Um roteiro para estudar a alienação em Marx

Seria este conceito a principal contribuição do filósofo? Como ele se relaciona com mais-valor e fetiche da mercadoria? Quais as contribuições de Lukács, Adorno, Fromm e outros? Resenha de um livro crucial para pensar o pós-capitalismo

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Por Juan Dal Maso, em Left Voice | Tradução: Maurício Ayer

O livro Karl Marx’s Writings on Alienation, editado e introduzido por Marcello Musto, publicado este ano pela editora britânica Palgrave Macmillan, reúne uma seleção de textos de Marx sobre a temática da alienação.

O tema parece particularmente pertinente em um contexto em que a precarização das condições de vida e a generalização do teletrabalho durante a pandemia voltaram a pôr em discussão os efeitos do processo de produção (em sentido amplo, não só industrial) tem sobre a vida da classe trabalhadora em seus múltiplos aspectos, começando pelo impacto sobre o tempo livre. O fenômeno da “great resignation” ou “Big Quit” — ou seja, a renúncia em massa aos trabalhos mal pagos e que não asseguram condições básicas de segurança e higiene, nos Estados Unidos — também é parte deste panorama, a que se soma a onda de greves conhecida como “Striketober”, e outros processos de luta da classe trabalhadora em todo o mundo.

O livro está organizado em duas partes. A primeira consiste no estudo introdutório de Marcello Musto, intitulado “Alienation Redux: Marxian perspectives”. Este texto apresenta as características principais do tratamento da questão da alienação em Marx, com as respectivas mudanças à medida que avança em sua trajetória teórica, assim como discute as diversas leituras da questão em outras tradições e em diversas vertentes do marxismo no século XX.

A segunda parte do livro é composta de um conjunto de escritos de Marx, organizados em três seções. A seção “Early Political and Philosophical Writings” (“Primeiros Escritos Políticos e Filosóficos”) contém textos de 1844 a 1856, que incluem passagens dos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, A Sagrada Família e A ideologia alemã, entre outros. Em seguida, há uma seção com textos dos Grundrisse e seu manuscrito sobre a economia política de 1861-1863, assim como Teorias da mais-valia. A última seção compõe-se de textos preparatórios d’O capital e passagens do próprio Capital, incluindo fragmentos dos manuscritos de 1863-1865 e do capítulo VI, inédito.

Através dessa seleção de textos, pode-se ter uma ideia clara do tratamento da problemática da alienação e seu lugar no pensamento de Marx. Neste artigo, repassaremos os principais argumentos apresentados por Musto na Introdução.

No princípio, Hegel

O primeiro tratamento sistemático da questão da alienação aparece em Hegel, especialmente em sua Fenomenologia do espírito. No caso de Hegel, a questão estava relacionada com uma teoria idealista do espírito que se objetiva na realidade, dando lugar a uma separação entre sujeito e objeto que logo seria superada por meio da conquista da identidade entre ambos. Mas também tinha certas margens materialistas, destacando a importância do trabalho como forma de objetivação da atividade humana. No entanto, ao não ter uma concepção suficientemente clara da especificidade do trabalho sob o capitalismo, Hegel identificou alienação e objetivação (ou seja, a atividade que produz ou modifica objetos materiais distintos do sujeito e das ideias).

Ludwig Feuerbach retomou a categoria para fazer referência ao fenômeno religioso e explicar suas bases materialistas. Marx utilizou pouco o termo nos trabalhos publicados durante sua vida e em geral o conceito foi ignorado pelo marxismo até a aparição de História e consciência de classe, de György Lukács.

Redescobertas e distorções

Em sua célebre obra de 1923, Lukács retomou o argumento da alienação, utilizando o termo “reificação”, com o qual explicava o fato de que a atividade produtiva se apresentava ao trabalhador como algo objetivo e independente de sua vontade. Essa visão se inclinava, por influência de Hegel, a assimilar a alienação com a objetivação e não é fortuito que a ideia de proletariado como “sujeito-objeto idêntico da história” tenha sido central para Lukács, dada a tendência a conceder ao tema um recorte filosófico mais amplo do que a que se podia depreender das obras de Marx publicadas até aquele momento. Mais apegado ao marxismo clássico e distante da teoria do sujeito-objeto idêntico, Isaak Ilich Rubin pôs no centro de sua explicação da teoria marxista do valor a questão do fetichismo da mercadoria, não como um problema da consciência mas sim como um processo social necessário da economia capitalista, relacionado com o caráter privado da produção para o mercado. Mas sua obra A teoria marxista do valor manteve-se praticamente desconhecida fora da URSS até os anos 1970, quando foi traduzida para o inglês.

