Juventude, pós-capitalismo e as escolas do encontro

A América Latina vista a partir da riqueza de seus experimentos culturais e comunitários. Em Outras Palavras, capítulos de novo livro de um dos criadores dos Pontos de Cultura no Brasil. No primeiro, a rebeldia da Scholas, na Argentina

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MAIS:
Este texto integra o livro Por todos os caminhos — Pontos de Cultura na América Latina, de Célio Turino, lançado neste ano pela Editora Sesc. Vou pode adquiri-lo aqui. O autor, ex-secretaria da Cidadania Cultural do Ministério da Cultura (2004-2010), foi um dos idealizadores do Programa Cultura Viva. Outras Palavras republicará, toda segunda, uma série de textos do livro

Não olhar apenas, mas ver; não ouvir apenas, mas escutar;
não só cruzar com os outros, mas parar. Não dizer apenas
Que pena, pobres pessoas”, mas deixar-se levar pela compaixão.
Papa Francisco

No encontro do Scholas Cidadania, que aconteceu aqui em São Paulo, no ano passado, nós entramos em contato com pessoas de diversas classes sociais, múltiplas opiniões e diferentes dificuldades físicas. Foi muito enriquecedor entrar em contato e compartilhar experiências com essas pessoas, porque nós acabamos nos reconhecendo nelas. E, por isso, nós percebemos que nós, jovens, compartilhamos as mesmas esperanças, angústias e desejos adolescentes.

Com essas palavras a estudante Giulia Gerard, de 17 anos, se refere à imersão realizada por trezentos estudantes do ensino médio na cidade de São Paulo em 2016, entre escolas públicas e privadas, confessionais e laicas, sem distinção de raça, credo, classe social ou deficiências físicas e mentais. Durante cinco dias esses estudantes se encontraram para discutir problemas comuns, em temas escolhidos por eles mesmos (diversidade e reforma do ensino). O resultado foi apresentado às autoridades governamentais da cidade.

Meses após, chegara o momento de apresentar o resultado diretamente ao papa Francisco, por teleconferência, junto com jovens de outros nove países. Jornadas como essa têm ocorrido em diversas partes do mundo. Os jovens pelos jovens, identificando os problemas que mais os afligem, testando hipóteses, buscando soluções e se exercitando na forma de apresentá-las, seja por relatórios escritos, seja por expressões artísticas. Sem alarde, a realização dessas jornadas da cidadania tem sido organizada pelo programa Scholas Occurrentes (em latim, Escolas do Encontro).

O programa Scholas, idealizado pelo papa Francisco, propõe um pacto educativo com toda a sociedade, buscando abraçar todos os agentes sociais que estejam dispostos a superar os desafios enfrentados na atual crise civilizatória. “Não vamos mudar o mundo se não mudarmos a educação. A educação está totalmente desarmonizada em todo o mundo, por isso precisamos de um pacto educativo. Pacto educativo que se dá entre a família, a escola, a comunidade e a cultura”1. No encontro por videoconferência, realizado em junho de 2017, o papa ressalta a necessidade dessa mudança no ambiente educativo:

Na educação selecionamos mal, elitizamos e vamos criando um grupo fechado. Aí capitaneia o egoísmo. Então a mão nos vai cerrando cada vez mais. Com isso somos incapazes de pensar com os outros, incapazes de sentir com os outros, incapazes de trabalhar com os outros, essa é a tentação do mundo de hoje. E vocês, vejo pelas experiências que me contaram, se animaram a superar essas incapacidades. O caminho seria unir as três linguagens, não esqueçamos. A linguagem da mente, a linguagem do coração e a linguagem das mãos. E vocês arriscam para que possam pensar o que sentem e o que fazem. Podem sentir o que pensam e o que fazem, e possam fazer o que sentem e o que pensam.

O papa propõe o encontro das três linguagens do ser: coração, mente e mãos. E que essas linguagens ajam em harmonia e coerência. Essa proposta pode ser expressa pelo conceito sentirpensaragir, praticado pela cultura viva comunitária; assim mesmo, em uma única palavra: sentirpensaragir. Algo muito semelhante às três harmonias do teko porã, o “modo bom de viver”, do povo guarani, ou, simplesmente, o bem viver (sumak kawsay em quéchua, suma qamaña em aimará…), presente na cultura de diversos povos originários. A harmonia do indivíduo com ele mesmo, a harmonia do indivíduo com a coletividade, a harmonia da coletividade humana com os demais seres. Igualmente está presente no conceito do ubuntu, em que a coletividade, a solidariedade e a harmonia entre os indivíduos se realizam no “eu sou porque nós somos”, em que a humanidade de uma pessoa está intimamente conectada com a humanidade do coletivo. Essa preocupação com a harmonização do ser e da civilização, está presente em diversas falas do papa Francisco, como no IV Congresso Mundial do programa Scholas Occurrentes, realizado na cidade do Vaticano em 2 de fevereiro de 2015, no qual estive como conferencista convidado. Nesse congresso, o papa ressaltou que: “Harmonia é criar entendimento de diferenças, aceitar as diferenças, valorizar as diferenças e deixar que se harmonizem; que não se fragmentem”. O primeiro sentido da cultura do encontro é exatamente a não separação do ser, a busca pela integralidade do ser, em que a singularidade coexiste na diversidade, sem que uma negue a outra.

