“Não é possível resgatar mais nada sob o capitalismo”

Ao falar ao projeto Resgate, pensador marxista sustenta: quatro grandes contradições paralisam sistema hegemônico – e o tornam cada vez mais destrutivo. Qualquer esforço para reumanizar as sociedades precisa levar este dado em conta

Por Eleutério F. S. Prado

MAIS
> O texto a seguir foi construído pelo autor em paralelo a sua exposição para o projeto Resgate, que está transcrita ao seu final. É possível acessar também as versões em vídeo (link acima) ou podcast (abaixo).

> O projeto Resgate, por meio do qual Outras Palavras quer debater ideias-força para a reconstrução do Brasil em novas bases, pode ser conhecido aqui.

> Título Original:
“O capitalismo tornou-se insustentável”

Pode parecer estranho, para alguns, que o projeto Resgate, lançado por Outras Palavras, não proponha de forma explícita a superação do capitalismo. É uma opção intencional. Nas últimas décadas, conceitos que nos séculos 19 e 20 tinham enorme significado desgastaram-se até se tornarem irreconhecíveis, devivo ao fracasso do “socialismo real” e à ccoptação da social-democracia. Além disso, produziu-se um cacoete. O esforço – árduo, porém indispensável – de examinar a fundo as sociedades e os caminhos de sua transformação é muitas vezes substituído por fórmulas fáceis como a “revolução” e a “destruição do capitalismo”. O que estes conceitos – tão importantes quanto muitas vezes esvaziados de sentido – podem conter hoje?

O caminho perseguido pelo Resgate é buscar alternativas, não rótulos. As versões iniciais das dezesseis ideias-força indicam um caminho claramente pós-capitalista. Preferimos desenvolvê-las, a repetir slogans. Esta
escolha, contudo, implica um problema. Em que contexto as ideias do Resgate poderão resalizar-se? Esperamos um capitalismo reformado? Acreditamos numa transição suave, para a qual não será preciso mobilização social?

Um diálogo com o economista Eleutério Prado, em 22/7, ajudou a esclarecer esta possível dúvida. Na parte inicial da entrevista, ele fez uma apresentação provocadora sobre a impossibilidade de construir qualquer projeto reumanizador nos marcos do capitalismo. Seguiu-se um debate sobre como abordar a superação do sistema sem cair no conforto vazio dos clichês. O vídeo acima contém o conjunto da conversa. E Eleutério, em gentiliza especial, colocou no papel, com rapidez admirável, as ideias que orientaram sua fala. É com elas que o leitor ficará, a seguir. (Antonio Martins)

Para demonstrar empiricamente a tese contida no título deste artigo é preciso considerar, primeiro, o fenômeno da financeirização que vem se exacerbando desde os anos 80 do século passado. Eis que ele não se apresenta como uma passagem episódica na história do capitalismo, mas como um acontecimento decisivo. Faz ver que não se encontrou uma solução virtuosa para a crise de acumulação engendrada no “período de ouro” do capitalismo, ocorrido após o fim da II Guerra Mundial. Como se sabe, essa crise se manifestou já nos anos 70 por meio de uma forte e longa queda da taxa de lucro. Apontando para um impasse, a figura em sequência apresenta esse fenômeno. E o faz mostrando uma discrepância crescente entre o PIB global e a soma dos ativos financeiros globais. Por que isso ocorreu?

A crise de lucratividade dos anos 1970, que atingiu fortemente o centro do sistema – mas também a periferia –, nunca foi plenamente resolvida porque os principais Estados capitalistas optaram por evitar uma recessão profunda. Como esta teria efeitos econômicos, sociais e políticos devastadores – por causa das ondas de falências e do altíssimo desemprego da força de trabalho que produziria –, preferiram uma alternativa que evitasse a destruição e a desvalorização dos capitais acumulados no passado. Ocorre que esse choque disruptivo é necessário para que ocorra uma verdadeira restauração da taxa de lucro. Foi assim que o capitalismo se recuperou várias outras vezes no passado. Mas desta vez, não.

Fugindo desse trauma, buscaram restaurar a lucratividade por meio de um processo mais lento de reformas, ditas neoliberais, as quais visavam em última análise elevar a taxa de exploração numa economia globalizada. Era preciso destruir o mais possível o que fora criado no passado, ou seja, o estado de bem-estar social. Em linhas gerais, os Estados se esforçaram para não elevar ou mesmo reduzir os salários reais no centro do sistema, para mudar os processos de trabalho, para forçar a supressão das proteções das economias nacionais existentes na periferia, para deslocar as indústrias trabalho intensivas para a Asia etc. O neoliberalismo reinventou de novo o capitalismo que fora transformado pelo keynesianismo e pela socialdemocracia. Tudo isso, no entanto, precisava de um complemento.

Para criar um sistema nacional e internacional de dominação financeira e, ao mesmo tempo, para montar um mecanismo de estímulo à demanda efetiva global, desregulou-se os mercados financeiros e se permitiu uma enorme expansão do crédito mundialmente. O resultado dessa eleição foi o empilhamento consecutivo de dívidas do qual resultou uma “exuberância irracional” nos mercados de capitais em geral. Ora, isso não poderia ter ocorrido sem que fosse criada também uma “magnífica” fonte de crises financeiras.

O descolamento progressivo do montante de ativos financeiro em relação à magnitude do PIB global, conforme visto na figura acima, não parou de crescer desde 1980. Agora, ele aparece como um prenuncio do fenecimento do capitalismo por meio de um colapso financeiro de grandes proporções. Mas isto não é tudo.

Para demostrar, teoricamente agora, a tese resumida no título deste artigo, é preciso começar por um recorte de conhecida tese de Karl Marx, depositada no prefácio de Para a crítica da Economia Política, escrito em 1859. No trecho abaixo transcrito, ele resume a sua compreensão do processo de emergência, desenvolvimento e fenecimento dos modos de produção em geral. Enquanto subsistem historicamente, esses modos regulam as ações dos seus componentes individuais e coletivos, condicionando a vida social como um todo; passam por longos períodos progressivos que desembocam, ao fim e ao cabo, em impasses históricos. Crescem, então, movimentos sociais que produzem instabilidades, rupturas e transformações, no curso das quais são criadas novas formas de sociabilidade.

Inundações na Europa, como resultado da onda de calor e chuvas torrenciais que atingiu o hemisfério norte em Julho de 2021. Mesmo em países com infra-estrutura robusta, como a Alemanha, houve mais de 200 mortes. Eventos climáticos extremos são parte de uma das contradições insolúveis do capitalismo, de que trata o texto

Na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção estas que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade. (…) Em certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes (…). De formas de desenvolvimento das forças produtivas estas relações se transformam em seus grilhões. Sobrevém então uma época de revolução social.1

Para reinterpretar esse trecho, sustenta-se aqui em primeiro lugar que, implicitamente, Marx toma o sistema econômico como aquilo que atualmente é chamado de um sistema complexo ou de um sistema social complexo. Como tal, ele está internamente estruturado por determinadas relações de produção e estas determinam-no como uma totalidade que tem características próprias e que possui certas “leis” tendenciais de desenvolvimento.

Tais sistemas não são descritíveis por quaisquer sincronias, já que se caracterizam por existirem como processos contraditórios, abertos ao futuro e dependentes do próprio modo como evolvem. Enquanto tais, essas totalidades condicionam o modo de ser histórico dos próprios homens que se situam em sua própria base e que se atribulam em seu interior para sobreviver, buscando atender as suas próprias necessidades e realizar os seus desejos mais profundos.

Dizer que o modo de produção capitalista é um sistema complexo é dizer que possui a propriedade da auto-organização e que enfrenta permanentemente problemas de sustentabilidade, sejam de ordem interna, sejam de ordem ambiental. Eis que os sistemas complexos em geral apresentam certa resiliência, mas não deixam também de possuir fragilidades. Existem para sobreviver, mas podem falecer por causas internas e externas.

O que caracteriza sobretudo os sistemas complexos são os nexos internos que ligam entre si as suas partes constituintes e formam a sua estrutura, mas eles podem e devem ser apreendidos também pelos nexos externos, ou seja, pelos modos segundo os quais essas partes interagem entre si e determinam o seu dinamismo no tempo. É desse modo que, numa perspectiva de cientificidade positiva e vulgar, fala-se usualmente da complexidade tendo apenas por referência à dinâmica de interação dos múltiplos elementos do sistema em consideração, os quais estão entretidos em processos de auto-organização.

Mesmo quando essa cientificidade – que ainda se atém apenas aos nexos externos entre os fenômenos – transcende o determinismo que pretende prever o futuro com base nos fatos passados, o reducionismo, ou seja, o método característico da ciência moderna (Bacon, Descartes e Newton) que pretende sempre explicar o todo a partir das partes, e a norma analítica que manda isolar e separar as dificuldades na compreensão de tudo que se afigura complicado, ela ainda não vai longe o suficiente. É preciso, pois, dizer o porquê.