A publicação em 1932 dos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 de Marx foi o evento que deu impulso aos debates sobre o conceito de alienação, tanto para quem investigava o pensamento de Marx como entre diversas tendências da filosofia e das ciências sociais, assim como em certos setores militantes, junto com as leituras em chave humanista do pensamento de Marx.

Nos Manuscritos, Marx definia a alienação em termos de um processo pelo qual o produto do trabalho se tornava um objeto externo para o trabalhador, mas também com um poder que se voltava contra ele como algo estranho e hostil, e assinalava quatro aspectos da alienação do trabalhador na sociedade burguesa: 1) em relação ao produto de seu trabalho; 2) em relação à sua atividade laboral, que percebe como algo direcionado contra ele; 3) em relação a seu ser genérico (de seu próprio corpo e faculdades físicas e espirituais); 4) em relação aos demais seres humanos.

Enquanto para Hegel a alienação era algo inerente à objetivação, Marx a concebia como uma característica específica do trabalho sob o capitalismo. Por essa razão, também não seria consistente reler os Manuscritos na chave de uma crítica da alienação humana em geral, independentemente da questão de classe. Aclaremos de passagem que em Hegel havia uma concepção de autoprodução do ser humano pelo trabalho, que se faz patente em sua célebre dialéctica do senhor e do escravo, questão que estava relacionada com suas leituras da economia política britânica e que Marx reivindicava em sus Manuscritos. Marx, porém, assinalava que esses acertos do pensamento de Hegel sobre a questão do trabalho permaneciam subordinados a uma concepção na qual a análise da alienação se centrava na alienação do pensamento abstrato, que se resolvia em uma superação da objetividade, razão pela qual considerava mais adequada a solução de Feuerbach na direção do materialismo, embora este tivesse uma leitura pouco sofisticada de Hegel.

Musto sintetiza bem os alcances e limitações deste texto de Marx:

Sublinhar a importância do conceito de alienação nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 para uma melhor compreensão do desenvolvimento de Marx não pode significar colocar um véu de silêncio sobre os enormes limites deste texto juvenil. Seu autor apenas havia começado a assimilar os conceitos básicos da economia política, e sua concepção de comunismo não era mais que uma síntese confusa dos estudos filosóficos que havia realizado até então. Por mais cativantes que sejam, sobretudo pela forma em que combinam ideias filosóficas de Hegel e de Feuerbach com uma crítica da teoria econômica clássica e uma denúncia da alienação da classe trabalhadora, os Manuscritos econômico-filosóficosde 1844 são apenas uma primeira aproximação, como se depreende de sua vaguidade e ecletismo. Lançam uma luz importante sobre o curso que tomou Marx, mas uma enorme distância os separa ainda dos temas e o argumento não só da edição completa de 1867 do Primeiro Livro de O Capital, como também de seus manuscritos preparatórios, um deles publicado, que redigiu desde fins da década de 1850. À diferença de análises que ou distinguem com ênfase um rotulado “jovem Marx” ou tentam forçar a existência de uma ruptura teórica em sua obra, as leituras mais incisivas do conceito de alienação nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 souberam tratá-los como uma etapa interessante, mas apenas inicial, na trajetória crítica de Marx. Se não tivesse continuado suas investigações, e ao invés disso tivesse ficado com os conceitos dos manuscritos de Paris, provavelmente teria sido reduzido a ocupar um lugar ao lado de Bruno Bauer (1809-1882) e Feuerbach nas seções de manuais de filosofia dedicadas à esquerda hegeliana [1].

Posteriormente, Musto reconstrói e discute outras concepções da alienação, características do século XX, entre as quais destaca a de Heidegger, com sua ideia de “estado de decadência” ligada à perda da autenticidade do ser na experiência do mundo, muito distanciada da questão tal como fora tratada por Marx. Em Marcuse, Musto assinala uma identificação de alienação e objetivação, assim como um deslocamento da questão da liberação do trabalho para a da libido; enquanto que em Adorno e Horkheimer a alienação aparece como um estranhamento relacionado com o controle social e a manipulação da cultura de massas. Outra leitura como a de Erich Fromm, influenciada pela psicanálise, retomou a questão da alienação como algo característico da experiência subjetiva individual, enquanto as releituras existencialistas e neo-hegelianas da questão, de Sartre a Jean Hippolyte, a apresentarão como algo característico da experiência da autoconsciência humana ao longo de toda a história.

As leituras existencialistas, e outras como a de Hannah Arendt, tomavam somente a questão da “autoalienação” ou alienação do indivíduo em relação aos demais seres humanos, sem levar em consideração os demais aspectos assinalados por Marx em sua crítica inicial da economia capitalista.