A cultura do encontro só se realiza com integração e diversidade, pois é a partir da harmonização entre os diferentes que se consegue alcançar a integração, do latim integrare, tornar inteiro. Sem integração seguiremos como uma sociedade de indivíduos e coletividades partidas, fragmentadas, como um “ajuntamento” de grupos e indivíduos que não se encontram, fazendo com que coração, mente e mãos sigam por sentidos e caminhos opostos. A riqueza de uma sinfonia está na combinação de sons simultâneos, dissonantes em timbres e sonoridades, que, por sua vez, são harmonizados na combinação de sons sucessivos, que se estabelece no encontro com a melodia. Harmonia, como diz o papa, não é supressão das diferenças, e sim a convivência na diferença. Conforme aforismo do professor Boaventura Souza Santos, da Universidade de Coimbra: “Temos o direito de sermos iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito de sermos diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza”. Integração e harmonia, portanto, só são possíveis em ambientes de solidariedade e participação, que implicam responsabilidade recíproca e vínculos, solidificados apenas quando as pessoas se reconhecem tomando parte dos processos. Isso pressupõe relações de honestidade e sinceridade, em que as condutas sejam verdadeiras, francas, leais, cultivadas no contato direto entre as pessoas. A consciência social, política, cultural e ambiental, tendo por fim a cultura de paz e da convivência, é o propósito da cultura do encontro.

Uma firme determinação para as jornadas da cidadania é de que elas sejam organizadas pelos próprios jovens participantes, incluindo a decisão sobre os temas a serem debatidos, em estabelecimento de acordos; mesmo os monitores e facilitadores são jovens com idade não muito além da idade dos participantes da jornada (entre 14 e 18 anos), fortalecendo relações de empatia e identidade. É essa característica que torna a proposta das jornadas da cidadania um poderoso meio para o exercício da cultura comunitária, cidadã e do encontro, pois a cada jornada cabe aos jovens, entre si, se exercitarem em acordos de convivência, métodos para identificação e resolução de problemas, e sua proatividade, buscando dar eficácia às suas ideias. Se o mundo abraçar essa ideia, realizando milhares, ou milhões de encontros, simultaneamente, de forma descentralizada e autônoma, sempre a partir da filosofia do encontro, com a coragem de interagir com o diferente, será possível vislumbrar uma mudança qualitativa no processo civilizador. Esse é o objetivo do Scholas Occurrentes, não menos que isso.

Maria Paz Jurado é a jovem coordenadora geral do Scholas Cidadania, uma ação do programa Scholas Occurrentes. Ela chegou ao programa como voluntária no projeto Escolas de Vizinhos, que foi um dos alicerces para a criação do programa pontifício, pois lhe interessava a inquietude dos jovens, que era também dela. Junto a uma pequena equipe, Maria Paz, ou Maripi, como é conhecida, tem percorrido o mundo para acompanhar diversas dessas jornadas; de isoladas cidades no interior da Argentina a grandes metrópoles, como Buenos Aires, São Paulo, Barcelona, Roma ou Dubai. Nesse percurso ela foi percebendo

que cada lugar tem sua particularidade e identidade. Em todos os lugares os jovens demonstram a necessidade de serem escutados. Isso é o que há de comum. Mas, comparando os encontros na América Latina e Europa, principalmente, notei muita diferença. Em Medellín conheci uma menina de 16 anos que despertava às 5 da manhã para chegar à escola às 7 horas. Saindo da escola, ela trabalhava das 14 às 18 horas, levava mais duas horas para voltar para casa, e só então podia fazer as tarefas escolares. Ela vivia só e contava, com alegria, de que dispunha de bastante tempo, inclusive para jogar futebol aos domingos. Algo muito diferente das meninas que participavam de jornadas em capitais europeias. Todas chegavam muito produzidas, maquiadas. Quando perguntávamos: “Qual a sua paixão?”, elas não se animavam em falar e respondiam com outra pergunta: “Que paixão?”.

Com a cultura do encontro, ambas realidades podem se transformar a partir da integração e harmonização entre elas. De um lado, uma jovem, mantendo-se sozinha e com muitas dificuldades socioeconômicas, consegue construir uma vida cheia de sentido e felicidade; de outro, vidas com muitas possibilidades econômicas e restritas possibilidades em termos de projetos de vida e vocações, completamente dominadas pela cultura do consumo e da aparência. O salto a ser produzido pela cultura do encontro está em possibilitar que essas jovens, de diferentes realidades, possam interagir e se complementar em rede, mesmo que de forma não presencial.

Observar e refletir o mundo por lentes menos embaçadas, superando uma cultura que aparta as pessoas de suas paixões ao impor preconceitos e uniformizar padrões, seria o caminho. Na jornada realizada na periferia da cidade de Assunção, no Paraguai, o que mais chamou a atenção de Maripi foi a singela atitude de um pai, que, no dia da avaliação, ausentou-se do trabalho para agradecer pela mudança no comportamento do filho: “Era um homem de um bairro popular, bem humilde, estava com roupa de trabalho, não seria necessário que ele fosse à avaliação, mas ele fez questão, e foi lá só para agradecer”. Em seguida, ela relata a experiência em outra cidade:

Nas jornadas na Europa, os jovens chegam cada qual em seu mundo, com suas coisas, fone no ouvido, poucos amigos. Ao final de uma dessas jornadas, os pais se reuniram para reclamar que alunos de escolas populares, vários filhos de imigrantes, adentraram no recinto do colégio de seus filhos, que era de elite.