Apreende, assim, certas características dos sistemas complexos tais como os seus ciclos de realimentação, as não-linearidades causais, as redes de interação, mas não acolhe de modo adequado e suficiente a propriedade da emergência – pois, esta não pode ser explicada apenas pelas configurações engendradas pelas interações aparentes dos elementos do sistema complexo. Eis que essa propriedade crucial não resulta apenas das interações dinâmicas entre as partes, mas provém, fundamentalmente, do evolver das contradições inerentes à sua estrutura na temporalidade histórica.

Como o sistema econômico – um sistema social complexo – em sua generalidade é sobretudo um sistema de produção de coisas objetiva ou subjetivamente necessárias à vida humana, fica claro que as relações de produção mencionadas por Marx se referem ao modo específico pelo qual se organiza o trabalho socialmente necessário numa determinada etapa histórica. No capitalismo, como se sabe, o atendimento das necessidades está subordinado à acumulação de riqueza abstrata, ou seja, de valor. E o “valor que se valoriza”, isto é, o capital é – isso não se pode ignorar – um sujeito automático insaciável.

Crucial aqui é interpretar a noção de força produtiva de um modo adequado aos propósitos deste artigo que não vê o capitalismo nem em sua juventude (século XIX) nem em sua maturidade (primeiros dois terços do século XX), mas em sua velhice (do último terço do século XX em diante). Numa leitura produtivista, “força produtiva” significaria simplesmente capacidade de se apropriar da natureza e, nesse sentido, poderia ser resumida pela noção técnica de produtividade do trabalho. Ora, essa leitura seria bem insuficiente porque toma o sistema econômico como um sistema determinado tecnologicamente que, em princípio, dura senão para sempre, pelo menos indefinidamente.

Como não há produção sem apropriação – transformação e destruição – da natureza, é preciso associar de imediato a noção de força produtiva à noção de sustentabilidade. Eis que o sistema econômico mora no ambiente formando pela natureza não humana e, ao se manter ou mesmo prosperar em seu bojo, degrada-o de algum modo. E, ao fazê-lo, pode minar as condições externas que dão sustentação ao movimento expansivo do sistema econômico. Portanto, essa categoria guarda em si o seu contrário, a insustentabilidade. Ora, essa contradição evolve com o próprio evolver do modo de produção não apenas devido à destruição das condições externas, necessárias que são ao próprio mover-se do sistema econômico, mas também devido ao desenvolvimento de suas contradições internas, assim como a todos os desdobramentos que delas decorrem.

O evolver das contradições internas ao sistema econômico gera conflitos, embates entre classes sociais, os quais, mediante tensões crescentes, podem eventualmente resolverem-se por meio de movimentos de massa, revoltas agônicas e mesmo revoluções que mudam radicalmente a estrutura do modo de produção. Assim, a contradição central inerente ao desenvolvimento da sociedade de que fala Marx pode ser entendida como uma contradição entre as forças que dão sustentabilidade ao modo de produção e as relações de produção, dentro das quais aquelas forças se desenvolvem. Nesse sentido, entende-se por força produtiva não mais, simplesmente, a produtividade do trabalho, mas a capacidade do sistema assim constituído de dar sustentação à vida humana.

Segue-se aqui a tese de Murray Smith em seu livro Leviatã invisível2 segundo a qual se está, desde o começo dos anos 1980, na presença do ocaso do capitalismo – um processo que não deixou de se aprofundar desde então. Pois, nessa década, ele entrou – enquanto modo de produção – numa crise estrutural da qual ainda não saiu e não poderá sair incólume. O neoliberalismo, nessa perspectiva, não se afigura como uma superação das dificuldades sistêmicas do capitalismo, as quais se apresentaram já na década dos anos 1970, mas como um recurso derradeiro para que possa continuar funcionando, ainda que cada vez mais precariamente. Nesse ocaso, ciclos de alta e baixa aconteceram e continuarão a acontecer, mas a tendência se apresenta como um declínio persistente. Segundo ele – concorda-se com o que diz – apenas um marxismo crítico resoluto pode apreendê-la adequadamente:

Somente Marx oferece um arcabouço teórico necessário para apreender a trajetória contraditória, irracional e crescentemente perigosa do modo de produção capitalista – um conjunto de relações sociais e capacidades humanas, organização societária e tecnológica que, mais do que nunca, demanda ser compreendida num contexto global que, não menos do que no passado, mantém-se prisioneira de suas relações de produção que põem a lei capitalista do valor-trabalho.

Como base nessa premissa, Smith sustenta que três contradições “marxianas” estão na base dessa crise estrutural. Sabendo que aqui se acrescentará uma quarta, é preciso explicitá-las:

A primeira delas está no fundamento de uma crise de superacumulação que vem entravando o moto próprio do capitalismo globalizado desde a década do anos 1970. Para aumentar continuamente a produtividade do trabalho na produção de mercadorias, a concorrência capitalista tende a elevar a razão entre o montante capital empregado na produção e o valor total dessa própria produção – e isso tende a reduzir fortemente a taxa de lucro. Como esse sistema – que nunca está desacoplado do Estado – não pode mais permitir que as crises destruam irrestritamente o capital acumulado, permitindo assim uma recuperação dessa taxa, ele próprio como um sistema mundial passou a enfrentar uma crise permanente de valorização, ou seja, uma crise estrutural originada da produção “insuficiente” de mais-valor.3

Só lhe restou o neoliberalismo; grosso modo, essa práxis sócio-política procurou criar contratendências à queda da taxa de lucro. Para tanto, buscou decompor mais e mais a sociedade em indivíduos, liberar os movimentos do capital financeiro, transferir as indústrias intensivas em trabalho para a periferia, reduzir os salários reais dos trabalhadores etc.Ora, tudo isso gerou uma recuperação fraca principalmente no centro do sistema, que durou entre 1982 e 1997, aproximadamente. A partir dessa última data, a tendência de queda da taxa de lucro se impôs novamente sem perspectivas robustas de que essa situação depressiva possa mudar.

A segunda contradição consiste num desdobramento da contradição entre o caráter privado da apropriação e o caráter social da produção. À medida que o capitalismo se desenvolve, cresce a necessidade de bens e serviços ofertados como bens públicos; eis que eles são necessários para prover a infraestrutura e a proteção social comunitária que garante uma certa unidade ao sistema. Ora, esse provimento onera o orçamento dos Estados nacionais, os quais são alimentados em última análise por recursos extraídos do setor produtivo das economias. Diante da crise de valorização, não lhes restou senão cair numa política de privatização que tende a tornar os bens públicos cada vez mais escassos. Ao erodir a base comum da sociedade, o neoliberalismo difunde a pobreza e o niilismo, concentra a renda e a riqueza, solapa a democracia liberal – ou seja, certos fundamentos que dão sustentação social e política ao próprio capitalismo.4

A terceira contradição diz respeito à transnacionalização da produção por meio da financeirização, das empresas que operam em dezenas de países, das cadeias mundiais de componentes, das plataformas digitais etc. e o caráter nacional da regulação macrossocial e macroeconômica. Como se sabe, o Estado é a instância de poder que põe a unidade que falta num meio em que ocorrem frequentes disfunções sistêmicas e que está permeado por antagonismos entre indivíduos, grupos e classes sociais. É ele, ademais, que busca encontrar solução para os problemas originados pelo próprio funcionamento do modo de produção. Contudo, muitos problemas estão sendo gerados agora numa escala global, para além do poder de intervenção dos Estados nacionais. Mais do que isso, frequentemente, eles se encontram constrangidos pelos poderes que prosperam internacionalmente e que se lhe sobrepõem.

Finalmente, é preciso mencionar a contradição entre o caráter inerentemente predatório da produção capitalista e as exigências de conservação e de regeneração do ambiente natural – nas quais se incluem a reprodução da força de trabalho. Há um certo consenso no pensamento crítico de que existe uma crescente “ruptura metabólica” entre a produção mercadorias por meio da qual o capital se realiza enquanto tal e as condições naturais da produção.

Eis que as condições ecológicas da sustentabilidade da civilização humana vêm sendo erodidas com velocidade inaudita por um processo de acumulação de capital que não pode parar e que, por isso, não pode deixar de receber prioridade em cada uma das nações que compõem essa civilização. Mesmo se são feitos acordos internacionais, por exemplo, para reduzir as emissões de carbono, elas continuam crescendo; eis que crescem mesmo se a geração desse tipo de poluição já se encontra em nível bem crítico.

