Os sinais de uma internet sem donos

Fairmondo-team

No Fairmondo as próprias pessoas oferecem seus produtos, sem a intermediação de um gigante como a Amazon. O app busca construir um mercado online global descentralizado de propriedade coletiva.

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Sem o alarido do Uber ou AirBnB, multiplicam-se plataformas alternativas para compartilhar casas transporte, produções artísticas e trabalho. Nelas, a lógica do capital é substituída pela cooperativa

Por Trebor Scholz

Terceiro capítulo, revisados e adaptados por Outras Palavras, do livro Cooperativismo de Plataforma, publicado no Brasil pela Fundação Rosa Luxemburgo e editoras Elefante e Autonomia Literária. 

Leia o primeiro capítulo (Para que a internet não devaste a sociedade) e o segundo (A ascensão do cooperativismo digital).

Exemplos iniciais de plataformas para cooperação já existem, mas elas estão apenas emergindo. Nomeá-las aqui inevitavelmente excluirá outros projetos importantes. Mas deixar de apresentar exemplos concretos nos deixaria suscetíveis a críticas de que o cooperativismo digital não é nada além de uma ideia abstrata.

Intermediação de trabalho online de propriedade coletiva

Muito provavelmente, você está familiarizado com o modelo de intermediação de trabalho online. Pense em empresas como TaskRabbit, onde você pode agendar que alguém monte seus móveis da Ikea em apenas vinte minutos. O aplicativo no seu aparelho celular serve como intermediário entre você e o trabalhador. A cada transação, a TaskRabbit recebe de 20% a 30% do valor transacionado.

A advogada da “economia do compartilhamento” Janelle Orsi nota um aumento decisivo do interesse por cooperativas. Ela afirma que dezenas de startups de tecnologia e negócios tradicionais, como floristas e paisagistas, buscaram o seu centro – Sustainable Economies Law Center1 — porque estão interessadas em mergulhar na multidão e fazer a migração de seus negócios para o modelo de cooperativa.

COOPERATIVISMO-DE-PLATAFORMA

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Em São Francisco, a Loconomics é uma cooperativa de trabalhadores freelancers (em versão beta) onde os membrxs são donos de ações, recebem dividendos e possuem voz na gestão da empresa. Não há oferta e margem de lucro. A Loconomics oferece massagens e outros serviços que já estão nos locais onde são oferecidos. A inscrição custa US$ 29,95 por mês. Os fundadores estão testando o aplicativo na área de São Francisco no início de 2016 e pretendem lançar em outras cidades dos EUA ao longo do ano.

Ali Alkhatib, um estudante de doutorado em Ciência da Computação em Stanford, trabalhou na Microsoft fuse Labs no desenho de uma “plataforma de economia em pares centrada nos trabalhadores e generalizável” que permitia que trabalhadores fossem donos, operassem e controlassem o software2. O projeto ainda está nos seus estágios iniciais.

Na Alemanha, a Fairmondo começou como um mercado online descentralizado de propriedade dos próprios usuários – uma alternativa cooperativa à Amazon e à eBay. Com 2 mil membros, ela aspira a tornar-se uma alternativa genuína às grandes lojas de comércio eletrônico, permanecendo fiel aos seus valores. O site também promove um pequeno número de trocas justas e empresas eticamente comprometidas. No processo de transferência de seu modelo da Alemanha para outros países, busca construir um mercado online global descentralizado que é propriedade coletiva de por todas as cooperativas locais.

A Coopify é uma plataforma de trabalho construída por estudantes que, em breve, irá servir trabalhadores de baixa renda que oferecem serviços sob demanda. Ela foi criada pelo programa de MBA em tecnologia da Universidade de Cornell e financiada pela Robin Hood Foundation, de Nova York. Os trabalhadores da Coopify serão pessoas de baixa renda de Nova York que estão desempregadas e não possuem histórico de crédito que lhes permitam participar de outros mercados online. A plataforma, que tem seu próprio sistema de referência e apoio multilíngue, irá oferecer aos trabalhadores apoio com tributos e permitirá que o pagamento seja feito em dinheiro. A Center for Family Life (CFL) em Sunset Park, Nova York, é uma agência de apoio social que está testando a Coopify. A CFLestá incubando cooperativas de trabalho como uma forma de promover salários justos e condições de trabalho dignas para imigrantes de baixa renda desde 2006. O centro apoia nove cooperativas – a maioria, de mulheres latinas. O Coopify irá ajudar essas cooperativas a competir melhor com empresas como Handy e Amazon Flex.