Enquanto na realidade da América Latina, sobretudo em bairros mais populares, o ambiente comunitário, com muita gente caminhando nas ruas e o hábito de comer junto, era o que mais chamava a atenção de Maripi, no ambiente de países com economia de consumo mais forte, essa vitalidade das ruas e do comunitário era menos percebida. E ela conclui:

Sempre incentivamos que os jovens escolham músicas, dancem, para que se conheçam, porque, em média, são vinte diferentes escolas por jornada. Em uma cidade em que ofereceram muita estrutura para a realização da jornada, nos chamou a atenção que até a dança era toda muito padronizada, com os jovens mirando a câmera de vídeo mecanicamente, não era espontâneo. Tudo muito sem cara. O oposto da jornada em São Paulo. Foi a experiência mais forte. Tinha muita paixão, gana. Os jovens eram politizados. No começo pensamos que era por ação dos monitores mais velhos, mas depois percebemos que ninguém estava impondo nada, eram os próprios jovens que estavam definindo aquelas manifestações. Na avaliação com os professores foi ainda mais intenso, nunca havia visto tamanho compromisso, tanto com os professores das escolas públicas, como das escolas privadas, de elite.

Sem estereotipar, até porque, tanto a América Latina como a Europa, e quaisquer outros continentes, carregam contradições e ambas as realidades, o que Maripi percebeu como contradição entre realidades distintas é reflexo de dois fatores: a) penetração dos valores, e modos de ser, da sociedade de consumo, a variar conforme renda e ambiente comunitário; b) cultura da exclusão, separação e desprezo ao diferente, seja do ponto de vista nacional, étnico ou social.

A artificialidade (e irracionalidade) das sociedades de consumo produz uma contradição irrefreável. Para a economia de consumo continuar existindo é necessário produzir cada vez mais bens e serviços. Ocorre que a satisfação das necessidades humanas, do ponto de vista físico e espiritual, não é infinita, dependendo muito mais da qualidade do que da quantidade. A alternativa seria satisfazer a todos de forma equilibrada. Porém, nas sociedades de classes, em que a acumulação é o meio de distinção e poder, o objetivo é o crescimento ilimitado da acumulação, que só pode ser alcançado quando alicerçado na expropriação de outrem. É essa lógica, quase que naturalizada nas relações sociais, que impede o equilíbrio, a harmonia e a equidade, ao menos no pensamento dominante. O resultado desse processo é que a produção de bens, serviços e experiências passa a ser, cada vez mais, deslocada da necessidade, baseando-se na criação de supérfluos, e isso tem reflexo nas relações de vida e produção de sentidos. A fugaz sensação de saciedade e prazer, obtida pela aquisição de bens desnecessários e vazios de sentido, é logo substituída por uma sensação de perda, de vazio e falta de paixão, isso porque efêmera e artificialmente emulada. Desse vazio e falta de paixão, brotam o imediatismo, o hedonismo, o individualismo e o egoísmo, que vão dominando a própria vida, tornando-se valores absolutos. Esses valores são adubados na inversa proporção entre desejo e necessidade, gerando individualismo irrestrito e a negação do diferente.

Ações do Scholas Ciudadania em San Antonio de los Cobres, Argentina

No encontro entre os jovens e o papa Francisco, realizado por teleconferência em junho de 2017, ele inicia ressaltando o fator da exclusão e o individualismo:

Nessa sociedade que está acostumada a excluir, a selecionar, a agredir, a ningunear, é difícil traduzir essa palavra, não importa, a ningunear [desprezar]. Scholas não, o objetivo é incluir, dar as mãos, abraçar, não agredir e reconhecer que nenhuma pessoa é não. Todos são sim!

O oposto à cultura do encontro seria a cultura da indiferença, do desprezo ao diferente, em que a pessoa não sente inclinação nem repulsa, mas que rejeita o “outro” pela ausência de sentimentos, cabendo dizer que, mais que o ódio, a indiferença é o oposto do amor. Em sociedades de consumo intenso, em que o descarte é regra, inclusive o descarte de pessoas, a negação do ser está no bloqueio à empatia e à solidariedade. Daí a necessidade do contraponto: “Nenhuma pessoa é não. Todos são sim!”.

Romper com a cultura da indiferença implica acelerar processos de aproximação, atraindo polos aparentemente antagônicos, colocando-os em observação mútua, em escuta sensível e diálogo. Mas, para além da cultura da indiferença, há a cultura da exclusão, que está na gênese das sociedades de classes, bem como no colonialismo, no patriarcalismo e na mercantilização da vida. A América Latina é um dos continentes mais excludentes do planeta, exatamente por reunir esse conjunto de características, em que o colonialismo é vetor e produto da exploração mercantil, impondo uma forte ideologia de segregação racial, cultural, patriarcal e social. Se a base para a cultura do encontro está no diálogo entre os diferentes, o firme repúdio às culturas da indiferença e da exclusão é fundamental. Toda pessoa tem sentido. Quem nega sentido a outrem está negando a própria realização do sentido de humanidade.