Ao não garantir a sustentabilidade da civilização humana no planeta Terra, o capitalismo se tornou insustentável. É a partir dessa consideração que Smith chega à tese do seu crepúsculo:

Juntas, essas crises interrelacionadas sugerem que já se entrou na era do ocaso do capitalismo – uma era na qual a humanidade encontra os meios para criar uma ordem social e uma organização econômica mais racionais ou na qual o decaimento progressivo do capitalismo trará junto consigo a destruição da civilização humana.

1 Marx, Karl – Para a crítica da Economia Política. Coleção Os Pensadores: Marx. São Paulo: Editora Abril, 1978, p. 130.

2 Smith, Murray E. G. – Invisible Leviathan – Marx’s law of value in the twilight of capitalism. New York: Haymarket Books, 2018.

3 Ver Prado, Eleutério F. S. – O futuro da economia mundial. In: A terra é redonda, 8 de junho de 2021.

4 Ver Brown, Wendy – Explicando nossos sintomas mórbidos. In: Outras palavras, 30 de junho de 2021.

Eis a transcrição do diálogo:

Antonio Martins: Oi, boa noite. Eu sou Antonio Martins, editor do site Outras Palavras. Esse é o programa Resgate. É uma série de diálogos em que nós procuramos discutir, com pensadores e com ativistas, ideias para um novo Brasil, um novo projeto de país. Nós formulamos, à princípio, 16 ideias-chave, todas em sentido oposto às lógicas capitalistas. E nós estamos submetendo essas ideias a um diálogo, a uma série de diálogos e hoje nós temos a satisfação muito grande de estar na presença e em conversa com o Eleutério Prado. Eleutério é economista, é professor da FEA-USP, ele mantém um site atualizadíssimo, sobre debates econômicos contemporâneos, que se chama Economia e Complexidade –  daqui a pouco eu vou colocar, inclusive, o endereço do site dele -ele colabora com o Outras Palavras, colabora com o site a Terra é Redonda, ele escreve na revista Outubro, procura ver a economia a partir de uma perspectiva marxista.

Nós vamos tentar obter dele informações aqui sobre o cenário internacional que que dá contexto à crise brasileira, hoje, e a possibilidade que a gente está de superar essa crise, vencendo o fascismo, sem isso é impossível fazer qualquer coisa, mas não voltando ao velho normal, porque o velho normal nos trouxe a isso, nós precisamos aproveitar essa oportunidade para refletir sobre as estruturas de dominação brasileiras formadas em quinhentos e poucos anos de colonização, formadas por um capitalismo dependente, com suas peculiaridades e formada, nos últimos quarenta anos, pela hegemonia de um neoliberalismo que nos dizia, o aspecto mais fiscal do neoliberalismo, que nos dizia que os Estados estavam condenados a cumprir uma disciplina fiscal favorável à oligarquia financeira. Então, todas as reformas estruturais que foram adiadas, mesmo nos governos de esquerda, os limites foram dados por essa ideia de que a sociedades precisavam respeitar a disciplina fiscal.

Nós estamos numa situação em que a pandemia mudou muito disso e que, num certo sentido, Biden promete mudar isso, a China praticou, por muito tempo, políticas muito contrárias a essa ideia, mas nós precisamos entender, para conseguir formular direito essas ideias do Resgate, em que ambiente nós estamos, em que fase do capitalismo nós estamos? Nós estamos numa fase em que é mais fácil pensar no fim do mundo do que no fim do capitalismo? Como alguns afirmam. Nós estamos numa fase em que o sistema domina e dá as cartas e tem condições de fazer acontecer o que ele quiser, e restringe a nossa liberdade? É sobre isso que o Eleutério Prado vai tentar nos dar algumas informações e interpretações.

Boa noite, Eleutério. Prazer muito grande falar contigo.

Eleutério Prado: Boa noite, caro Antonio Martins. Eu acompanho o Outras Palavras, já há bastante tempo, está certo? Tenho lido, no Outras Palavras, muitas coisas interessantes, de várias áreas do conhecimento. Então, o trabalho do Outras Palavras é um trabalho fantástico, tá certo? E para mim é um prazer estar aqui, tentando colaborar com esse projeto, o projeto Resgate.

Antonio Martins: Pessoal que está nos assistindo – Áurea já está nos aqui – boa noite, Áurea. Nós vamos seguir uma dinâmica um pouco diferente das conversas anteriores. O Eleutério – com com toda a gentileza nos preparou uma exposição – vai fazer essa exposição que justamente apresenta a visão dele sobre o estado atual do capitalismo. Tem uns slides que eu vou apresentar enquanto ele for falando e depois a gente vai fazer perguntas para ele, a partir dessa exposição. Então, deixa eu ver se eu consigo sintonizar aqui direitinho… pronto! Com a palavra, o Eleutério e depois da exposição dele você vai me orientando para mudar os slides?

Eleutério Prado: Vamos lá. Terceiro slide. O que esse gráfico mostra? Esse gráfico é tirado da publicação do Banco Mundial. É a taxa de crescimento anual do PIB mundial. Esse dado está lá, é feita uma média ponderada do PIB de cento e cinquenta, por volta de cento e cinquenta países. Então, o que a gente observa nesse gráfico? Observa-se, o gráfico começa no pós-guerra, a primeira data é 196,1 e vai até 2020, mais ou menos, tá? Então, a gente, olhando para esse gráfico, a gente vê a flutuação do PIB mundial nestes 60 anos, está certo? E o que a gente observa? Aqui eu coloquei médias decenais, está em em cor de abóbora, e a gente observa, nessa escadinha, que o PIB mundial, logo depois do pós-guerra, chegou a ser alguma coisa como 5,5 pontos percentuais e agora ele está por volta de 2,0, está certo? Então, o PIB mundial foi caindo sucessivamente nas décadas, décadas após décadas. Tem as flutuações econômicas, crises, etc., mas há uma tendência clara de redução da taxa de crescimento mundial.

Esse gráfico é o primeiro que eu apresento, porque eu quero apresentar na verdade 3 teses, ligadas umas as outras. Na primeira delas, eu quero chegar a mostrar que nós estamos num capitalismo estagnado, certo? Essa é a primeira tese que eu quero mostrar. A segunda tese, eu quero mostrar como esse processo de estagnação do capitalismo, que que é gradativo, foi lançado aquilo que é chamado de financeirização, a partir dos anos oitenta. Quero mostrar que a financeirização tem uma razão estrutural e ela tem um papel nesse processo. Como em tudo o que acontece no capitalismo, há um primeiro momento em que aquilo propicia, de alguma forma, um certo dinamismo, mas depois ela própria se torna uma barreira ou um novo desafio para o próprio capitalismo.

Então, a questão desse gráfico é que vem a seguinte pergunta: Será que este padrão, que nós olhamos para o PIB mundial, ou melhor, se é um padrão ou se é apenas uma média e tem países que estão crescendo e países que estão caindo, desses 150. De fato existem algumas exceções como a China, como a Coreia, tal, o Vietnã, etc. Tem algumas exceções, está certo? Mas eu vou tentar mostrar que se trata de um padrão. Se vocês pegarem o PIB, com esses dados do Banco Mundial, e olha todos os países você, vai ver, na grande maioria deles, o mesmo perfil, o mesmo desempenho, está certo?

Então passa para o quarto. Então, o quarto é o Estados Unidos. O que a gente vê? A gente vê a mesma coisa, era qualquer coisa como 4,5%, em média, vamos dizer assim,

logo depois no pós-guerra, e atualmente está abaixo de 2,0%, está certo? A taxa de crescimento dos Estados Unidos, veja que isto, quando a gente observa isso, a gente logo pensa que não se trata de uma questão conjuntural, mas se tem um problema estrutural por trás disso. Então, esse é o caso dos Estados Unidos, vamos ver um outro caso no gráfico seguinte.

Este é o caso da Zona do Euro, está certo? Eu não peguei todos, eu peguei alguns casos, nesse caso da Zona do Euro, é a mesma coisa, olha. Logo no pós-guerra a taxa de crescimento é por volta de 5,0%, e aqui em 2018, que é o dado que o Banco Mundial fornece, 2019, de fato, está abaixo de 1% , está certo? Os Estados Unidos ainda se desempenhou melhor que a Zona do Euro. Então, uma taxa de crescimento tendencial de 1%, na verdade está acima, né? Mas eu digo, a tendência aqui é baixíssimo, o capitalismo está completamente estagnado. Então, se nós tomarmos a última década, nós tirarmos uma média, nós vamos ter um crescimento pouco acima de 1% na Zona do Euro. Isso é muito baixo, está certo? E, portanto, nós vimos, no mundo como um todo, nos Estados Unidos e na Zona do Euro.

