Nós, que amamos tanto o SUS…

…e desejamos transformá-lo. Dois cientistas políticos imersos nas lutas sociais sustentam: Saúde pode ser eixo de nova onda de construção de políticas públicas para desmercantilizar a vida. Para isso, é preciso um horizonte político de esquerda

Poderá o SUS – num novo cenário político, desenhado após a vitória sobre o fascismo – servir de referência para a construção de novas políticas públicas no Brasil e daquilo que alguns chamam de Estado Social no século 21? Se se espera que ele cumpra tal papel, como livrá-lo de seus déficits, entre os quais estão o financiamento inadequado, a captura de parte de seu fundo público pela medicina privada, os vazios assistenciais, os espaços de participação insuficientes – ainda que reais? E, mais importante: como reconvocar o espírito da luta pela Reforma Sanitária, sua atitude radical contra a desigualdade, as heranças coloniais e as misérias do capitalismo dependente – agora que uma nova “conjuntura crítica” se arma e ressurgem as chances de questionar uma hegemonia opressora?

Na noite de 2/8, os cientistas políticos Sônia Fleury e Juarez Guimarães enfrentaram por quase duas horas este feixe de questões complexas, em novo diálogo no âmbito do projeto Resgate. Intitulado O SUS foi reconhecido – e agora?, o encontro entre eles foi denso e provocador. Pode ser acompanhado na íntegra, no vídeo acima (uma transcrição está sendo preparada). Tentar resumi-lo, no espaço e urgência deste texto, seria temerário. Mas é possível destacar três das questões muito instigantes suscitadas por Sônia e Juarez. Por meio delas, o leitor terá alguma noção da riqueza do debate.

A audácia da Reforma Sanitária e os limites do SUS institucionalizado

Vale a pena tornar real um projeto ousado e profundamente transformador, quando as condições em que é possível fazê-lo deformarão a ideia original? O SUS, explicou Sônia, surgiu sob a marca desta contradição. Sua raiz é o movimento pela Reforma Sanitária,

que se articulou a partir de meados dos anos 1970. Sob pressão da ditadura, do AI-5 e da censura e repressão, um grupo de jovens militantes e pensadores formulou não apenas a ideia de um sistema sanitário, mas a de uma nova hegemonia política e cultural, que viam como capaz de transformar o país.

Seu projeto desafiava frontalmente uma sociedade marcada por desigualdades. Começava por propor, do ponto de vista conceitual, uma nova visão de Saúde – tida não mais como ausência de enfermidades, mas como a garantia do bem-estar, em seus múltiplos aspectos. E esta virada desdobrava-se num conjunto de princípios então revolucionários: atendimento universal (até então, tinham direito no INPS-Inamps apenas os trabalhadores formais), público (a ditadura já contratava hospitais privados), integral (relacionado à nova visão sobre Saúde) e descentralizado (em oposição à concentração de poderes buscada pelos militares).

Esta concepção – minoritária a princípio, mas muito capaz de dialogar com o ascenso das lutas democráticas – abriu caminho rápido. Ofereceu respostas ao declínio e queda da ditadura, ao colapso (inclusive financeiro) da velha estrutura da Saúde e à ebulição de lutas sociais que desembocou na Constituição de 1988. Mas – e aqui está uma singularidade brasileira – só pôde ser implementada em meio a limites férreos: os do neoliberalismo, então pujante, e os do sistema político brasileiro – elitista, arcaico e fisiológico.

Foi esta a dialética entre o movimento pela Reforma Sanitária e o SUS, narrou Sônia. O Sistema Único de Saúde não poderia ter existido sem as inúmeras concessões que marcaram sua instituição. Valeu a pena, avalia hoje a cientista política que ajudou a conceber a Reforma Sanitária. Três décadas depois, o SUS só pode ser transformado – porque está vivo. Mas as perdas não foram pequenas. “A partir de determinado momento, toda a riquíssima literatura sobre a Reforma acabou. Tratava-se apenas de ‘fazer aquela coisa funcionar’. Deixamos de ter uma práxis orientada por teoria crítica para fazer instituição, fazer democracia constrangida e limitada”.

