O legado do zapatismo, 28 anos após o levante

Economia desmonetizada. Agroecologia. Governantes que “mandam obedecendo”. Novas relações de gênero. Nas comunas autônomas do sul do México, sinais do mundo novo que o subcomandante Marcos anunciou em 1994

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> Este texto é parte da edição 278 da Revista Cult — parceira editorial de Outras Palavras. O número reúne um dossiê sobre os Zapatistas. Veja o índice completo e conheça o espaço Cult no OP

Por Jérôme Baschet na Revista Cult

A autonomia zapatista, construída a partir de 1º de janeiro de 1994 em Chiapas, no sudoeste do México, constitui uma das mais notáveis experiências rebeldes contemporâneas, dada sua amplitude, persistência e radicalidade. Em meio a condições materiais particularmente difíceis, e apesar da hostilidade constante por parte dos poderes vigentes, o zapatismo instaurou uma forma de autogoverno popular em ruptura com as instituições do Estado mexicano, ao mesmo tempo que defende modos de vida que representam uma alternativa concreta à lógica capitalista dominante. Seu alcance, obviamente, ultrapassa em muito as fronteiras mexicanas.

A autonomia zapatista é fruto de uma história muito singular, impossível de resumir aqui em detalhes: levante armado em 1º de janeiro; cessar-fogo rapidamente implementado; longo período de negociação entre o governo federal e o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), culminando nos Acordos de San Andrés, em fevereiro de 1996; desrespeito desses acordos pelo governo mexicano e massacre de Acteal por paramilitares, em dezembro de 1997; exigência de inclusão dos Acordos de San Andrés na Constituição, culminando na Marcha da Cor da Terra, em 2001; votação pelo Parlamento de uma contrarreforma indígena, desencadeando a decisão dos zapatistas de implementar de facto a autonomia. Disso resultou a criação, em 2003, de cinco conselhos de bom governo, federando 27 comunas autônomas rebeldes zapatistas. Por fim, em agosto de 2019, uma nova expansão da autonomia foi anunciada com a criação de quatro novas comunas autônomas e de sete novos conselhos de bom governo. No total, a zona de influência zapatista se estende sobre um território equivalente ao da Bélgica (cabe precisar que ali coexistem zapatistas e não zapatistas).

Uma economia desmonetizada: o fim do salário

A construção da autonomia nos territórios rebeldes de Chiapas se apoia sobre a organização comunitária dos indígenas maias, a qual teve de ser defendida de tudo o que tendia a destruí-la, como as reformas neoliberais que visavam a liquidar a propriedade social da terra, em 1992, a integração ao mercado e grandes projetos de infraestrutura. Mas para os zapatistas essa forma de organização também precisou ser transformada e reinventada numa perspectiva de emancipação radical, sobretudo no que diz respeito à condição das mulheres. Na visão deles, algumas bases importantes da autonomia são: a prática da assembleia comunitária como lugar de resolução dos problemas, o recurso generalizado à ajuda mútua e ao trabalho coletivo, assim como a posse coletiva da terra.

Em suas terras, os zapatistas desenvolvem uma agricultura campesina revitalizada – agroecologia, eliminação dos pesticidas comerciais, defesa das sementes nativas –, cujo objetivo é a autossubsistência familiar, mas também a autossubsistência coletiva, isto é, a capacidade de sustentar materialmente a construção da autonomia. Não se trata apenas de defender a agricultura campesina, mas de expandi-la pelos milhares de hectares de terras cultiváveis ocupadas depois do levante de 1994. Isso permitiu criar novas cidades, além de desenvolver formas inéditas de trabalho coletivo que trariam recursos para os projetos constitutivos da autonomia. Para os zapatistas, a recuperação massiva das terras – seu principal meio de sustento – é a base material que torna possível a construção da autonomia. À dimensão dominante de autossubsistência acresce-se a cultura de pequenos lotes familiares de café, comercializado sobretudo pelas cooperativas zapatistas e pelas redes internacionais de difusão solidária, cuja receita permite às famílias comprar bens que não são produzidos pelas comunidades.