O método para a cultura do encontro envolve procedimentos de dignificação do desconhecido, do diferente, assim como o rechaço a tentativas de exclusão e separação. Este é o sentido: trazer o fundacional nas relações interpessoais e intersociais, saindo do superficial e buscando relações verdadeiras, mais profundas e cultivadas, de modo a superar a ditadura do prazer efêmero e da pobreza de sentidos. E só se encontra o fundacional na capacidade criativa do povo e suas expressões lúdicas, isso porque menos afeitas à uniformização imposta pela lógica da sociedade de consumo. Há que redescobrir o jogo e o lúdico como caminhos e expressões educativas, fazendo a educação deixar de ser mera informação para se transformar em criatividade. Osentirpensaragirestá na união entre arte, aprendizagem e trabalho, como síntese das habilidades humanas.

Alcançada essa unidade, seremos capazes de encontrar em cada um de nós, e em nossos povos constitutivos, a beleza. A beleza que nos funda com nossa arte, com nossa música, nossa pintura, nossa literatura, nossas expressões cênicas, nossas histórias, mitos e formas de ser e de sonhar. A fusão entre sentidos, conteúdo e forma; entre ética, estética, educação, ecologia e economia. Sem essa fusão não lograremos a criatividade no sistema educativo e, para além dele, no processo civilizacional. A percepção da beleza está na capacidade de encontrar a harmonia. Pela percepção da beleza é possível, aos indivíduos e às sociedades, a realização da identidade na diversidade, dando sentido à cultura do encontro, em sua busca pela sanidade fundacional. Encontrando a sanidade fundacional encontraremos virtude e verdade, que são resultado da capacidade de percepção da beleza, livrando-nos da escravidão do fútil, da ignorância e do rude.

Scholas, a história do encontro

Zayit, designação para oliveira, em hebraico. A perenidade, a beleza, a força e a prosperidade. O brotar da vida em qualquer solo, da terra pedrosa à terra fértil. Frutificando azeitonas há árvores de oliveira com mais de 2 mil anos, de onde se extrai o azeite, o óleo da vida. Avisando a Noé que as águas haviam minguado sobre a terra, uma pomba levava em seu bico a folha verde da oliveira.

Era 18 de julho de 1994. Um carro-bomba explode na frente da sede da Associação Mutual Israelita Argentina, Amia, em Buenos Aires; trezentos feridos e 85 pessoas mortas, no que foi o maior atentado terrorista da história da Argentina. Jorge Bergoglio, então bispo de Buenos Aires (ordenado arcebispo em 1997), solicita a um diretor de escola católica, José María del Corral, a realização de uma atividade com jovens, para tratar do atentado que havia causado grande trauma no país. Por cinco dias, sessenta jovens se reúnem em imersão, 15 católicos, 15 judeus, 15 muçulmanos e 15 evangélicos, fazendo surgir a primeira experiência de Scholas, que ainda não levava esse nome. Foi um encontro tão intenso que os jovens decidiram continuar juntos pelos meses seguintes, até formularem uma proposta de educação para a cidade de Buenos Aires, que ficou conhecida como a “Lei dos Jovens”, aprovada por unanimidade na câmara dos vereadores. O que propunham era uma educação que fizesse sentido às suas vidas, e que essa educação fosse praticada para além dos muros escolares e da rigidez curricular. As pessoas aprendem pela experiência, pelo que observam no cotidiano, em atitudes concretas, “quando um pai burla uma multa, ele está passando uma mensagem ao filho, o mesmo em relações de convivência entre jovens e destes com os demais setores da sociedade”, ressalta José María. O que surgiu daquela tragédia foi a prática que daria origem ao conceito da cultura do encontro.

Como resultado daquela jornada, os jovens chegaram a propor que a palavra “tolerância” fosse abolida do dicionário, isso porque não praticada e não verdadeira. Também porque “tolerar” significaria apenas “suportar o distinto”, e o que eles compreendiam como necessário era “amar ao próximo”, nem menos nem mais que isso. Aqueles jovens empoderados, a partir de uma experiência inter-religiosa e, igualmente, laica, haviam encontrado o seu sentido. Desde então, em diversos encontros com jovens, o papa Francisco frisa esse aspecto de vital relevância para o processo educativo: Todas as pessoas têm sentido. Isso é muito importante, é o primeiro que vocês estão logrando, descobrir que têm sentido, como tem sentido uma pequena pedra. Tudo tem um sentido, e há que descobrir”2.

Abrindo parêntesis. O que o papa diz é muito semelhante ao praticado na educação dos totonacas, no México: Encontrar o sentido da vida é encontrar o caminho, o dom, possibilitando que a pessoa viva em harmonia, em felicidade e plenitude. E, se alguém não está contente, mesmo que do outro lado do mundo, haverá problemas, por isso precisamos garantir a felicidade para todos” (Gerardo Espinosa, mestre totonaca, da Kantiyán, a Casa dos Avós). Também é semelhante à cosmologia andina, com o ajayo, dos aimarás, ao considerar que todos os seres, incluindo os demais animais, os vegetais, as pedras, as águas, as montanhas e minerais, são dotados de ajayo, espírito, sentido. Fechando parêntesis.