O último gráfico que eu quero apresentar é o seguinte – pode passar para o seguinte – é o caso do Brasil. O que nós vemos? De novo, o mesmo padrão. Quer dizer, o Brasil cresceu, taxas altíssimas no pós-guerra, até mais ou menos 1980, depois ele começou a cair, cair, cair, cair e hoje ele está num nível muito baixo, nos últimos 5 anos, é uma média de 1%, talvez até menos, de crescimento anual. Então, você veja que se trata de um padrão, está certo? Um padrão, se eu tivesse paciência de apresentar outros gráficos, nós íamos ver a mesma coisa, esse é um sinal que tem um problema estrutural. Qual é o problema estrutural? O problema estrutural, eu como sigo aí a interpretação do Marx, do desenvolvimento do capitalismo, está certo? E o que está por trás disso é a famosa tese da tendência decrescente da taxa de lucro, está certo? O que nós observamos é, na década de trinta, nós tivemos a crise vinte e nove, e a década dos anos trinta foi uma década digamos de recessiva, e se falava na época, na década dos trinta, em depressão. Na década dos trinta, você tem o economista americano que cunhou o termo estagnação secular. Bom, esse termo desapareceu porque veio a guerra nos Estados Unidos, com a mobilização para fornecer materiais para Inglaterra, outros países. Com a mobilização na guerra, os Estados Unidos superou a crise que estava especialmente na economia americana e, quando acaba a guerra, as taxas de lucro, nos Estados Unidos, na Europa, etc., estavam em nível alto e nós tivemos um período que foi chamado de o período de ouro do capitalismo que vai, grosso modo, do fim da guerra, da segunda guerra mundial, até mais ou menos o 1967, 68, né?

Essas datas não são muito precisas, mas de alguma forma quando começa a se observar uma queda da taxa de lucro. Bom, então, antes de chegar nisso, eu gostaria de mostrar que o capitalismo cresce por meio de ciclos longos, e na tabela seguinte, que é um trabalho que eu tirei de autores gregos que estudaram isso detidamente, que é o —– e o —–. Ele mostra aqui os ciclos longos da economia mundial, então tem um ciclo que começa no século final do século XVIII, tem uma fase ascendente e uma fase descendente, está certo? Então, isso é um padrão na economia capitalista. O que nos interessa aqui é o olhar pós-guerra, especialmente. Então a gente vê que tem um ciclo, que vai do final da guerra até 1967, 68, está certo? Que é um ciclo ascendente, ou seja, a economia capitalista trabalha de uma forma bastante dinâmica, uma certa euforia, uma crença no capitalismo, na sua capacidade de criar riqueza e de atender, digamos assim, não só as pessoas mais ricas, mas também a grande massa da população.

Mas aí entra uma fase descendente que começa mais ou menos na mesma época e vai até 1982, e o outro ciclo começa em 1982 e tem uma fase ascendente que vai até 1997, e depois tem uma fase descendente que vai de 1997 para a frente. Esse ciclo que está aqui, nós podíamos chamar o ciclo, o período de ouro, o ciclo Keynesiano, o ciclo da social democracia, em que a social-democracia foi possível porque a taxa de lucro era muito alta, certo? Então o sistema capitalista poderia entrar em acordo com sindicatos, aceitar, de certo modo, a influência dos sindicatos na política, etc.

E no gráfico seguinte mostra bem porque tem esses dois ciclos longos na economia mundial, então este gráfico que foi construído por Maicon Roberts, está certo, é um gráfico em que ele calculou a taxa de lucro, que também aqui aparece com o nome de taxa interna de retorno, mas a gente pode interpretar direto como uma taxa de lucro, no G20. Ele fez uma média ponderada com dados da 9.1, que fornece esses dados para dezenas de países e ele fez uma média ponderada – e aí eu observo o que? A gente observa exatamente o período de ouro, que vai até 1967, mais ou menos, e que a taxa de lucro é inclusive crescente. Então é a fase ascendente desse ciclo, depois a gente tem uma fase descendente que vai de 1967 até 1982, vocês vejam que a taxa de lucro sai espetacularmente, de alguma coisa como 11%, 12%, para uma média aí, para alguma coisa como 7%, está certo? Esse período é um período, portanto, de crise no capitalismo.

A gente tem os choques de petróleo, neste período, a gente tem a famosa estagflação, que era o final do período. Por que tem a estagflação? Veja, do ponto de vista das políticas econômicas domina, no período de ouro, a chamada política Keynesiana, todo mundo era Keynesiano, não só o partido trabalhista britânico, mas também o partido conservador. Nos Estados Unidos, o partido democrático e o Partido Republicano também seguiam as as recomendações Keynesianas. Na década de 1970, continua a se fazer isso, mas como a taxa de lucro cai, e aqui, por volta de 1970, acabou o acordo de Bretton Woods e portanto o dinheiro se tornou puramente financiado, ele não estava mais conectado, de forma alguma, ao padrão ao padrão ouro, ele não tinha mais o padrão ouro, o padrão ouro tinha sido largado na década de trinta, mas tinha criado um padrão dólar, que o dólar estava vinculado ao ouro, etcétera… isso é abandonado em 1970, mais ou menos.

Então, o que acontece nessa situação? Nessa situação você dá liberdade aos capitalistas, de aumentarem o preço assim que eles podem, porque não tem mais o constrangimento do padrão ouro, está certo? E porque eles sabem também que o Estado vai sancionar, sem problemas, todos os aumentos de preço por meio da emissão monetária. Então, nesse momento em que a taxa de lucro cai muito, os capitalistas nos Estados Unidos e da Europa, estamos falando especialmente do centro, quanto a taxa de lucro cai muito, o aumento – e vem impulsos de demanda provindos da política Keynesiana – ao invés deles aumentarem a produção, eles aumentam os preços. E acontece então, no final do período da década de 1970, um crescimento dos preços junto com a estagnação, que foi chamada estagflação, certo? Que era uma coisa que não se acreditava possível no sistema econômico e aí então os economistas resolveram mudar o jogo, está certo? Entrou Margareth Thatcher na Inglaterra, Reagan nos Estados Unidos, e aí foi mudando a política. Foi dado um choque de juros para segurar a inflação nos Estados Unidos. Esse choque de juros também teve repercussões na Europa, etcétera… E aí foi se criando todo um ambiente para o abandono do período Keynesiano e para entrar num outro período que vai ser chamado do período do neoliberalismo, está certo? O liberalismo é um fenômeno complexo. E aqui nós estamos olhando ele especialmente da perspectiva do desenvolvimento de longo prazo do capitalismo. Então o que se observa aqui? Que o neoliberalismo, grosso modo – para ser bem em resumo – o objetivo do neoliberalismo era aumentar a taxa de exploração para poder aumentar a taxa de lucro. E então tem toda uma série de medidas, por exemplo a transferência das indústrias, do trabalho intensivo dos Estados Unidos, da Europa, para Ásia, especialmente China e outros países. Tem a mudança dos processos de trabalho nos Estados Unidos, é o famoso fim do fordismo, taylorismo, começa então a imitação de uma série de métodos que foram criados no Japão, olionismo, etcétera, mudam-se os processos de trabalho, muda-se a atitude dos governos em relação aos sindicatos, há uma luta para destruir os sindicatos, como foi muito claro no governo da Margareth Thatcher, medidas inclusive do plano ideológico, a difusão da crença de que as pessoas devem se comportar como capitais humanos, que eles são empresários de si mesmo, todo esse tipo de ideia, isso foi engendrado pelos economistas neoliberais, como o Milton Friedman, Hayek e etcétera, está certo? Isso foi estudado, não foi uma coisa feita espontaneamente.

Então, nos países desenvolvidos especialmente, porque no G20 inclui os países mais desenvolvidos, como que os Estados Unidos, França, Alemanha, Canadá, Itália, Japão… mas inclui também alguns países que são menos desenvolvidos, que são chamados emergentes, nessa linguagem oficial, então, inclui-se o Brasil, a China, a Índia, a Indonésia… tem vários países daqui dentro do G20. Então, o que se observa? Que de 1982 até 1997, você tem uma recuperação neoliberal, a taxa de lucro aumenta,  aí se consegue dominar a inflação nesses países. E você, afinal, você tem esse padrão de, não de um sucesso – como foi o período de pico do primeiro ciclo – mas ciclos de um novo ciclo, e um longo ciclo, mas com um um pico de taxa de juros menor, do que o que se havia detido anteriormente. Então houve uma recuperação, mas a partir de 1997, a taxa de lucro começou a cair de novo. E eu exponho aqui a razão – para não me alongar  com outros gráficos – mas se sabe que a razão por trás desse processo é a elevação da composição do capital, entre capital constante e capital variável, o capital constante -diz lá o Marx – tem a tendência de crescer em relação ao capital variável. Isso de fato é empiricamente observável. Então, essa recuperação que se obtém aqui, ela é obtida em detrimento dos trabalhadores, por erosão das proteções sociais, nos Estados Unidos há uma estagnação do salário real médio, está certo? E assim como na Europa.  Quando o seu salário médio entra em estagnação e tem, alguns melhoram nesse período, outros pioram, cria um certo conjunto de trabalhadores brancos, especialmente nos Estados Unidos, que tinham um sonho americano, durante o período de ouro, nesse período aqui, eles viram a destruição dessa situação e é por isso que está relacionado, por exemplo, com a eleição do Trump, aqui para frente, tá certo? É uma frustração enorme porque os salários, especialmente dos trabalhadores brancos ligados as atividades industriais e paralelas aos setores industriais, não só não cresceram, mas diminuíram  em termos reais. E uma coisa fantástica o que acontece.