Entre as posições marxistas dos anos pós-Segunda Guerra que discutiram sobre os Manuscritos, Musto destaca três: 1) as que o consideravam um texto de transição sem maior importância; 2) as que separam o “Jovem Marx” do “Marx Maduro”, tomando partido por um ou outro, em leituras que contrapõem os Manuscritos a O capital; 3) as que veem uma continuidade em toda a trajetória teórica de Marx, outorgando-lhe uma espécie de unidade monográfica através da questão da alienação.

Musto assinala a unilateralidade dessas três posições, afirmando a importância de assentar terreno firme no que se refere à interpretação da obra de Marx, a partir da constatação de como se modifica a questão da alienação em sua relação com a compreensão da economia capitalista e a subsequente elaboração da crítica da economia política, diferenciando-a ainda de outras posições que surgiram nos anos 1960, como as de Guy Debord, Jean Baudrillard, ou a partir do lado conservador da sociologia norte-americana.

Entre a desalienação e a autonomia

A questão da alienação esteve presente em importantes debates do marxismo durante o século XX. Neste caso, interessa comentar dois, nos quais Musto se detém especialmente, sem que se deixe de considerar que estão contidos no percurso que traça. Um caso importante de apropriação da temática da alienação foi o dos comunistas dissidentes dos países do Leste. Buscaram apoiar-se nas leituras dos Manuscritos econômico-filosóficos, e mais em geral na crítica de Marx à alienação e ao fetichismo da mercadoria, para fazer uma crítica do estalinismo em diversos níveis, especialmente contra o sistema de governo baseado na burocracia e na vigilância policial, o produtivismo e os métodos “despóticos” nas fábricas e a promoção de uma concepção acrítica da realidade. Casos como os de Karel Kosik com sua Dialética do concreto, Mihailo Markovic com sua Dialética da práxis ou Gajo Petrovic com seu Marxismo contra stalinismo são representativos desse tipo de leitura, com suas diferenças e pontos de contato. Com a queda do estalinismo, poderia parecer que sejam reflexões anacrônicas ou demasiado específicas, mas acredito que essa visão seria um erro. Qualquer discussão sobre como tem que ser o socialismo implica um balanço e uma crítica do estalinismo e aí, além do legado teórico, programático e político de Trotsky e da Oposição de Esquerda, também podem fazer seu aporte aqueles que tiveram que enfrentar o estalinismo a partir de uma “volta a Marx” que lhes aparecia naquele momento como única alternativa próxima, diante da falta de continuidade das tradições oposicionistas em razão da repressão.

A outra grande vertente relacionada com a recusa da alienação, embora sem utilizar o conceito da mesma forma que os marxismos humanistas, é a do operaísmo, primeiro, e posteriormente a do autonomismo, que segue tendo peso nos debates atuais. Próxima em suas origens às leituras de Galvano Della Volpe, essa tradição foi sempre reativa às leituras hegelizantes do marxismo. Mas também sustentava uma concepção distinta da proposta no marxismo clássico sobre a relação entre a luta de classes e o avanço tecnológico. Para o operaísmo, como sintetizava Mario Tronti em Operários e Capital, o desenvolvimento capitalista era consequência da luta da classe operária. Essa visão relativizava de maneira sutil o caráter “estranho e hostil” do processo de produção para o trabalhador e enfatizava o desenvolvimento da conflitividade fabril contra o comando capitalista do trabalho. Posteriormente, Antonio Negri, influenciado pelo pós-estruturalismo e as teorias do “capitalismo cognitivo”, fez uma releitura desses temas, amplificando a noção de general intellect proposta por Marx em seu fragmento sobre as máquinas (do qual incluem-se passagens nessa compilação) para uma potência que se instala como trabalho afetivo, comunicativo e cognitivo. Contraditoriamente, essa posição termina em uma reivindicação da progressividade do desenvolvimento capitalista menos crítica que a de Marx, já que este assinalava a contradição entre os avanços da ciência e a técnica e o modo de produção capitalista, como expressão da contradição de classe caracterizada pela extração de mais-valor e a impossibilidade de liberar a força de trabalho sem mudar o sistema por meios revolucionários. Voltemos a Marx, para ver como pensou este problema.

Alienação e exploração capitalista

Em O capital e seus manuscritos preparatórios, assim como no capítulo VI inédito, Marx desenvolve a noção de alienação muito mais ligada a uma teoria mais clara da exploração capitalista e a extração de mais-valia.