O conjunto das realizações da autonomia é levado a cabo de maneira majoritariamente desmonetizada, sem recorrer a salários. É o caso daqueles que assumem cargos políticos ou de justiça, mas também dos promotores de educação (professores) ou promotores de saúde (agentes de saúde), que realizam tarefas sem receber remuneração em dinheiro, mas contam com o compromisso da comunidade de cobrir suas necessidades materiais e de trabalhar em seu lugar em suas parcelas de terra, caso as tenham. As escolas funcionam sem pessoal administrativo ou de manutenção, sendo essas tarefas assumidas pelos professores e estudantes, numa lógica de desespecialização. No geral, as tarefas coletivas que constituem o modo de vida autônomo são asseguradas graças a diferentes modalidades de troca, e sem recorrer a formas características da sociedade capitalista, a começar pelo salário.

“Zapatistas” (1932), óleo sobre tela do pintor mexicano Alfredo Ramos Martínez

Confiar nos que “não sabem”: o fim da especialização

A organização política nos territórios rebeldes de Chiapas se dá em três níveis: comunidade (cidades), comuna (agrupa dezenas de cidades) e zona (permite a coordenação de várias comunas). Para cada uma há assembleias e autoridades eleitas por mandatos de dois ou três anos: agente municipal para a comunidade, conselho municipal autônomo para a comuna e conselho de bom governo para cada zona. O papel das assembleias é muito importante, embora nem tudo se decida horizontalmente. Quanto às autoridades eleitas, diz-se que elas “governam obedecendo” (mandar obedecendo), de modo que “o povo dirige e o governo obedece”, como indicam os cartazes na entrada dos territórios zapatistas.

Os mandatos são concebidos como cargos, e são exercidos como um serviço à comunidade, sem remuneração nem qualquer vantagem material, inspirados nos sete princípios do mandar obedecendo (entre os quais “servir e não usar”, “propor e não impor”, “convencer e não vencer”). Os cargos são exercidos sempre de maneira colegiada, sem grande especialização das instâncias e sob controle permanente, seja por parte de uma comissão encarregada de verificar as contas dos diferentes conselhos, seja pelo conjunto das comunidades, já que os mandatos, não renováveis, são revogáveis a qualquer momento.

As mulheres e os homens que exercem um mandato continuam sendo membros ordinários das comunidades. Não se candidatam em razão de competências particulares ou dons pessoais fora do comum. A autonomia zapatista opera uma desespecialização das funções políticas: “devemos todos ser governo”, dizem. A autoridade é exercida de uma posição de não saber: “ninguém é especialista em política e todos devemos aprender”. Assumir que não sabe é justamente o mais importante: a pessoa que tem uma função de autoridade pode ser “uma boa autoridade” se não sabe e se esforça em escutar, saber reconhecer seus erros e permitir que a comunidade a guie na elaboração das decisões. Confiar as tarefas de governo às pessoas que não têm nenhuma capacidade em particular constitui a base concreta a partir da qual pode se expandir o mandar obedecendo.

A maneira como as decisões são elaboradas é crucial. Assim, o conselho de bom governo submete as principais decisões à assembleia da zona. Caso se trate de projetos importantes ou quando não se desenha nenhum acordo claro, cabe aos representantes de todas as comunidades da zona fazer consultas em suas respectivas cidades a fim de relatar à assembleia seguinte um acordo, uma recusa ou emendas. Pode acontecer de as emendas serem discutidas e a assembleia elaborar uma proposta de retificação, que novamente é submetida às comunidades. Por vezes é preciso muito vai e vem entre o conselho, a assembleia de zona e as cidades antes que uma proposta seja adotada. O procedimento pode parecer pesado, mas não deixa de ser necessário, já que todos sabem que um projeto que não obteve ampla aprovação nas cidades está fadado ao fracasso. Os conselhos de bom governo se esforçam para conseguir a coexistência entre zapatistas e não zapatistas, mas enfrentam situações conflitantes provocadas com frequência pelas autoridades oficiais mexicanas, num contexto de intervenções contrainsurrecionais permanentes.

Placa indicando governo zapatista em caracol na região de Los Altos, em Chiapas. O lema “Para todos tudo, nada para nós” é um chamado à ajuda mútua. (Foto: Visual Search)

A justiça de mediação: o fim da prisão

As autoridades autônomas têm seu próprio registro de estado civil e exercem a justiça. Trata-se de uma justiça de mediação, que busca o acordo entre as partes e, na medida do possível, uma reconciliação na base de trabalhos de interesse geral e de formas de reparação em benefício das vítimas ou de suas famílias – exclui-se o recurso punitivo à prisão. A experiência demonstra que a resolução de conflitos e o tratamento das infrações às regras coletivas podem ser assumidos por pessoas sem formação específica – e de maneira suficientemente satisfatória para que a justiça autônoma seja amplamente solicitada, inclusive por não zapatistas que apreciam a ausência de corrupção, a gratuidade e o conhecimento da realidade indígena, em contraste flagrante com a justiça constitucional mexicana.