E então o capitalismo entrou nessa longa expressão, de que não saiu ainda, não há nenhum sinal de que ele tenha saído ainda. Agora, de novo eu pergunto, será que só tem um retrato do G20? Será que esta é uma coisa específica desse G20, ou é um padrão que se aplica, a grosso modo, à maioria dos países do mundo, com exceção de alguns, como a China, por exemplo, que não tem esse perfil.

Vamos ver no gráfico seguinte, que também é um gráfico construído pelo Michael Roberts, que a gente pode ver um pouco melhor isso, está certo? Então veja o que ele colocou aqui, ele colocou três agregados, o G20 que está em vermelho, o G7, que está em azul, e os países que se diz que estão em em desenvolvimento, os países emergentes. Então, em cima estão os países emergentes. Você vê que tem uma certa gradação porque, conforme o nível de desenvolvimento capitalista, a quantidade de capital, o volume de capital envolvido na produção, é maior e portanto isso explica estes degraus, entre os três eixos, os três gráficos. Mas o que é espetacular, o que é incrível, é o paralelismo que a gente observa nesses gráficos, está certo?

Então, você tem aqui o conjunto dos países que a gente chama de países emergentes – que inclui Brasil, Índia, China, etcétera – uma parte desses países emergentes estão dentro do G20, e aqui tem o G7 – que também está dentro do G20 – mas olha, então o G7, quando a gente junta países, o gráfico não muda a perspectiva, por exemplo, aqui você tem uma crise, que é mais ou menos em 2009, que isso acontece em todos os países, tá certo? Então isso mostra… mostra o que, isto? Que a gente tem que olhar pra estrutura, a composição do capital, a forma como a taxa de lucro está se formando na economia mundial, certo? E você vê que tem um paralelismo, ou seja, há leis que estão implícitas no desenvolvimento do capitalismo, se manifestam por meio de um gráfico como esse e, portanto, é preciso prestar atenção a isso. Se vocês olharem o discurso dos economistas, tanto os economistas de direita, quanto os economistas de esquerda, em geral eles têm uma perspectiva keynesiana mais forte do que – mesmo quando tem influência do Marx – eles olham muito a política econômica, eles têm uma certa de fé na política econômica. A política econômica claramente tem um papel, mas quando você olha isso, você vê que tem causas estruturais que limitam extremamente a política econômica, a política econômica não faz o que ela quer… Muitas vezes ela simplesmente racionaliza um tipo de imperativo que é estrutural. Quando se tem a crise de lucratividade, não era possível mais manter o Keynesianismo, por mais que os economistas estivessem convencidos a respeito das teorias do Keynes. Então, começam um movimento e tal e é esse abandono, criam-se as alternativas pra resolver o problema e, evidentemente, a política do neoliberalismo, dessa perspectiva, responde a um problema estrutural de tentar dinamizar o capitalismo, e ele consegue, por um período. Agora veja uma coisa interessante, enquanto que essa recuperação neoliberal acontece no G7, e ela se reflete no G20, quando a gente olha para os países emergentes, ela não acontece, está certo? É como se tivesse uma crise, a partir de 1998, e esses países – como no caso do Brasil – eles fazem um esforço para manter o desenvolvimento.

E a partir de 1980, quando você tem uma elevação da taxa de juros nos Estados Unidos, você tem uma crise internacional, e aí a taxa de lucro começa a cair nesses países. Mas aí ela não se recupera durante o esse período da recuperação neoliberal, ao contrário, ela continua caindo e ela vem caindo desde mais ou menos 1980. E quando a gente olha o Brasil, o Brasil tem exatamente esse perfil, então é claro que a gente tem que discutir política econômica e falar de política neoliberal do senhor Fernando Collor, depois do Fernando Henrique, depois, mesmo do período do Lula – ainda que ele não não apreciasse esse tipo de política, teve que aceitá-la, até certo ponto, ele não modificou, grosso modo, às políticas econômicas que haviam sido formadas no período  Fernando Henrique. E o fato é que você tem aqui, nesse momento, você tem nesse momento, no caso do Brasil – eu não coloquei no gráfico, mas é exatamente esse o gráfico no Brasil, inclusive, no Brasil, a queda aqui, nesse momento, é mais alta.

Então você vê que a resposta que a política econômica deu, no Brasil, de uma certa maneira, ela respondeu a condições estruturais. É claro que se no Brasil tivesse, por exemplo, uma classe capitalista altamente nacionalista, que pudesse, de alguma forma, liderar a população brasileira, poderia ter um comportamento diferente. Cadê? Talvez o Brasil pudesse ter mantido a sua industrialização, como o Belluzzo falou lá na entrevista dele, que nesse momento, você vê, tomou decisões de política econômica que começaram a destruir completamente a industrialização brasileira, que veio de um patamar de trinta e poucos por cento para um patamar de onze por cento, agora. E a política econômica tem um papel, mas também as causas estruturais estão presentes. Por que a China não entrou, vamos dizer assim, não se submeteu a esse regime, do neoliberalismo e da globalização internacional?

Porque na China houve uma revolução e tem um partido que é um partido autoritário e que, especialmente, não considero nem socialista, na perspectiva que o Marx tem do socialismo, que é o sistema baseado nos trabalhadores livremente associados, não um sistema em que o Partido Comunista comanda o sistema ferreamente. Mas de alguma forma houve a revolução, eles têm um povo que tem uma tradição milenar e eles resolveram aproveitar – os economistas chineses viram a chance – eles tinham essa mão de obra, os trabalhadores treinados, em homogênea, então foi possível oferecer ao Ocidente uma saída para a crise que acontecia nos Estados Unidos e na Europa, especialmente. Então eles começaram a receber as indústrias de trabalho intensivas, só que criaram as zonas para isso, zonas livres. E mais, ao mesmo tempo se preocuparam em  aprender a tecnologia, roubar a tecnologia, e aí eles conseguiram aquele desempenho formidável e hoje eles ameaçam a hegemonia dos Estados Unidos, sabe?

Mas no Brasil não existia as condições sociais para fazer isso. Esse é o fato! A gente tem uma classe dominante que se comporta, em relação ao Brasil, como o colonizador, essa é a minha tese tradicional, tem muito de… o Celso Furtado tem uma explicação em que ele explica a colonização do Brasil e dos Estados Unidos, e ele mostra que lá é diferente, nos Estados Unidos as pessoas saíram da Inglaterra, etcétera,  e iam para lá para fazer uma vida nova. Não, o Brasil foi uma colônia, então os estrangeiros, os portugueses e outros, vieram ao Brasil para explorar, e essa mentalidade  já está presente na classe dominante brasileira. E ela enxerga, ela gostaria de ser americana, de ser francesa, certo? Então, o que acontece? No Brasil não tinha essa força política para aproveitar a capacidade que o Brasil tinha, naquele momento, em 1980, de ser um polo de desenvolvimento da indústria, que poderia ter sido feito, eventualmente, não foi feito. Então está caindo e hoje a taxa de crescimento do Brasil está na ordem de 1%, numa taxa de lucro muito baixa, que dizem que está recuperando. Está se recuperando por quê? Tem um artigo recente do Samuel Pessoa, na Folha, que  estranhamente, como economista liberal, liberal, ele diz exatamente o que aconteceu. A taxa de lucro, no Brasil, está se recuperando porque o salário real caiu brutalmente, certo? Um desemprego enorme, eh desregulamentação do mercado de trabalho, das leis trabalhistas, a redução da proteção – que ainda não chegaram no ponto que querem – e portanto vai produzir uma recuperação da taxa de lucro. Se isso vai redundar num crescimento expressivo, é uma coisa problemática porque o que existe, atualmente, no mundo, a crise é capitalista é sempre uma crise de superprodução. Superprodução do quê? Superprodução de capital. Tem capital demais para pouco lucro, grosso modo é isso. Ou seja, então e voltando ao ponto anterior, se você ler no Marx como ele descreve as etapas da crise, ele diz: Tem o período de boom, a taxa de lucro sobe, depois você tem a superacumulação de capital, e aí a taxa de lucro cai e, num certo momento, há uma destruição e uma desvalorização do capital. Esse é o problema central que está ligado à emergência daquele que é chamado de financeirização.