Desse primeiro grupo de jovens foram surgindo outros encontros, até que fosse constituído o projeto Escolas de Vizinhos, em que os processos de aprendizagem se dão por proximidade, por vizinhança, colocando jovens de realidades distintas em uma mesma jornada de imersão, convidando-os a debater os mesmos problemas, até encontrarem uma solução comum. Coube a José María del Corral a coordenação desse projeto, cujo objetivo fundamental seria “educar pela paz e para a paz”, e a metodologia foi se ajustando no próprio fazer, como ele relata:

O significado das escolas de vizinhos era justamente pensar que a mudança passa pela educação, mas não fazendo mais do mesmo. Não era fazer mais “escolas gueto”, escolas para dentro, e sim o contrário. Juntar escolas. Juntar escolas públicas e privadas, de distintas religiões, de distintos níveis sociais, e que os jovens começassem a se relacionar com vizinhos, por mais distintas que fossem as realidades aparentes. Desse encontro entre vizinhos iam identificando seus problemas reais – drogas, alcoolismo, insegurança, violência, bullying –, não o que se impõe pelos desenhos curriculares. A partir desses problemas reais, eram convidados a investigar, pesquisar, trabalhando, vendo a realidade nas ruas, fazendo entrevistas, falando com políticos. Com isso iam extraindo conclusões para apresentar propostas de mudança. A primeira experiência começou com setenta jovens, de quatro colégios paroquiais; em quatro anos, já eram 7 mil jovens empenhados nessas ações, e isso foi ampliando. E o papa percebeu que essa necessidade não estava somente em Buenos Aires.

O projeto foi crescendo até se transformar na proposta de uma rede mundial de escolas para o encontro, o Programa Pontifício Scholas Occurrentes.

Filho de médicos, José María del Corral vem de uma família católica de classe média de Buenos Aires. Rebelde na escola, ao tentar mudar a educação, foi mudado por ela, e no pior sentido. Conforme ele descreve, foi sendo amoldado por uma escola conformista, castradora, uniformizadora. É quando, na adolescência, se aproxima da realidade dos conventijos, os cortiços portenhos, e foi descobrindo a fé. Mas ainda não se encontrava. Tenta colégio militar, depois estudos de economia, igualmente inconclusos, para, em seguida, ingressar em um seminário para formação de padres, onde passa oito anos estudando filosofia e teologia, até que, um mês antes da ordenação, decide renunciar aos votos. Vai trabalhar no sistema financeiro e também como professor de teologia. É quando encontra sua vocação como educador, até tornar-se diretor de colégios católicos, e desde então essa tem sido a sua arte, o seu “dom”. Como diretor de colégios conhece Jorge Bergoglio e assume funções na coordenação de Educação na Arquidiocese. Nessa função, ao contrário de se voltar apenas para colégios católicos, procura o ecumenismo, sobretudo pelo impacto do atentado terrorista na Amia, estreitando relações com outras lideranças religiosas. Na virada do milênio, organizam uma atividade inter-religiosa, reunindo o arcebispo Bergoglio, um imã muçulmano, um rabino e um pastor evangélico, quando plantam uma muda de oliveira na Plaza de Mayo, em frente ao palácio da presidência da República, como símbolo da união entre religiões e povos. No futuro, o plantio da oliveira se transforma no símbolo vivo do programa Scholas Occurrentes.

Um ano após o plantio da oliveira, a Argentina viveria a pior crise financeira de sua história, levando milhões a caírem na faixa de pobreza e miséria. Cartoneros, piquetes, saqueos, desesperança. E que “Se vayan todos!. O horror econômico e o desencanto tomavam conta do país. Por isso foi necessário ir além.

Enrique Palmeyro, a quem o arcebispo Bergoglio carinhosamente chama por Quique, trabalhava com a construção de redes junto à economia popular, pequenos empreendimentos e empresas, dessas que não entram no cálculo do PIB, por estarem mais relacionadas à economia informal e solidária. Com o povo inventando seus trabalhos e formas de subsistência e o Estado falido, cabia regular, dar apoio, assistência técnica e meios para que esses empreendimentos fossem potencializados. É quando surge a ideia das escolas irmãs. Enquanto as escolas de vizinhos buscavam integrar realidades diferentes dentro de um mesmo território, as escolas irmãs procuravam essa aproximação a partir de territórios díspares, colocando uma escola da capital junto a outra mais distante, como nos Andes, para que trabalhassem em sinergia. “Uma irmandade, em via de mão dupla, reconhecendo que ambas as escolas tinham o que dar e o que receber, isso porque quando um jovem comparte a cultura, ele adquire a consciência de si mesmo e do outro”, diz Quique. Cabia aproximar essas escolas com cartoneros (catadores de papel e recicláveis), fábricas ocupadas, ambulantes, a defesa gremial, através de relações interpessoais e comunitárias. Em paralelo às escolas irmãs, surge a Confederação dos Trabalhadores da Economia Popular, permitindo uma mescla entre contato com a educação e novas formas de economia. Esse braço com o movimento social garantiu um novo componente para a construção do conceito da cultura do encontro, em que “sentir a diferença nos ajuda a compor a sinfonia do mundo”, conclui Quique, ele também um ex-seminarista.

