizado regionalmente e necessariamente requisitante de complementações às políticas de transição ecológica mais estruturadas nos campos da produção alimentar e energética; como também na gestão de bens comuns – gestão hídrica e de saúde pública.

Posta a questão nesses termos, qual seja de uma proposta embrionária de mediação técnico-política para fazer a transição do modelo de crescimento econômico convencional para um estilo de desenvolvimento sustentável, restam-nos várias questões a considerar sobre conteúdos específicos das políticas de transição. Mas essa é uma discussão que já transcende os limites deste texto e que certamente poderemos fazê-la em oportunidades continuativas ao texto que ora estamos apresentando.

Finalmente, creio que há um misto de objeções do mainstream econômico e ao mesmo tempo uma evidência crescente de vozes clamando por respostas responsáveis, na linha da ética da responsabilidade ecológica, como também das Igrejas comprometidas com as ecumênicas análises e proposições da Encíclica Laudato Si. Isso tudo nos alerta e estimula a preparar o País para o dia seguinte, tendo a sociedade civil organizada do movimento agroecológico, a exemplo da AS-PTA e ANA, papéis de relevo a exercer.

ANEXO ESTATÍSTICO  

Tabela 1 – Saldos de Transações Externas do Brasil em Médias Trimestrais: 1995 a 2019 (Em bilhões de dólares)

PeríodosSaldo- Balança ComercialSaldo – Contas de Serviços e RendasTotal da Conta Corrente
1995/1999                           (-) 4,75(-) 23,71(-) 26,22
2000/2002(+) 5,01                              (-) 16,26                (-) 18,36
2003/2005                      (+) 34,07(-) 27,86                (+)  9,92
2006/2007                       (+) 43,06 (-) 39,83     (+)  7,59
2008/2010                     (+) 24,45  (-) 60,25(-) 33,30
2011/2013                 (+) 17,17            (-) 82,87                  (-) 62,64
2014/2016                    (+) 17,90(-) 82,24                (-) 57,47
2017/2019   (+) 52,13(-) 88,98(-) 35,78

Obs. O Saldo da Conta de Transações Correntes com o Exterior é a soma algébrica das Balanças Comercial, de Serviços e de Transferências Unilaterais. Os Serviços a partir de 2016 passaram a ser decompostos em Serviços e Rendas, que aqui são agregados na mesma coluna.

Gráfico 1 – Ocupação da área territorial brasileira (ha)


[1] Ver o conceito de inovação econômica exaustivamente exposto no Capítulo 2 de O fenômeno fundamental do desenvolvimento – da teoria do desenvolvimento econômico (SCHUMPETER, 1977). Está apresentado didaticamente na página 76, quando o autor se refere a cinco tipos de mudanças na atividade econômica, em particular ou combinadas: 1) introdução de novo produto; 2) adoção de novo método produtivo; 3) abertura de novo mercado; 4) adoção de nova matéria-prima ou fonte de energia; 5) nova organização industrial.

[2] Para uma abordagem analítica sobre certo consenso das várias escolas de pensamento econômico a respeito do papel do progresso técnico no desenvolvimento econômico, ver Desigualdades sociais face ao desenvolvimento científico e tecnológico…(DELGADO, 2017).

[3] O conceito de paradigma do desenvolvimento econômico é aqui utilizado no sentido de paradigma científico, na forma que o filósofo da ciência Thomas Kuhn define no Capítulo 4 do livro Estrutura das revoluções científicas (1998).

[4] Estou fazendo aqui a distinção de uma economia autorregulada pelo seu sistema de preços, sistema típico do capitalismo da era industrial, segundo Karl Polanyi. Distingue-se de todos os demais sistemas econômicos pretéritos ou alternativos que, embora convivam com mercados organizados, não são considerados economias de mercado.

[5] O argumento clássico das vantagens comparativas naturais no comércio externo, que David Ricardo usou no seu conhecido livro de 1815 (Princípios de Economia Política e tributação), é relançado no Brasil dos anos 2000 em contexto que é analisado no Capítulo 4 de Reestruturação da Economia do Agronegócio (DELGADO, 2012).

[6] Ver dados sobre contas externas do Brasil nas duas últimas décadas, confrontadas com a década dos anos 1990, na Tabela I do Anexo Estatístico.