Assinala Musto:

Até finais da década de 1850, não houve mais referências à teoria da alienação nas obras de Marx. Depois da derrota das revoluções de 1848, ele viu-se forçado a exilar-se em Londres, onde, uma vez instalado, concentrou todas as suas energias no estudo da economia política e, aparte alguns muito breves trabalhos de temas históricos, não publicou outro livro. Quando começou a escrever sobre economia outra vez, de todo modo, em seus Elementos fundamentais para a crítica da Economia Política (1857-1858), mais conhecidos como Grundrisse, mais de uma vez utilizou o termo “alienação”. Este texto retomou em vários aspectos as análises dos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, embora cerca de uma década de estudo na Biblioteca do Museu Britânico lhe tenha permitido torná-los consideravelmente mais profundos [2].

Nos Grundrisse, Marx relaciona diretamente a questão da alienação com a do intercâmbio de mercadorias, assim como no capítulo VI inédito de O capital faz referência ao processo de personificação das coisas e coisificação das pessoas. Mas avança mais ainda propondo que o capital subordina a seu próprio interesse não apenas a atividade imediata do trabalhador como também o processo de cooperação na produção, os avanços científicos e tecnológicos aplicados à produção e à melhora e desenvolvimento do maquinário. Essas questões entram também em jogo quando Marx define em O Capital o fenômeno do fetichismo da mercadoria.

Marx explica o fetichismo da mercadoria como um processo necessário da produção capitalista:

Esse caráter fetichista do mundo das mercadorias se origina, como a análise precedente demonstrou, na peculiar índole social do trabalho que produz mercadorias. Se os objetos para o uso se convertem em mercadorias, isso se deve unicamente a que são produtos de trabalhos privados exercidos independentemente uns dos outros. O complexo desses trabalhos privados é o que constitui o trabalho social global. Como os produtores não entram em contato social até que intercambiam os produtos de seu trabalho, os atributos especificamente sociais desses trabalhos privados não se manifestam exceto no marco desse intercâmbio. Em outras palavras: de fato, os trabalhos privados não alcançam realidade como partes do trabalho social em seu conjunto, exceto por meio das relações que o intercâmbio estabelece entre os produtos do trabalho e, através dos mesmos, entre os produtores. A estes, portanto, as relações sociais entre seus trabalhos privados os colocam manifestamente como o que são, vale dizer, não como relações diretamente sociais travadas entre as pessoas mesmas, em seus trabalhos, senão pelo contrário como relações próprias de coisas entre as pessoas e relações sociais entre as coisas. É apenas em seu intercâmbio em que os produtos do trabalho adquirem uma objetividade de valor, socialmente uniforme, separada de sua objetividade de uso, sensorialmente diversa. Tal divisão do produto laboral em coisa útil e coisa de valor só se efetiva, na prática, quando o intercâmbio já tenha alcançado a extensão e relevância suficientes para que se produzam coisas úteis destinadas ao intercâmbio, de modo que já em sua produção mesma se tenha em conta o caráter de valor das coisas. A partir desse momento, os trabalhos privados dos produtores adotam de maneira efetiva um duplo caráter social. Por um lado, enquanto trabalhos úteis determinados, têm que satisfazer uma necessidade social determinada e com isso provar sua eficácia como partes do trabalho global, do sistema natural caracterizado pela divisão social do trabalho. Por outro lado, apenas satisfazem as variadas necessidades de seus próprios produtores na medida em que todo trabalho privado particular, dotado de utilidade, é passível de intercâmbio por outra classe de trabalho privado útil, e portanto lhe é equivalente. A igualdade de trabalhos toto coelo [totalmente] diversos só pode consistir em uma abstração de sua desigualdade real, na redução ao caráter comum que possuem enquanto gasto de força humana de trabalho, trabalho abstratamente humano. O cérebro dos produtores privados reflete esse duplo caráter social de seus trabalhos privados somente nas formas que se manifestam no movimento prático, no intercâmbio de produtos: o caráter socialmente útil de seus trabalhos privados, pois, só o reflete sob a forma de que o produto do trabalho tem que ser útil, e precisamente sê-lo para outros; o caráter social da igualdade entre os diversos trabalhos, apenas sob a forma do caráter de valor que é comum a essas coisas materialmente diferentes, os produtos do trabalho.