Treze de março de 2013. Pela primeira vez na história, um latino-americano, e jesuíta, é ordenado papa. Bergoglio torna-se Francisco. “Nessa história o que menos existe é casualidade. A crise é mundial e vamos fazer algo. Naquele dia, percebi que algo no mundo havia mudado. E que meu mundo também mudaria”, constata José María del Corral, um diretor de colégio, que antes daquele momento nunca havia viajado para fora de seu país e que tinha pânico de avião. Com a esposa, e utilizando recursos próprios e em muitas parcelas, pagaram a passagem para Roma. Ele compreendera que era necessário estar ao lado do “papa do fim do mundo”. Sabendo que o amigo havia sido convidado para a ordenação, Enrique Palmeyro articula a ida de um representante dos cartoneros, Sergio Sánchez, pedindo que José María o acompanhasse. No dia da ordenação papal, em cerimônia assistida por todo o mundo, com a presença de autoridades de Estado, eclesiásticas e celebridades, entre os mais próximos ao papa, estavam sentados um cartonero e um professor vestindo o seu jaleco branco. Eram José María e Sergio Sánchez. Não foi necessário que eles dissessem uma palavra, pois a presença dos dois já era a mensagem que o papa Francisco pretendia transmitir ao mundo. Com aquele gesto, com a presença de um catador de recicláveis e um professor, Francisco dizia ao mundo que havia chegado o momento da mudança de valores, e que essa mudança só seria possível se acontecesse através do encontro entre uma nova economia, vinda do povo e da solidariedade, e uma nova educação, a educação para o encontro.

Quando decide implantar o Programa Pontificio Scholas Occurrentes, o papa convida Enrique Palmeyro e José María del Corral para assumirem a condução do programa. Um programa modesto no que diz respeito aos recursos materiais e financeiros. A sede, em Buenos Aires, funcionou nos primeiros anos em um apartamento cedido, depois, em 2017, eles conseguiram um pequeno escritório no território do Vaticano e, ao final de 2018, eles inauguraram sede própria em Buenos Aires, na Villa 31, uma favela a poucos quilômetros do palácio presidencial da Argentina, a Casa Rosada. A estrutura funcional igualmente é bastante enxuta, assim como os recursos para as atividades, bem como para a realização dos muitos encontros e congressos e para articulações e construção de políticas públicas, que sempre dependem de parcerias e apoios externos. Há também as dificuldades, muitas, incompreensões e mesmo infâmias que, com humildade e perseverança, eles enfrentaram e enfrentam; desde a superação do pavor em viajar de avião, até quando são portadores de “sinais públicos do papa”. Em 2016 coube a Enrique Palmeyro o envio de um rosário abençoado pelo papa à dirigente social indígena Milagro Sala, do movimento Túpac Amaru, perseguida e presa por seu ativismo social. Nas palavras de Quique:

O papa Francisco valoriza o compromisso dos dirigentes sociais que lutam para mudar a situação de desrespeitos e exclusão. Por ocasião do Congresso Mundial de Scholas, no Vaticano, falei ao papa sobre a situação de perseguição por qual passava Milagro Sala, e ele pediu que lhe entregasse um rosário abençoado por ele.

Naquele congresso de Scholas também houve uma oração e saudação ao Movimento Missionários de Francisco, da Confederação dos Trabalhadores da Economia Popular (CTEP), e aos demais movimentos sociais. Isso porque o grande propósito e sentido do Scholas é apontar “que algo no mundo havia mudado”.

Criado entre 2013 e 2014, o programa Scholas Occurrentes, tornado programa pontifício em 2015, tem passado por uma intensa e rápida transformação; articulando ideias e juntando apoios, de jogadores de futebol a artistas, empresas e movimentos, escolas e comunidades. São muitas as ações, scholas artes, cidadania, esportes, tecnologia, universidades, movendo-se, sobretudo, a partir de uma ideia, a cultura do encontro, que hoje reúne mais de 200 mil escolas pelo mundo, das mais diversas orientações. Nesse processo eu também me juntei a eles, como parceiro, contribuindo com ideias, inclusive com este livro.

Como no mundo não existe casualidade e tudo tem um sentido, eles seguem plantando suas oliveiras como símbolo de paz, perenidade, beleza, força e prosperidade. Uma das oliveiras foi plantada em Jerusalém, onde tudo começou, após uma Jornada da Cidadania, que reuniu jovens de diversos países, para, ao lado de jovens judeus e palestinos, identificarem problemas, testarem hipóteses e apresentarem propostas para a solução do conflito entre os povos irmãos que vivem naquela parte do mundo. Povos que também são nós.

E vão além, transmitindo mensagens para um mundo que precisa mudar, e a cada novo caminho levam consigo a folha verde da oliveira. Zayit.

Chascomúsica

Plantando oliveiras, o programa Scholas vai distribuindo sementes que chegam aos mais diversos lugares, como se estivessem seguindo no bico das pombas de Noé.

Villa 31, a villa de padre Mugica, em que está a paróquia de Cristo Obrero. Jovens, muitos jovens circulando pelas ruas. Uma pequena casa, para compor e cantar. Jovens de fora da Villa também se achegam, como voluntários, trazendo um estúdio móvel de gravação. Até que a casa se transforma em um pequeno centro cultural, modesto, como é a vida modesta de quem vive em uma villa. Querem “drogar-se com vida” enquanto gravam os versos de um rappero3:

Y pasa
la esperanza baja, y baja
porque no alcanza la plata
la realidad es cruda
cambia, mata y arrebata
con mi rima te doy vida4.