Plataformas cooperativas controladas por cidades

Após falar de produtorxs culturais, vamos dar um grande salto e discutir propriedade pública. O economista político e fundador da Democracy Collaborative, Gar Alperovitz, escreve que há mais de 2.000 entidades públicas do setor elétrico que, juntamente com cooperativas, garantem mais de 25% da eletricidade nos EUA3. Alperovitz indica a longa história de cidades como Dallas, que tinha a propriedade de hotéis, e municípios em todos EUA os que possuíam hospitais. Contrariamente à opinião pública, esse modelo tem aparentemente funcionado bem.

Janelle Orsi tem detalhado ideias sobre propriedade e Internet. Respondendo à minha proposta de clonar e reestruturar tecnologias da economia do compartilhamento com base em valores democráticos, Orsi sugeriu um empreendimento desenhado por uma cidade, similar ao Airbnb, que pudesse servir como um mercado online onde as pessoas alugam seu espaço para viajantes. Tal projeto já está em execução em Seul, na Coreia do Sul, que está propondo criar uma Aliança de Cidades pela Economia de Plataformas (Cities Alliance for Platform Economy, CAPE) com o objetivo de organizar cidades em torno da ideia de plataformas.

O projeto foi batizado como Munibnb e pode ser criado como colaboração entre um grande número de cidades que iriam reunir seus recursos para criar um software de plataforma para aluguéis de curta duração. As taxas poderiam ficar com os donos dos imóveis e poderiam ser direcionadas parcialmente ao município, que as usaria, por exemplo, para políticas para idosos ou manutenção de vias públicas. Orsi pergunta:

Por que milhões de dólares de viajantes fluem de nossas cidades para as mãos de acionistas ricos, especialmente se não é muito difícil iniciar operações por meio de algo como o Munibnb? 4

Outro aplicativo sugerido por Orsi, se chama Allbnb e envolveria o pagamento a residentes do dividendo dos lucros do aluguel dessa plataforma, comparável ao Fundo de Pagamentos do Alaska, que paga aos residentes alguns milhares de dólares todo ano, em razão do lucro que o estado tem com a venda de petróleo. Esses aplicativos parecem factíveis; eles permitiriam que cidades tivessem não somente um papel regulatório na “economia sob demanda”; as cidades estariam ativamente moldando tal economia.

Plataformas de propriedade dos “produsuários”

O termo “produsuário”5, que não é um erro de digitação, mas uma junção dos termos “usuário” e “produtor”6. Plataformas de propriedade dos produsuários são uma resposta às plataformas monopolísticas como Facebook e Google, que atraem usuários com a promessa de “serviço gratuito” mas monetizam seu conteúdo e seus dados.

E se pudéssemos ser donos de nossa própria versão do Facebook, Spotify ou Netflix? E se os fotógrafos do Shutterstock pudessem ser donxs das plataformas onde suas fotos são vendidas?

Sites como Member’s Media, Stocksy e Resonate são um passo na direção de responder a essas perguntas. Eles oferecem aos produsuários a oportunidade de copropriedade do site por meio do qual eles estão distribuindo suas obras de arte. Plataformas de propriedade dos produsuários permitem que artistas construam suas carreiras pela copropriedade das plataformas por meio das quais vendem seu trabalho.

A plataforma Resonate, baseada em Berlim, é uma cooperativa de streaming de música possuída pelas pessoas que a utilizam. Na Resonate, os usuários fazem o stream de uma música até que sejam donos dela. Na primeira vez que uma música é tocada, ela custa 0,002 centavos, na segunda vez 0,004 centavos, e na quarta ou quinta vez, eles se conectam com ela; e, por fim, viram donos dela.

A Stocksy7 é uma cooperativa de artistas para a formação de bancos de fotografias. A cooperativa é baseada na ideia de compartilhamento de lucros e copropriedade com os artistas que contribuem com fotos para o site. Os artistas podem se candidatar para se tornarem membrxs e, quando aceitos, licenciam imagens e recebem 50% da comissão de vendas, bem como uma divisão dos lucros no final do ano. O objetivo da cooperativa é criar carreiras sustentáveis para os membrxs. Em 2014, as receitas chegaram a US$ 3,7 milhões de dólares, e, desde a fundação da cooperativa, foram pagos milhões de dólares em lucro para os artistas.

A Member’s Media é uma plataforma de mídia possuída cooperativamente que se dedica a produtos e fãs de filmes independentes. As pessoas que usam este site e produzem para ele os produsuários – possuem a maioria da plataforma junto com os membrxs originais e os investidorxs.