Os compromissos e concessões da esquerda no poder

Por que não foi possível corrigir estas distorções nos treze anos em que a esquerda ocupou o governo? Juarez Guimarães vê, no período entre 2002 e 2016, a “aceitação de um pragmatismo limitante”. Sua crítica tem ainda mais relevo por se tratar de um intelectual que participou da construção do projeto petista – e que se mantém esperançoso no que pode ser um retorno de Lula, após as trevas do bolsonarismo.

“Os programas dos governos [do PT] afastaram-se do projeto histórico dos anos 1970 e 80”, diz ele. E acrescenta: “A aceitação dos limites impostos pela hegemonia burguesa foi ainda mais grave porque não se deu numa época de capitalismo guiado pelas ideias de um T.H Marshall, mas sob o tacão do neoliberalismo”. Faltou enxergar que, nesta fase, a oposição conservadora às lutas democráticas e socialistas vai muito além da teoria econômica. Friedrich Hayek, ícone desta época, “é acima de tudo um pensador político, para quem o essencial é liquidar a esfera pública e em torno deste objetivo é possível aliar-se inclusive a Augusto Pinochet”, prossegue Juarez – e a isso, a crítica da esquerda no poder foi sempre tímida e condescendente.

Sônia – que integrou o “Conselhão” – Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social – da era Lula vê, inclusive, uma tentativa de rebaixar as críticas, de aplainar um debate que foi muito mais rico na época da luta pela redemocratização. “No fundo”, diz ela, “aceitamos atuar nas franjas do neoliberalismo”.

As bases para uma possível virada

Nenhuma outra política pública, concordaram Sônia e Juarez, mantém tão acesa quanto o SUS – com todas as suas contradições e limites – a chama de um possível socialismo democrático brasileiro. Ela está viva no reconhecimento, agora majoritário entre a população, da importância da Saúde Pública. Também viceja na rede de ativistas e profissionais, vasta e capilarizada, que continua a defender os princípios da Reforma Sanitária. Mas como articular uma ampliação e aprofundamento do SUS com o renascer de uma luta mais ampla, pela transformação da sociedade brasileira?

Juarez crê que uma nova “conjuntura crítica” – semelhante à que Sônia identificou no curso da luta pela Reforma Sanitária – está se armando. Seus sinais vêm da crise do neoliberalismo, do enfraquecimento da hegemonia geopolítica dos EUA, do declínio, também no Brasil, da capacidade de criar consensos das classes dominantes.

Para ele, um SUS fortalecido poderia emergir de três pactos: com o povo brasileiro, a classe média e os profissionais de Saúde. O primeiro deveria contemplar a extensão do Programa de Saúde da Família para todo o território nacional e a identificação e resolução dos “vazios assistenciais” – as longas filas para consultas e exames, por exemplo. Também a aliança com a classe média precisaria estabelecer condições seguras para deixar os “planos de Saúde”: o Público como o sinal de excelência; a oportunidade de escapar do “duplo imposto” que significa desviar parte significativa do orçamento familiar para o custeio da medicina privada. O terceiro implica garantir salários dignos (“uma enfermeira arrisca a vida todos os dias na pandemia por pouco mais de um mínimo”, lembra o Juarez) e uma nova relação dos médicos com o serviço público.

Sônia Fleury fechou a noite aludindo ao Comum. Lembrou a emergência dos coletivos e da expressão “tamo junto”, transformada quase em bordão, nas periferias. Apontou este dado cultural como signo da possível luta contra o individualismo. Para ela, um novo projeto de país precisa circular pela democratização do Estado e por um novo feixe de políticas. Elas precisam assegurar o direito às Cidades, à Mobilidade, a uma Segurança não-segregadora, à Educação vista como formação ao longo de toda a vida e livre de formalismos, a uma nova relação com a natureza.

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Tanto melhor se o SUS – e, em especial, se os princípios que o originaram – puderem ser a espoleta que deflagrará esta busca por uma nova soberania popular.

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3 comentários para "Nós, que amamos tanto o SUS…"

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