Então vamos olhar o último gráfico que mostra esse processo da financeirização, que é um gráfico tradicional, todo mundo na economia conhece, mas ele mostra, na década de 1980, 1990, depois passa a anual, 2000, 2001, até 2019. Aqui está com uma uma diferença de 3 anos, e aqui mostra em azul o crescimento do PIB global, que vai de alguma coisa de 10 trilhões de dólares para 80 trilhões de dólares. Aqui, em 2019, enquanto que a massa de ativos financeiros, no mundo – que começa também no nível parecido – de 10 trilhões de dólares, hoje, atinge 400 trilhões de dólares, ou seja, 5 vezes mais o PIB mundial, está certo? Então, esse é o retrato, vamos dizer assim, à distância, do que é a financeirização. Então, o que é a financeirização. Por que ocorre a financeirização?

Quando tem a crise de 1970, os Estados nacionais, do centro do sistema, Estados Unidos e etcétera, não permitem que ocorra essa destruição de capital, essa desvalorização do capital, eles procuram outro caminho. Qual é o outro caminho? O outro caminho envolveu tudo aquilo que comentamos anteriormente. Você reduzir o salário real dos trabalhadores, impedir que eles cresçam, pelo menos enfraquecer os sindicatos, transferir trabalho intensivo pra Ásia, todas as medidas que são características da política neoliberal, com relação ao trabalho, e essa política teve aquele sucesso relativo nos países desenvolvidos, durante 17 anos, mais ou menos, está certo? Entretanto, criou-se esse problema que está aqui, ou seja, o único aumento crescente do capital financeiro, que é formado, grosso modo, por aquilo que o Marx chama de capital fictício, ou seja, capital que não comanda a produção de valor, é um capital que quer receber juros, tem uma remuneração, mas ele não produz, ele não induz à produção desse valor que ele recebe. Esse aumento aqui seria só é possível porque, em parte, a remuneração do capital financeiro é gerada pelo próprio capital financeiro, ou seja, em vez de o capital industrial, por exemplo, pagar para o capital financeiro, os juros, ele rola isso e os juros são pagos com o aumento da dívida. Então aumenta extraordinariamente a dívida. Isso é o como que, você vê, esse aumento constante, esses processos não são infinitos, ou seja, não é possível que infinitamente essa dívida cresça. Ou seja, vão ser criadas, ao longo do processo, crises financeiras, tá certo? A maior delas foi a crise de 2007, 2008, em que de novo os extratos nacionais, Estados Unidos e Europa, evitaram a debacle, porque a debacle envolveria a desmoralização dos capitais, o fechamento de milhares de empresas, desemprego na ordem de 20, 30%. Como aconteceu em 1929, é um horror, né? Tá certo? A deslegitimação completa do capitalismo. Então eles encontraram o caminho que é o chamado relaxamento monetário, ou em inglês o quantitative easing. Ou seja, o que visa isso? Visa criar liquidez nos principais bancos, e quando o banco tem liquidez ele não quebra. Ele pode estar e ao mesmo tempo que você fez o quantitative easing, para resolver o problema da liquidez dos bancos, ao mesmo tempo você comprou os artigos podres, unibancos, né? Ou talvez, temporariamente você colocou esses ativos lá no Banco Central Americano, o Banco Central Europeu, etcétera. Então conseguiram impedir a derrocada. Ao fazer isso, não recupera a taxa de lucro. Tanto na década de 1970, quanto agora nessa década passada, em que houve a crise de 2007, 2008, se evitou a grande derrocada que era da lógica da própria acumulação de capital. Então, em consequência, a finalização continua indo para frente e, portanto, a finalização não é apenas algo que provém da ideologia neoliberal, que dominou. De fato, a ideologia tem o papel importante, mas existem razões estruturais, sabe? E nesse momento se fala muito em mudança de direção.

Antonio Martins, mesmo, falou das políticas do Biden, tá certo? Eu não estudei bem as políticas do Biden, mas no quadro que eu apresento aqui, políticas keynesianas terão muita dificuldade, por quê? Porque a taxa de lucro está muito baixa. Então é possível – não sei se vai acontecer, teria que estudar os dados com mais precisão – é possível que volte uma situação que aconteceu no final da década dos anos setenta, que é um impulso de demanda, que não são respondidos com o aumento de oferta, mas com o aumento de preço. Isso é uma possibilidade, não sei se vai acontecer ou não, precisaria estudar mais nitidamente. O fato é geral, está certo? O que eu gostaria de enfatizar é o seguinte:

Primeiro, o capitalismo, em termos globais, está numa situação depressiva, está certo? Há uma longa recessão que os economistas, conservadores e liberais, chamam de estagnação secular e nós, do G7, chamamos de longa depressão. A financeirização tem uma lógica ligada à própria acumulação de capital. Ela é uma resposta, está certo? As dificuldades da acumulação de capital, de uma crise de superacumulação, é uma forma de fugir para frente da crise de superacumulação. É uma forma de fugir para frente. Ela resolve um tipo de problema, mas cria outro, né? Eu lembro que o Max tem uma frase famosa, no livro três, em que ele diz que é o capital é que cria os seus próprios problemas, ele cria barreiras, supera essas barreiras, para criar barreiras ainda mais poderosas. Então é isso que eu vejo na situação da economia mundial. Uma situação muito difícil, porque a saída para essa situação é está muito difícil, não é muito clara, tá certo?

Então a questão toda da nova política, está sendo interditada pelo pelo Banco Mundial. Existe todo um quadro de preocupação com isso, mas ainda não está claro, para mim, pelo menos, qual é o rumo dessa história. Falei muito?

Antonio Martins: Obrigado. Não, está ótimo! Eu acho que – a Áurea Castelo Branco está te saudando, a Maria Fátima Félix Rosário, em nome dela e do Orlando Rosário também está saudando. Eu acho que você traz – fazer uma primeira questão aqui pra você, Eleutério – você traz um aporte muito rico para o Projeto do Resgate. Aliás, dois. O primeiro que você deu é como não há muita saída dentro da lógica capitalista e eu acho que o exemplo que você deu, do keynesianismo, é importantíssimo. E não é simplesmente por erro de política, é porque sem romper os limites do capitalismo, aquela política de estado de bem-estar social que garantiu condições de vida realmente muito importantes, muito inéditas, em certo sentido, para os trabalhadores, ela só poderia ser mantida, ou só poderia ser aprofundada, saindo dos limites do capitalismo. Talvez, fazendo um pequeno exemplo aqui no Brasil, a gente possa comparar com a barreira que o projeto de inclusão social do Lulismo – que representou, inclusive, enriquecimento para certos setores do capitalismo – a barreira que esse projeto encontrou porque, sem ir além dos limites do sistema – você escreveu, inclusive no Outras Palavras – aquele projeto, embora tenha garantido condições de vida melhores para a população e garantindo, inclusive, enriquecimento de certos setores do capital. Mas, a partir do momento em que houve recuperação salarial, ele derrubou a taxa de lucro e isso se tornou insustentável para os capitalistas. Então, eu acho que esse é um ponto essencial, uma contribuição essencial.

E a outra é sobre os próprios limites da tentativa dos capitalistas de enriquecer, de levar adiante a luta de classes deles. Você traduziu um texto que a gente publica hoje, no Outras Palavras, de três economistas – se não me engano canadenses, é uma edição canadense – em que você mostra que, por mais que os capitalistas tenham ganhado na luta de classes, inclusive depois da pandemia, o enriquecimento exorbitante deles – isso, essa massa, esse último gráfico que você mostra também é muito eloquente – essa massa de riqueza que eles acumulam não é capaz de se realizar concretamente.

Eleutério Prado: Sim.

Antonio Martins: Porque não adianta produzir, porque não tem o que comprar. Então, num certo sentido, é o limite das políticas keynesianas, mas é o limite das próprias políticas neoliberais. Como a gente debate em termos de superação do capitalismo, e como o próprio Marx não se contentava em ver os gráficos da taxa de lucros, mas ele queria ver a ação concreta da sociedade, em especial dos trabalhadores, e eu fico te perguntando o seguinte: De que forma essa crise que a gente vive hoje não pode ser aproveitada para propôr, não em nome da volta ao Keynesianismo, mas de estourar os limites do capitalismo, os direitos sociais? Porque não importa, pra gente, se os capitalistas não vão querer reindustrializar o Brasil, mas importa pra gente ter uma indústria, seja quem quer que a faça, se eles não a fizerem – você deu o exemplo da China, que construiu políticas a partir das quais o país foi reindustrializado e, a partir das quais, inclusive atraiu capitais estrangeiros que, apesar de todas as contradições, fez uma revolução e tinha um projeto de se contrapor à ordem da ditadura total do capital – então, isso que eu fico te dizendo, porque no Resgate a gente não fala “vamos fazer a revolução”, mas a gente tenta esticar ao máximo as tensões e tenta a partir de necessidades concretas da população, estabelecer saneamento pra toda a população. Não é teoricamente um objetivo revolucionário – estabelecer redes de transporte coletivo nas cidades, estabelecer a saúde pública seja a melhor saúde, a educação pública seja a melhor educação. Por exemplo, 1968 foi um exemplo de revolta social nos países capitalistas, e até nos países socialistas, que poderia ter levado a uma superação do capitalismo. Talvez não houvesse densidade política para isso, mas foi uma crítica ao estado de bem-estar social pela esquerda, digamos assim, dizendo que aquela vida não era bastante, ter as migalhas que o capitalismo oferecia não era o bastante, era preciso criar uma vida nova.

