Que viva México!
Pressionada por Trump, Cláudia Sheinbaum reúne multidão para comemorar seus 100 dias de governo, anuncia planos ousados e mostra a relevância do “Populismo de Esquerda” – alternativa diante da crise civilizatória e do rosnar da ultradireita
Publicado 13/01/2025 às 11:12 - Atualizado 13/01/2025 às 14:36
Por Antonio Martins
A cena parece pertencer a outro tempo, mais feliz. Falando ontem (12/1) a uma multidão de dezenas de milhares, que lotou o gigantesco Zócalo da Cidade do México e as ruas adjacentes, a presidenta Claudia Sheinbaum lançou mais um elegante desafio a Donald Trump. Lembrou que os presidentes dos dois países colaboraram em muitos momentos: Abrahan Lincoln com Benito Juarez, contra a invasão francesa; Franklin Roosevelt com Lázaro Cárdenas, que nacionalizou o petróleo e concluiu a reforma agrária. Porém, frisou, diante das ameaças de Trump, de expulsar milhões de imigrantes mexicanos e impor tarifas proibitivas às exportações mexicanas: “Não vamos regressar ao modelo neoliberal. [Com os EUA], nos coordenamos, colaboramos, mas nunca nos submeteremos”. A multidão interrompeu-a em coro: “México! México! México!…”
Dias antes, depois de Trump propor renomear o Golfo do México, chamando-o de Golfo Americano, Sheinbaum retrucara: “A denominação é reconhecida pela ONU mas, se é para mudar, poderíamos resgatar os antigos mapas e chamar os EUA de América Mexicana. Soa bonito, não?” Apenas cem dias depois de empossada, a governante de 62 anos – uma climatóloga que nasceu em família de intelectuais, foi ativista estudantil, considera-se “filha de 1968” e aderiu ao “populismo de esquerda” de seu antecessor – parece disposta a dar continuidade à herança de Andrés Manuel Lopez Obrador (o “AMLO”) e, ao mesmo tempo, transformá-la. Insinua uma presença muito mais ativa na cena internacional. Inaugurou-a com brilho, durante a Cúpula do G-20, no Rio. Ainda mais importante: indica que, diante da crise civilizatória e dos arreganhos da ultradireita, a esquerda não precisa encolher-se, nem buscar refúgio num liberalismo moribundo. Pode buscar um novo projeto, cujas bases são atender as demandas básicas das maiorias e avançar na construção de um novo Comum.
É disso que Sheinbaum falou à multidão, no discurso do Zócalo. Seu governo ampliou o direito à aposentadoria dos idosos e incapacitados que não puderam contribuir com a Previdência. Elevou o gasto público, ao invés de constrangê-lo com “ajustes fiscais”. Graças a isso, construirá 1 milhão de casas populares, para quem recebe até 3 salários mínimos. Implanta rapidamente uma estrutura nacional de saúde da família. Erguerá seis novos campi universitários. Manteve as políticas que garantiram um aumento real de 135% no salário mínimo, desde 2018. E aprovou há poucas semanas, no Congresso, uma lei que garante, aos trabalhadores em empresas-plataforma, direitos como previdência social, seguro contra acidentes, pensões, licença-maternidade, participação nos lucros da empresa e um bônus de Natal.
No terreno da infraestrutura – que também implica elevar o gasto público para garantir melhores condições de vida – Sheinbaum anunciou no Zócalo a retomada dos trens de passageiros, com três novas ferrovias (serão em parte construídas por batalhões de engenharia do exército). Ressaltou as ações para tornar novamente públicas as empresas de petróleo (Pemex) e eletricidade. E, cereja no bolo, lembrou que em 1º de junho os mexicanos elegerão democraticamente, pela primeira vez na História, juízes, desembargadores e ministros da Suprema Corte.
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Os feitos são possíveis graças a um cenário muito particular, totalmente distinto do brasileiro. Em 2024, além de vencer as eleições para o Executivo por amplíssima margem (60% contra 28% da segunda colocada), a coalizão de Sheinbaum (formada pelo Morena, seu partido, pelo Partido do Trabalho e Partido Verde Ecologista) elegeu 364 dos 500 deputados e 83 dos 128 senadores. Isso foi possível graças tanto à popularidade de AMLO quanto às características muito peculiares do Morena (Movimento de Regeneração Nacional): as que permitem falar em “populismo de esquerda”.
Fundado em 2011, a princípio como uma associação civil, o partido formou-se no ambiente de contestação do início do século, que assistiu aos Fóruns Sociais Mundiais, à Primavera Árabe e a rebeliões como a dos Indignados espanhóis, o Occupy Wall Street e a revolta do passe livre, no Brasil. Era claramente antissistema, mas tinha sotaque mexicano. Não praticava o horizontalismo, ao contrário do Podemos, nem tinha um programa radical. Ao contrário: levava a marca de Lopez Obrador, seu fundador. Este, que disputou duas eleições presidenciais (2006 e 2012) e governou a Cidade do México antes de se eleger, em 2018, já era um político tarimbado, carismático e centralizador – apesar de muito combativo contra os partidos tradicionais e suas relações com o grande poder econômico.