Plataformas de trabalho mantidas por sindicatos

Há muitos exemplos de cidades dos EUA onde taxistas e sindicatos começaram a trabalhar juntos, construindo aplicativos e organizando o setor de táxi. E, se as empresas forem inteligentes, elas irão saudar os sindicatos, pois estudos mostram que trabalhadorxs sindicalizadxs têm uma taxa de retenção melhor e, ao menos, a mesma produtividade8.

Em Newark, o serviço Trans Union Car começou como um serviço de táxi sem fins lucrativos com motoristas que eram parte do filiados ao sindicato dos trabalhadores em comunicações (CWA) local. Motoristas beneficiam-se do sindicato com muitas proteções, como acesso a crédito e planos de saúde para imigrantes, bem como fundos de aposentadoria. A empresa está agora planejamento expandir-se para Atlantic City, Elizabeth e Hoboken.

Já em 2007, motoristas de táxi uniram-se ao CWA local e, dois anos mais tarde, conseguiram lançar a Union Taxi, a primeira cooperativa de propriedade de motoristas de Denver. Eles também estão recendo apoio da organização 1worker1vote.org, que apoia cooperativas sindicalizadas ao ajudá-las a encontrar caminhos para negociar salários, planos de benefícios e programas de treinamento. O capital inicial, geralmente um grande problema para cooperativas, é uma questão menor, pois os motoristas já possuem o equipamento.

A organização sem fins lucrativos Associação de Motoristas com Aolicativos da California (CADA) reuniu motoristas de empresas de intermediação de transporte como Uber, Lyft e Sidecar. Os motoristas da CADA não são empregados e, portanto, não podem se tornar membros do sindicato. No entanto, o sindicato Teamster Local 986, da Califórnia, pode fazer pressão para uma regulação amigável aos motoristas. Tenta-se garantir que os motoristas trabalhando para empresas como Lyft e Uber falem com uma voz unifida.

Cooperativas tomadas aos capitalistas

Outra proposta sedutora e imaginária é a ideia de cooperativas de trabalho que se formam no interior do capitalismo do compartilhamento. Motoristas da Uber poderiam usar a infraestrutura técnica da empresa para formar seus próprios empreendimentos. Tal tomada pelos trabalhadores, indesejada pelos donos da plataforma, poderia ser imaginada como o resultado de uma ação antitruste comparável à que foi movida contra a Microsoft após o lançamento do Internet Explorer.

A plataforma como protocolo

Talvez o futuro do trabalho possa não ser ditado por plataformas centralizadas, mesmo se elas forem operadas por cooperativas. A La’Zooz, de Israel, por exemplo, é uma rede de caronas e transporte distribuída de ponta a ponta. Enquanto o Member’s Media quer que você pense nele como o Netflix para produtores e fãs, de propriedade dxs produsuários, a La’Zooz pode ser vista como o BitTorrent do compartilhamento de transporte. Qualquer um que está dirigindo em uma cidade pode receber crypto tokens ao levar um viajante para algum destino. De modo distinto ao sistema previamente descrito, este é inteiramente ponta a ponta, não há um ponto central, nenhum quartel-general.

1Sustainable Economies Law Center. http://www.theselc.org.

2Alkhatib, Ali. Designing Worker–Centric Labor Markets. 13 nov. 2015. https://alilkhatib.com/media/presentations/PlatformCooperativism.pdf.

3Alperovitz, Gar; Hanna, Thomas M. Socialism, American-Style. The New York Times. 23 jul. 2015. http://www.nytimes.com/2015/07/23/opinion/socialism-american-style.html

4Schneider, Nathan. 5 Ways to Take Back the Tech. The Nation, 27 maio 2015. http://www.thenation.com/article/5-ways-take-back-tech.

5N.T.: A tradução do termo produser, criado por Axel Bruns, por produsuário foi feita por Camila Wenzel, da Universidade Federal de Juiz de Fora. Ver: Wenzel, Camila. A nova economia e o “produsuário” no Second Life. In: XIV Congresso de Ciências da Comunicação na região Sudeste, Rio de Uaneiro, 7-9 maio 2009. http://www.intercom.org.br/papers/regionais/sudeste2009/resumos/R14-0898-1.pdf.

6Sobre o termo produsage, criado por Axel Bruns, ver Schneider, Nathan. Owning is the New Sharing. Shareable, 21 dez. 2014. http://www.shareable.net/blog/owning-is-the-new-sharing.

7Stocksy. Raising the bar–and the industry’s expectations–of stock photography. https://www.stocksy.com/service/about

8Triplett, Jack (Ed.). The Measurement of Labor Cost, University of Chicago, 1983, p.

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