Inclusive, no bloco socialista houve essas revoltas também e também não houve nenhuma compreensão, e nenhuma tentativa de aproveitar o impulso delas. Então, hoje, quando a gente está numa crise, que você mostra nos seus textos, que é deprimente, inclusive, em que a gente não sabe o futuro da humanidade, em que é preciso reconstruir um projeto de pós-capitalismo, de emancipação humana, será que a gente não pode partir dessas necessidades concretas da população para propor medidas que o capitalismo já não é capaz de realizar? E para demonstrar, desse modo, que a gente precisa ir além?

Eleutério Prado: Olha, em primeiro lugar eu gostaria de fazer uma seguinte observação, quando uma pessoa fala, hoje, em revolução, do ponto de vista da esquerda, a pessoa imagina que se vai refazer aquelas revoluções que já aconteceram – a revolução russa, a revolução chinesa, a revolução cubana e etcétera. Eu sou um democrata radical, tá certo? Eu não aceito governos que não respeitem a população, o direito da população se manifestar e a população decidir e etcétera. Então a palavra revolução ficou complicada, mas eu acho que a revolução é um processo emergente, que não é feita, digamos assim, por um partido ou por partidos. Ela acontece por causa, por exemplo, do desespero das populações quando começa a faltar comida, quando começa a faltar energia… Eu não sou cientista político, não sei quais são as condições que esse fenômeno exige, mas o fato é que as forças políticas – como você falou – têm que começar da base, você tem que começar da reclamação exatamente das coisas que ela precisa, tá certo? Então, por exemplo o a o Bolsa Família, do ponto de vista ético tem uns problemas, mas eu acho que é preciso pedir mais, não deixar, por exemplo o Governo atual, ele está querendo se eleger, então dá um golpe publicitário ou aumento. Então eu acho que é preciso construir, e o próprio Resgate faz isso, vão surgindo muitas ideias. É preciso fazer uma luta, por exemplo, para modificar a estrutura de impostos no Brasil, no sentido de tornar o imposto mais progressivo – porque no Brasil ele é progressivo até um ponto, depois de um ponto ele se torna regressivo – os ricos pagam pouquíssimo imposto no Brasil. Tudo isso são pautas. E um portal como o Outras Palavras faz isso, em muitos planos, saúde, salário, direitos, tá certo? Inclusive, tem que lutar, no presente momento, contra essa necopolítica. É isso! Temos que lutar contra isso. E é uma luta ampla, que não está só na esquerda, a gente enxerga também forças liberais que discordam dessa…

Então, eu vejo como um momento de emergência, na história da humanidade, em que as lutas vão se acirrar, porque eu acho que o capitalismo não tem mais condições, nem de criar as condições para uma acumulação de capital rápida, ele não tem mais condições de propiciar uma proteção social bem ampla, ainda que a gente queira e que vai lutar por isso, mas ele também não tem condições. Ele não tem condições, no fundo, de atacar os problemas ecológicos. A gente vê nos jornais os movimentos para combater o aquecimento global, mas quando você olha, na prática, o que é feito, é insuficiente. E nós estamos aí, possivelmente um ponto crítico, o ponto crítico é quando a coisa passa de um certo limite e aí há uma grande catástrofe.

E os países, a não ser alguns países europeus que tenham alguma coisa mais incisiva. Nos Estados Unidos, nos anos do Trump, foi usado intensivamente as energias fósseis, e com uns métodos altamente poluentes, porque tinha que enfiar água nos tubos para sair o óleo, está certo? Então, você vê no Brasil, estão destruindo a Amazônia. Hoje eu vejo nos blogues que a Amazônia pode estar no momento de transição, que vai entrar em decadência, nós estamo diante de uma emergência, de uma situação absurda, e eu lamento muito, mas eu acho que a consciência desse problema está se expandindo – do problema ecológico, dos problemas sociais, dos problemas econômicos – mas é muito lenta essa difusão, é assustador, a gente fica fica aterrorizado. Eu acredito que se houvesse uma grande consciência de que é preciso mudar, isso ajuda muito, mas não existe essa consciência, como se sabe, há uma grande desinformação, eu acho que nós vivemos num momento triste, em que vale realmente aquilo que você disse “mais provável hoje o fim da humanidade do que o fim do capitalismo”, mas a gente tem que lutar contra isso.

Antonio Martins: É, a nossa luta tem que ser em qualquer condição. Eu queria te provocar ainda sobre essa tua exposição, que me pareceu realmente muito rica, essa exposição sobre o ciclo do Max sobre o ciclo de acumulação de capital e de necessidade, num certo momento, de destruir esse capital, pra que passe a régua, num certo sentido, falando popularmente, pra que a roda comece a girar de baixo, de novo. Nós sabemos que tem duas formas de destruir capital. Uma são as guerras, o morticínio, ou você simplesmente, sei lá, provocar uma redução tão grande da capacidade de compra da população, que você tem que fazer a roda toda girar de novo. Mas pensando do lado otimista, se você tivesse – a partir dessa exposição que você fez – digamos a partir de uma enorme garantia de direitos sociais e de desmercantilização, você tivesse uma queda, não do volume, talvez, de capital, mas de que aquele estoque de capital significasse pouco, porque o estoque de capital social iria se ombrear a ele, num certo sentido.

Ou seja ou seja, eu não sou mais obrigado a pagar educação, eu não sou mais obrigado a pagar saúde, eu desmarcantilizo os medicamentos, por exemplo, eu desmercantilizo as cidades, eu desestimulo o acumulo de capital imobiliário, na forma de imóveis, por exemplo, essa forma de assegurar direitos não era uma forma de por a roda para girar de novo, de uma maneira a menos e mais humanitária?

Eleutério Prado: Eu acho que todos esses projetos, todas essas ideias, são absolutamente importantes, mas eu acho que haverá uma resistência fortíssima do poder capitalista. Veja, uma das coisas fundamentais1, que o Marx nos ensinou, e que é muito difícil de ser aceita, mesmo no ponto de vista da esquerda, e que os economistas que não são marxistas não aceitam de jeito nenhum, é que o capitalismo não visa o bem-estar das pessoas, o capitalismo visa a lucratividade. E o Marx diz que o capital é um sujeito automático, que domina as pessoas, e que é insaciável. Então, por que acontecem as crises? Porque o capital é insaciável, ele quer crescer, vamos dizer assim na brincadeira. Ele é meio doido, tá certo? Não é? É por isso é que a natureza da crise é uma crise sempre de superacumulação, porque está na natureza do capital crescer desmedidamente. Bom, então quando acontece essa crise, aí você tem processos – no passado isso era espontâneo – processos de desvalorização, destruição física das fábricas, fábricas fecham, o desemprego aumenta assustadoramente… por que isso acontece? Então, um grande problema, que algumas pessoas já anunciaram, é o seguinte: imagine você, hoje, uma revolução que seja destrutiva, que provoca uma guerra de classes, e que, como já mostrou o passado, produz uma grande destruição das forças produtivas, como que você vai recuperar depois? Então eu imagino que hoje o caminho para a transformação tem que ser um caminho que se baseia em princípios – muitos dos princípios importantes está num artigo que você escreveu, não me lembra agora o nome dele, mas que fala da política pacífica.

Não que a gente não aceite, eventualmente, nos defender da violência, mas temos que tentar de todas as maneiras, uma transformação social que consiga ser bem sucedida, que não leve ao poder um partido centralizador, que possa, de fato, abranger um grande número de países para mudar radicalmente essa lógica da acumulação de capital, que é uma lógica de um sujeito automático, e é por causa dessa lógica que o capitalismo não consegue combater, de fato, a poluição, porque eles se baseia na exploração da natureza e na exploração do homem, então, portanto, ele não pode resolver o problema da crise ecológica e vai tentar fazer algumas medidas – até agora são muito ineficientes, sabe?