Suas características mais marcantes eram as capacidades de pautar a agenda política e de dialogar com as maiorias – o que fechou, no México, o espaço para os apelos da ultradireita. AMLO lançou, desde os primeiros dias de governo, as mañaneras, entrevistas coletivas prolongadas que oferecia no início do dia. Nelas, expunha os planos do governo, as estratégias para alcançá-los e, em especial, as resistências do sistema. Embora a contragosto, a mídia comercial via-se obrigada a cobri-las, dada sua enorme repercussão.
A classe média – inclusive em seus setores intelectualizados – jamais aceitou Lopez Obrador. Uma pesquisa às vésperas da eleição de Sheinbaum mostrou que 65% dos eleitores com ensino fundamental apoiavam o Morena, assim como 49% com diploma universitário – mas apenas 17% daqueles com mestrado ou doutorado. À mesma época, o percentual dos que expressavam “confiança no governo nacional”, entre o conjunto da população, saltava a 61% (em comparação a 29% no início do mandato de AMLO). 73% consideravam que seu padrão de vida “estava melhorando” e 57% diziam o mesmo em relação à economia do país.
Obrador sofreu resistência encarniçada no Congresso e no Judiciário, ao longo de todo o mandato. Suas duas respostas foram preparar, para 2024, uma campanha eleitoral muito incisiva e propor a grande reforma do Judiciário. Cumpriu a primeira. Sheimbaum prepara-se para executar a segunda. A eleição direta de juízes é certamente um passo arriscado, mas as razões para a mudança são claras – como demonstrou o analista Edwin Acherman, num texto indispensável sobre o cenário mexicano, que Outras Palavras traduziu. Além de atrelada ao grande poder econômico por laços pessoais e ideológicos, a Justiça é, também no México, oligárquica, racista e pobrefóbica.
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A principal surpresa oferecida por Sheinbaum em seus primeiros cem dias de governo foi manter o diálogo direto com a população que marcou AMLO. Conservou inclusive as mañaneras, contrariando os que esperavam uma governante mais contida e enquadrada – e em especial a mídia, que a “acusa” de “não ter estilo próprio”. Ironizou-os no Zócalo, chamando-os de “comentocracia”. “Foi para isso que nos elegemos: para dar continuidade”. Porém, ao contrário de Obrador, que sequer viajava ao exterior, destacou-se no plano internacional não apenas por zombar do “Golfo Americano”; mas por manter constantes conversações com Gustavo Petro, da Colômbia; reagir (ao contrário do Brasil) à cobiça de Trump sobre o Canal do Panamá; e propor, junto com sua colega Xiomara Castro, de Honduras, um encontro de urgência das chancelarias latinoamericanas, para analisar as ameaças de Washington contra os imigrantes da região.
A mobilização social promovida por Sheinbaum pode dar-lhe forças para enfrentar as batalhas difíceis que virão. Há décadas a economia mexicana está, em boa parte, voltada para exportações aos EUA. A tendência cresceu nos últimos anos, quando, diante da guerra comercial movida por Washington contra a China, empresas desse país instalaram-se no México para exportar a partir de lá, beneficiando-se do acordo de “livre” comércio entre as nações da América do Norte. Caso Trump leve adiante a ameaça de restringir severamente este comércio, a economia mexicana enfrentará desafios duros.
Além disso, há 10,6 milhões de mexicanos vivendo nos EUA. Se parte importante deles for deportada, como propõe o bufão que está prestes a assumir o governo em Washington, o México se deparará com um enorme contingente de cidadãos a quem será preciso oferecer ocupação. Além disso, perderá uma fonte importante de divisas. Os mexicanos nos EUA enviam ao país 65 bilhões de dólares ao ano, lembrou ontem a presidente. E no entanto, frisou: “Eles e elas contribuem com a economia do México, mas – que se escute em alto e bom som – contribuem mais com a economia dos EUA, pois trabalham como ninguém e o que nos enviam é apenas 20% do que deixam ali em consumo, poupança e impostos”.
A altivez destas palavras, assim como o caráter dos governos de AMLO e Sheinbaum e sua popularidade duradoura (na pesquisa mais recente, a presidenta aparece com 80% de apoio) convidam a examinar melhor a hipótese do populismo de esquerda (veja nosso vídeo a respeito). É a ele que a filósofa Nancy Fraser se refere, ao propor hoje, em entrevista à Folha, que, em face da ameaça de Trump, articule-se não a volta às políticas do século XX, mas uma “coalizão ampliada da classe trabalhadora, que inclui imigrantes, pessoas racializadas, trabalhadores do setor de serviços, empregadas domésticas e até donas de casa que realizam trabalho não remunerado”.
Para compreender alinda melhor a ideia, vale ler a filósofa política Chantal Mouffe, inclusive em Outras Palavras. Em Por um Populismo de Esquerda, uma de suas obras mais recentes (Ed. Autonomia Literária), ela percorre os processos históricos centrais de nosso tempo – crise da democracia, explosão das desigualdades e descoesão social. E argumenta: a revolta resultante pode alimentar transformações radicais. Porém, frisa: os “velhos partidos tornaram-se incapazes de enfrentar a direita, por insistirem no bom-mocismo e na volta ao ‘velho normal’. É hora do choque Multidão X Oligarquia; e de recolocar os afetos no centro da política”.