Na mesma casa também se reúnem paraguaios, bolivianos, imigrantes do interior, gente que quer bailar com suas vestimentas, a murga, o hip-hop. Tudo junto e misturado. Uma casa que antes foi comedor barrial, restaurante comunitário de bairro, nos tempos da crise financeira e da fome, que nos tempos atuais começa a voltar com o regresso das políticas neoliberais, junto com a tuberculose e a desnutrição infantil. “Y la esperanza baja, y baja [] pero con mi rima te doy vida”, canta o rappero. Há muitas coisas por fazer, e há muita gente boa fazendo coisas boas e belas por aí. Minha vontade é contar sobre cada uma que conheço. Após visita à Villa 31, na manhã seguinte, viagem a Chascomús, a capital nacional das orquestras infantis e juvenis. Uma cidade a 150 quilômetros de Buenos Aires, e oitocentas crianças e jovens tendo aulas de música e participando de orquestras.

O professor orienta crianças e jovens. Ele é venezuelano e desenvolveu o método participando do Sistema Nacional de las Orquestas Juveniles e Infantiles, conhecido como El Sistema,em seu país de origem; enquanto caminha, o professor segura o violino e fala:

A posição do violino não pode ser igual para todo mundo, cada um tem um corpo, um tamanho de braço, precisamos segurar o violino do jeito que for mais confortável. A minha técnica para tocar violino é só minha, porque somente eu tenho este corpo, assim tem que ser com cada um de vocês. Comecemos!

Em outra sala, aula de canto para trinta crianças e jovens. A professora pega o violão e começa a tocar. O coro a acompanha:

Samba Lelê tá doente

Tá com a cabeça quebrada

Samba Lelê precisava

É de umas boas palmadas

[…]

Samba, samba, samba ô Lelê

Samba, samba, samba ô Lalá.

Uma homenagem que fizeram a nós, visitantes brasileiros que adentrávamos no recinto. Por isso o samba em canção infantil. A maioria das crianças tinha menos de 10 anos de idade. Na sala ao lado: “La casita del hornero”. Canção para o pássaro nacional argentino, o joão-de-barro, e sua casa de adobe. Mais vinte criancinhas, bem pequenas, dedilhando pequenos violinos, tocando violino ao ritmo do canto del hornero.

Tudo começou com o sonho de uma estudante de música que queria ser musicóloga, e é. Depois de formada em Buenos Aires, ela preferiu voltar para sua cidade de origem, Chascomús, e fazer da formação musical para crianças e jovens o seu projeto de vida. Assim Valeria Atela descreve seu sonho:

Cada um tem o seu lugar de ponta [o seu sentido na orquestra], há que juntar as cordas, os sopros, a percussão, as vozes… e ir construindo a harmonia. Uma verdade que nos transcende, uma verdade que é. Algo que vibra em dissonância e empaticamente vai se conectando a outro som. Um instrumento vibra, e outro vibra, e isso se soma em uma grande unidade que nos transcende, em uma grande verdade de que somos parte. Se não produz a harmonia é um, mais um, mais um. Mas com a harmonia o todo é muito maior que a parte.

Valeria começou dando aula de música na garagem de casa. Com os dias, foram chegando cada vez mais crianças e jovens. Da garagem ela saiu para um salão comunitário e, para ministrar mais aulas, foi buscar ajuda com outros músicos. Do salão comunitário, que ficara pequeno, começaram a ocupar as ruas; e chamando mais crianças e jovens, e mais músicos chegando para dar aulas. Sem recursos, mas com muita vontade de ensinar e aprender, começam a passar de casa em casa, tocando os instrumentos, convidando as pessoas. Valeria já não estava só. Com professores e alunos, de porta em porta, foram ganhando apoio, até conseguirem um terreno. Com o terreno construíram a sede do conservatório, ainda inacabada, mas bem adequada. E os alunos já se contam às centenas. E novos alunos chegando. E pais começando a ajudar, como voluntários na administração, na arrecadação de recursos. E mais instrumentos. Com mais instrumentos e alunos a notícia se espalhou; primeiro pela província, depois pelo país. E mais apoio foi chegando. E mais aulas. E mais professores. E mais alunos. Passados vinte anos, em uma cidade com pouco mais de 30 mil habitantes, 7 mil já transitaram pela orquestra e pela escola de música. E ex-alunos, agora pais, seguem levando os filhos para aprender música na cidade de Chascomús.

A escola de música é um lugar de portas abertas, totalmente flexível. Basta a criança chegar para começar a ter aulas, sem preparação prévia, já se integrando em turmas grandes, com vinte, trinta alunos, e tendo contato com todos os instrumentos de uma orquestra. Desde crianças bem pequenas até jovens adultos. Há os que nunca tocaram, há os exímios, os dedicados, os que chegam e não voltam, os que voltam depois de meses, os que nunca mais saem da escola. O método é incluir, e começar o ensino de música pela música, para só depois falar sobre partitura, composição, interpretação. Introduzem as crianças em repertórios mais simples, até alcançarem os mais complexos. Há também um banco de instrumentos e o cuidado compartido entre eles, para os alunos que queiram se exercitar durante a semana. E vão inventando, sempre levando em conta valores como a pontualidade, a responsabilidade, os laços afetivos, o sentido comunitário. Igualmente procuram assegurar destaque para que todos se experimentem como solistas, não como ferramenta para escolher talentos, e sim como espaço para a promoção da personalidade.