A figura do fetichismo da mercadoria reúne os temas tratados por Marx em seus escritos anteriores sobre a alienação, só que os complexifica. Nos Manuscritos, o eixo estava posto no processo pelo qual o trabalho, os produtos do trabalho e as demais pessoas se tornavam para o trabalhador algo estranho e hostil, com o que Marx enfatizava a crítica da desumanização imposta pela propriedade privada. Em O capital, Marx mantém essa ideia de que o processo de trabalho e seus produtos aparecem para o trabalhador como algo alheio e independente de sua vontade, assim como sua relação com outras pessoas se estabelece através da relação mercantil, mas vinculada mais concretamente com a questão da exploração. A separação da classe trabalhadora em relação aos meio de produção, que a ele se mostram como algo alheio, é o prerrequisito da extração do mais-valor, dado que os trabalhadores “livres” devem vender sua força de trabalho aos capitalistas e nesse processo produzem o valor necessário para pagar seus próprios salários e o mais-valor que estão na base da ganância capitalista.

Voltemos ao argumento de Musto:

Dois elementos nesta definição marcam uma clara linha divisória entre a concepção de alienação de Marx e a sustentada pela maior parte dos autores sobre os quais estivemos discutindo. Primeiro, Marx concebe o fetichismo não como um problema individual mas como um fenômeno social, não como um assunto da mente mas como um poder real, uma forma particular de dominação, que se estabelece na economia capitalista como resultado da transformação dos objetos em sujeitos. Por essa razão, suas análises da alienação não se limitam ao mal-estar dos homens e das mulheres individuais, mas se estendem a todos os processos sociais e as atividades produtivas que lhes são subjacentes. Segundo, para Marx o fetichismo se manifesta em uma precisa realidade histórica da produção, a realidade do trabalho assalariado; não é parte da relação entre as pessoas e as coisas como tal, e sim mais propriamente a relação entre os seres humanos e uma forma particular de objetividade: a forma-mercadoria [3].

Tanto nos Grundrisse como em O capital, Marx já tem uma visão muito mais complexa do capitalismo e portanto uma compreensão materialista muito mais clara do fenômeno da alienação. Faz-se mais complexa sua visão da sociedade e da mudança revolucionária. Daí que, em O capital, Marx assinale que o capitalismo se apropria de conquista da ciência, da técnica e da organização do trabalho em seu próprio benefício, mas ao mesmo tempo cria condições para o comunismo, tais como a cooperação no processo de trabalho, o desenvolvimento e a aplicação de tecnologias, a apropriação das forças da natureza úteis para a produção, a criação de maquinaria que somente se pode empregar em comum por vários trabalhadores, a economização dos meios de produção e a tendência a criar um mercado mundial.

Por que é necessário o comunismo

Esse livro é uma boa contribuição para se introduzir o tema da alienação em Marx e, também, para se chegar a uma compreensão clara dos alcances e limites que tem em seu tratamento.

Musto debate contra aqueles que retiram importância da questão, assim como contra aqueles que dizem que é o tema principal da teoria de Marx, e assinala que a reflexão sobre o problema se torna muito mais clara e sólida na medida em que Marx tem uma melhor compreensão do funcionamento do capitalismo.

Mas ao mesmo tempo põe essa argumentação em função de explicar o pensamento político revolucionário de Marx. A alienação não é um problema do ser humano em geral, nem da consciência individual nem de toda forma de objetivação em abstrato. Por isso, o enfoque de Marx mostra o processo contraditório entre a criação de condições para a construção de uma sociedade comunista em base ao desenvolvimento das forças produtivas e a orientação da produção e reprodução em direção à extração de mais-valor e realização da ganância capitalista.

O capitalismo cria as condições necessárias para a luta pelo comunismo, mas não mais que isso. Deve ser subvertido através da revolução socialista, vencendo a resistência das classes exploradoras e opressoras, para estabelecer um regime social baseado na cooperação, na propriedade coletiva e na busca das mais amplas liberdades para as pessoas.

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[1] Karl Marx’s Writings on Alienation. Edited and introduced by Marcello Musto, Palgrave Macmillan, 2021, p. 21.

(Buenos Aires, 1977) Integrante do Partido dos Trabalhadores Socialistas desde 1997, é autor dos livros O marxismo de Gramsci (2016), traduzido para o português e o italiano, Hegemonía y lucha de clases (2018), traduzido para o inglês, e Althusser y Sacristán (2020), coescrito com Ariel Petruccelli.

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5 comentários para "Um roteiro para estudar a alienação em Marx"

  1. Lincoln Pedro Ferreira disse:

    Parabéns, texto Muito enriquecedor

  2. No artigo há três notas de rodapé, mas só se registra a [1]. Onde se encontram as notas [2] e [3]?

  3. Márcio Moura disse:

    Um bálsamo para o pensamento crítico reflexivo.

  4. Valéria Carneiro disse:

    Parabéns, Juan del Maso!! Gostei da densidade do texto.

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