Os conselhos de bom governo também cuidam do funcionamento de diferentes âmbitos constitutivos da autonomia, tais como saúde, educação e produção. Têm o dever de propor e elaborar, em interação com as assembleias, novos projetos que possam melhorar a vida coletiva, encorajar a participação igual das mulheres e remover os obstáculos que a dificultem, preservar o meio ambiente e ampliar as capacidades produtivas próprias. Assim, os zapatistas criaram, em condições materiais muito precárias e longe das estruturas estatais, seu próprio sistema de saúde e seu próprio sistema educacional. Combinando medicina ocidental e saberes tradicionais, o primeiro inclui clínicas de zona, microclínicas comunais e a presença de agentes de saúde nas comunidades. Quanto à educação, ela é objeto de uma mobilização coletiva considerável. Assim, os zapatistas construíram e mantêm centenas de escolas primárias e secundárias, sustentam orientações pedagógicas e formam centenas de jovens professores. Estima-se que, nas cinco zonas zapatistas, 500 escolas primárias funcionavam em 2008, nas quais 1300 professores trabalhavam com cerca de 16 mil estudantes. Os cadernos da Pequena Escola indicam que, só na zona de Los Altos, em 2013 havia 158 escolas e 496 professores para 4900 estudantes. Nessas escolas, o aprender faz sentido, pois se enraíza na experiência concreta das comunidades, além de permitir o compartilhamento da luta pela transformação social.

Um mundo onde caibam vários mundos

A autonomia zapatista oferece um exemplo de organização política não estatal. Mas o autogoverno popular só faz sentido se permitir formas de vida autodeterminadas: uma maneira de bem viver, escolhida e assumida coletivamente, que recusa a ideologia do desenvolvimento e faz do qualitativo da vida o coração sensível da organização coletiva.

Porém, a autonomia tal como a concebem os zapatistas não diz respeito apenas a Chiapas, nem só aos povos indígenas: é uma opção política que pode se disseminar por toda parte de múltiplas maneiras, sempre a partir da singularidade dos territórios e das tradições. Assim, se a autonomia zapatista se constrói localmente, nas montanhas e nos vales de Chiapas, ela não supõe nenhum fechamento localista nem qualquer reivindicação identitária exclusiva. Ao contrário, os zapatistas sempre buscaram articular diferentes escalas espaciais, desde a ancoragem nos territórios de vida até os desafios planetários, passando por múltiplas iniciativas nacionais, como as “Declarações da selva lacandona”, que contêm propostas para o conjunto do México. Do mesmo modo, o “Encontro intercontinental pela humanidade e contra o neoliberalismo”, organizado em julho-agosto de 1996, é considerado com frequência um ensaio geral e uma fonte de inspiração para os movimentos altermundistas. Desde então, o EZLN não parou de organizar encontros internacionais, como o Festival Mundial das Resistências e das Rebeliões, entre dezembro de 2014 e janeiro de 2015, ou o Encontro Internacional das Mulheres que Lutam, em março de 2018, ao passo que, desde o último 10 de abril, acontece a Viagem pela Vida, empreendida por zapatistas em direção aos cinco continentes, a começar pela Europa – ainda não há previsão de sua chegada ao Brasil. Para os zapatistas, uma tal escala internacional é indispensável para enfrentar a Hidra capitalista que mergulha o planeta Terra numa tormenta devastadora. É só levando em conta a multiplicidade das experiências de vida singulares e afastando-se de todo universalismo homogeneizante que será possível construir “um mundo onde caibam vários mundos”.

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Jérôme Baschet é historiador francês e autor, entre outros livros, de A experiência zapatista: rebeldia, resistência, autonomia.


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2 comentários para "O legado do zapatismo, 28 anos após o levante"

  1. Ghassan El-Kadri disse:

    Seguramente, a experiência social zapatista é a mais IMPORTANTE do século

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