[7] Ver A violência da Revolução Verde… (SHIVA, 2015).

[8] SHIVA, Op. cit., p. 9.

[9] Para uma análise do tema ético-ambiental, ver Para uma ética ambiental: percursos fundamentais, de Maria José Varandas in Neves et al. (Orgs). Ética aplicada ambiente, p. 31-55; com especial destaque ao tópico que trata de Hans Jonas – Uma ética para o futuro (p. 35-41).

[10] Para uma abordagem da Ecologia como nova cosmovisão, ver Capítulo 5 de Ética da vida (BOFF, 1999).

[11] Ver conceitos de paradigma científico, ciência normal e revolução científica in KUHN, Thomas (1998).

[12] Ver Georgescu-Roegen, Nicholas. Energia e Mitos Econômicos, Revista Economia Ensaios, v.19, n. 2, Uberlândia, MG, 2006.

[13] A Sociedade Brasileira de Economia Ecológica (ECOECO), fundada no início dos anos 1990, já realizou 13 Encontros Anuais, o último dos quais em setembro de 2019 em Campinas -(UNICAMP). Participa da The International Society for Ecological Economics (http//www isoeco.org.br).

[14] Entre 2004 e 2018 a produção de energia de fontes renováveis se elevou na União Europeia de 9,6% para 18,9 % do consumo bruto total, com compromisso de manter esse crescimento em ritmo similar até 2050 (Fonte de dados: Estatísticas de Energias Renováveis da União Europeia).

[15] A agricultura biológica conta com todos os estímulos da Política Agrícola Comum da União Europeia.

[16] Cf. Recursos Naturais e Sustentabilidade (SOLOW, 2014, p. 138-139).

[17] Ver no Anexo Estatístico a figura geométrica do mapeamento pelo IBGE de 100% do território nacional, segundos distintos conceitos de Ocupação da Área Territorial do Brasil.

[18] Para uma análise exaustiva de várias políticas setoriais, com enfoque ético-político, adotadas pela União Europeia, ver Ética aplicada ambiente (NEVES et al., 2017).

[19] O processo da destruição criadora que Joseph Schumpeter trata no Capítulo 7 do livro Capitalismo, socialismo e democracia é essencialmente um processo competitivo industrial, relacionado aos ciclos de inovação técnica, crescimento econômico e crises periódicas. Mas também se reporta às questões institucionais em vários outros capítulos, analisando as repercussões das crises cíclicas sobre a estabilidade das instituições políticas e sociais. Não toca na problemática ambiental, que neste livro – dos anos 1940 – ainda não é tema relevante à reflexão das ciências sociais. Menos ainda o é a Teoria do desenvolvimento econômico, do mesmo autor, cujo texto original é de 1911.

[20] SHIVA, Op. cit., p. 9.

BIBLIOGRAFIA CITADA

BOFF, Leonardo. Ética da vida. Brasília: Letra Viva, 1999.

DELGADO, Guilherme C. Do capital financeiro na agricultura à economia do agronegócio – mudanças cíclicas em meio século (1965-2012). Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2012.

DELGADO, Guilherme C. Desigualdades sociais face ao desenvolvimento científico e tecnológico: antinomia ou problema histórico?. Ciência & Saúde Coletiva, v. 22, n. 7, 2017.

GEORGESCU-ROEGEN, Nicholas. Energia e mitos econômicos, Revista Economia Ensaios, v. 19, n. 2, p. 7-51, 2005.

KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Ed. Perspectiva AS, 1998 (5ª edição);

NEVES, Maria do Céu P. et al (Org.). Ética aplicada: ambiente. Lisboa: Ed. Almedina AS, 2017.

RICARDO, David. Princípios de Economia Política e Tributação. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

SCHUMPETER, Joseph.  Teoria do desenvolvimento econômico. São Paulo: Abril Cultural, 1982.

SCHUMPETER, Joseph. Capitalismo, socialismo e democracia. Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura, 1961

SHIVA, Vandana (2015) – A Violência da Revolução Verde – Agricultura, Ecologia e Política do Terceiro Mundo, Lisboa: Ed. Mahatma, 2015.

SOLOW, Robert (2014) – ‘Recursos Naturais e Sustentabilidade’ in Solow, Robert (Org.)- Os Desafios do Desenvolvimento, Lisboa: Clubedoautor, 2014. 

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