Então eu acho que a gente tem que juntar forças e reclamar, pedir, exigir que as coisas que são necessárias para a vida, ou seja, os valores de uso, em geral, como o capitalismo da bolsa de valores, ele quer a lucratividade, nós não! A população toda, ela quer o valor de uso, então ela tem que contrapor a isso, tá certo? No fundo, essa contraposição tem que ser instigada a tal e esse é o caminho que restou. O caminho de uma guerra mundial também é um caminho direto para o fim do mundo. Usar armas atômicas, um usa, o outro usa, e aí é um dominó, aquelas cartas em que uma vai derrubando a outra. Então, o meu meu ponto é esse, eu gostaria de dar deixar claro esse quadro, tá certo?

É claro que existe diferença, divergência. Não sei se o Belluzzo compraria todo este esse quadro. Eu acho, por exemplo, que o Ladislau não compraria, seguramente, ele tem uma maneira diferente de pensar, sabe? Eu acho que ele tem mais influência keynesiana do que do que eu. Mas a gente vai discutindo e tentando mudar o mundo.

Antonio Martins: E de qualquer jeito nós sabemos que estamos, como você falou, em emergência. E em emergência nós temos que identificar as brechas que há.

Eleutério Prado: Você publicou um artigo de um autor, o Edgar Morin, em que ele diz exatamente isso, que está muito decepcionado mas ainda acredita nos processos de emergências, tá certo? E os processos emergentes ninguém os produz forçadamente, obrigatoriamente os engendra, eles surgem e, de repente, nós – como aconteceu no Chile – aí você tem claramente o exemplo de um processo de repente de emergência de um movimento maciço, num país que até é bem sucedido, do ponto de vista neoliberal.

Antonio Martins: Onde parecia que nunca ia acontecer, de lá que surgiu, ao contrário do que diz o o Barão de Itararé.

Eleutério Prado: Também na Colômbia. A Colômbia tem uma repressão violentíssima, tem acontecido esse movimento todo na Colômbia mostrando, é um processo emergente. Não foi um partido de esquerda, A, B ou C, que produziu aquilo. E o Chile é a mesma coisa, aquilo acontece, e no Brasil vai acontecer.

Antonio Martins: Vamos trabalhar pra isso aconteça. Eleutério, eu não posso concluir essa entrevista sem te provocar em mais uma coisa. Você mantém um blog que se chama Economia e Complexidade, que está aí embaixo da tela para os leitores verem, e você é um estudioso – não sei há muito tempo, mas pelo menos recentemente – da psicanálise, você escreve a respeito, inclusive, dela. De que forma a complexidade e a psicanálise temperam o seu marxismo?

Eleutério Prado: É complicado. Eu, bom a gente tem que olhar a formação da gente. Eu tinha um avô que era intelectual, eu tinha uns tios que eram intelectuais, meu pai era um médico e tal, mas sempre estudava, e eu sou um cara que estudou. Então, eu gosto de estudar. Eu já estudei, um período, teoria da evolução. Teve uma época que eu li dezenas de livros sobre a teoria da evolução, os debates e etcétera. E inclusive tem alguma coisa de teoria da evolução no campo da economia. E eu sempre tive curiosidade para entender Freud, eu agora, depois que eu fiquei aposentado, eu compro os livros e estou lendo. Estou lendo, não sei como é que junta tudo isso, não sei. E o Economia e complexidade, eu trabalhei durante dez anos nisso, eu cheguei à conclusão de que está implícito, na ciência moderna, que é uma ciência que se preocupa com as relações externas entre os fenômenos – todas as ciências – e a dialética do Hegel, e depois do Marx – o que eles fazem? – eles dizem “Não! Nós temos que olhar a lei das formas aparentes, aquilo que está implícito, as leis que engendram as coisas, ou seja, os nexos internos”. Essas complexidade, na verdade, é um movimento nessa direção, tem que compreender não apenas o funcionamento das coisas, mas também como as coisas estão estruturadas, a estrutura do átomo, a estrutura da sociedade, a estrutura do organismo, tudo isso tem estrutura. Portanto também tem uma estrutura psíquica, o Freud apresentou, de uma certa maneira. Então, junta tudo, porque a complexidade não é um tipo de conhecimento que se foca em campos específicos, ao contrário, ela é multidisciplinar, ela tem essa ambição. Isso se vê muito claramente no Morin. Morin, aliás eu adoro. O Morin é um dos meus ídolos.

Antonio Martins: Miranda está te cumprimentando pela exposição didática. Antes de terminar, eu queria convidar o pessoal para os próximos debates. Amanhã não teremos, mas na segunda-feira voltamos, ainda para discutir essa ideia força da superação do neoliberalismo, das políticas mal chamadas de austeridade, com a Graça Druck e Luiz Filgueiras, amigos do Eleutério, pessoas que ele apresentou para o Outras Palavras. São dois professores da Bahia, autores de ótimos textos sobre análise de conjuntura, no Outras Palavras. Eles vão discutir estratégias políticas para vencer o ajuste fiscal. Na terça-feira nós vamos sair um pouquinho desse debate e vamos antecipar uma outra ideia-força. Nós vamos ter, com muita satisfação, a Ermínia Maricato discutindo novos caminhos para a reforma urbana. Na quarta-feira, o Elias Jabour, economista também estudioso da China, vai falar sobre as políticas fiscais e monetárias nesse país. No dia 29, um debate muito provocador, o tema é “construir o pós-neoliberalismo fiscal – as contribuições do marxismo, do que Keynesianismo e da Teoria Monetária Moderna”. Teremos 3 pessoas debatendo, o Samuel Braun, próximo da Teoria Monetária Moderna, a Leda Paulani, do marxismo, e o Carlos Bastos, do Keynesianismo.

O Júlio Bonner está gostando muito da entrevista, disse que é para ser largamente compartilhada e que você, Eleutério, tem a admiração dele. Obrigado pessoal, nós poderíamos ficar muito tempo ainda conversando, infelizmente temos que encerrar, nós esperamos ter muito Eleutério Prado nesse processo e nesse debate do Resgate. Teremos outras ocasiões para fazer isso. O Resgate é um projeto que vai se estender por pelo menos um ano. Obrigado a vocês todos que participaram! E um obrigado e um carinho muito especial a você, Eleutério, por mais essa colaboração. Estamo juntos!

Eleutério Prado: Eu agradeço! Eu acho que falei um pouco demais, não deixei você falar deixei você falar muito.

Antonio Martins: Mas o meu papel é te ouvir aqui.

Eleutério Prado: Eu vou mandar para você o texto, que eu escrevi recentemente e que se chama “o capitalismo se tornou insustentável”, em que essas ideias estão arrumadinhas, para ver se cabe no Outras Palavras. Então muito obrigado e um grande abraço a todos que ouviram.

Antonio Martins: Vamos publicar com muito prazer e seguimos juntos em busca de brechas pra evitar a catástrofe. Muito obrigado, Cecília Ceciliato está mandando um grande abraço para você também. Muito obrigado, Eleutério, até a próxima!

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6 comentários para "“Não é possível resgatar mais nada sob o capitalismo”"

  1. eugenio Augusto disse:

    Um monte de incoerência e teias criadas para esconder o real pensamento progressista

  2. Francisco Assis Santana disse:

    Projeto resgate diariamente necessário.Construcao minuto a minuto, hora a hora, sem largar. Radical no sentido raiz da palavra.

  3. Wellington Moreira de Souza disse:

    O maior erro dos intelectuais dos Campos da economia, sociologia , etc…. São : criar conceitos ilusórios de termos e nomecraturas. Definitivamente não existe capitalismo, socialismo, comunismo, trata- se dá negação e dá não aceitação da realidade humana de tempo- vida- espaço, o ser humano ao negar-se como princípio e parte incondicional da terra e do universo , busca contrariar a Gênesis e apontar caminhos que levam a uma profusão de labirintos sofrível. A falta dessa aceitação levará a humanidade a esse descaminho da retidão, da verdade do equilíbrio e da felicidade. Assim! Tudo, absolutamente tudo será só ?? ” Vaidade” .

  4. Não acredito q isso veio pra mim, com palavras distorcidas como sempre, não consegui ler o primeiro parágrafo, atacar o capitalismo, eu prefiro trabalhar como trabalho e comprar oq eu quero com meu dinheiro sem depender de estado montado nas minhas costas como o tal socialismo q tanto defendem, o comunismo está logo após o socialismo, ou são a mesma coisa, pois de todas as formas quem trabalha e é de classe média se lasca com esses sistema q já caiu de podre de tão sujo que é, ignorante quem diz o contrário disso.

  5. “…Certos fundamentos que dão sustentação social e política ao próprio capitalismo”, mencionado no conteúdo do texto, não estão vinculados o acesso ao ensino superior em respeito às diversidades e às pluralidades da sociedade preconizadas pela Carta Magna de 1988, daí as crises consequentes.

  6. alirio jose pinho disse:

    Excelente texto

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