Chegar na escola-orquestra, em um dia frio e chuvoso, quase que no meio do campo, com vacas pastando no entorno, rua molhada, barro na via, e encontrar centenas de crianças e jovens, compenetrados, tocando em salas diversas, até nos corredores, é algo indescritível. Criancinhas com 4, 5 anos de idade, segurando violinos para o tamanho delas, outras, com flautas, oboé, violoncelo, contrabaixo, percussão, tudo ao mesmo tempo, em uma sinfonia que se faz fazendo. E muitos professores, todos motivados, inventivos, criativos, muitos e muitas que antes foram alunos. Chegar em um lugar assim é entender o motivo pelo qual Chascomús foi considerada a capital nacional das orquestras infantis e juvenis da Argentina. E tudo em apenas vinte anos, começado pela força, paixão e afeto de uma mulher, a que se somaram muitas outras pessoas, todas e todos tornando a experiência da cidade um exemplo de engajamento comunitário pela arte. Não fosse nome antigo, de cidade colonial, pensaria que Chascomús foi um nome surgido com a ideia da orquestra. Chascomúsica poderia ser o nome da cidade.

A Orquestra-Escola de Música de Chascomús também se integrou à rede de Scholas, e Valeria Atela foi se encontrar com o papa. Eles não param. Articulam-se com El Sistema, o Sistema Nacional das Orquestras da Venezuela; buscam apoio na província e no município, que pagam os custos dos professores; articulam com outras cidades, levam a ideia para outras províncias; fazem festa de arrecadação, vendem comida; voluntários se apresentam para ajudar, desde a limpeza de banheiros até serviço em secretaria. Em meio a um turbilhão de crianças e de aulas e de sons, também começam a preparar as filarmônicas, com alunos mais apurados na música. No dia de minha visita, ensaio para a música “Il postino”, da trilha sonora do filme O carteiro e o poeta; depois, Mendelssohn.

Entre os professores, Andrés Gonzáles, venezuelano. Andrés ingressou desde jovem em El Sistema, que realizou a mais ampla experiência de ensino de música e orquestras juvenis do mundo, com 800 mil crianças e jovens participando simultaneamente da rede de orquestras e escolas de música, sendo que 2 milhões de pessoas já passaram por essa rede, em uma população de 30 milhões de habitantes. Ele começoua tomar aulas com 8 anos de idade, chegando a tocar na Orquestra Simón Bolívar, como concertino, ao lado de Dudamel, o conhecido maestro de orquestras internacionais, regente titular da Filarmônica de Los Angeles. Adulto, preferiu se dedicar à carreira de professor. Desde 2017, ele está em Chascomús e vaticina: “A cultura é a perspectiva, a saída não está em mais armas e violência, e sim nas artes. Que mundo de aventuras uma criança pode ganhar quando entra em uma orquestra!”.

A Orquestra-Escola de Chascomús conseguiu enamorar toda a cidade, contagiando-a com sua música; e o país, e o mundo. No início os pais não acreditavam na proposta, ainda não havia orquestra, eram apenas aulas de música em uma garagem. Mas com o tempo foram se envolvendo, cada vez mais, assim como seus filhos, que hoje realizam turnês pelo país e fora da Argentina. Vários alunos foram encaminhados para faculdades de música, na Argentina e no exterior; e sempre há alguém chegando e outro de malas prontas. Uma das alunas está prestes a se mudar para a Noruega: “Nós saímos porque queremos nos aperfeiçoar, conhecer outros lugares, também para poder voltar e trazer mais arte e conhecimento para cá”.

Para terminar a noite, concerto aberto em uma pequena igreja de bairro. A sala cheia. As cadeiras e estantes com partituras. Na sala ao lado, os jovens com os seus instrumentos, compenetrados. A plateia em silêncio. A orquestra entra e toma lugar. Os acordes de afinação. Começa a sinfonia.

Foi um dia intenso, que voou em música.

A ponte

La Puna. A altitude, os cactos gigantes, a aridez, as pedras, as montanhas tocando o céu azul. Para além das nuvens, a 3.700 metros de altitude, San Antonio de los Cobres, a cidade que nasceu próxima às minas de cobre, quase na fronteira entre Chile e Bolívia, reinando soberana em meio ao deserto. Terra alta, desolada e seca. Era necessário chegar lá.

Fátima, Jacqueline, Sandra, Joana, 16, 15, 17 e 13 anos de idade. Uma das meninas quer ser criminalista, a outra ainda não sabe, a terceira, advogada, e a quarta, bioquímica. Elas falam quase ao mesmo tempo, em uníssono: “No começo não queríamos falar, porque já estávamos acostumadas a não sermos escutadas. Começamos a dizer o que sentíamos, não só por palavras, mas por jogo. O jogo era ¿Qué te pasa?.E nos soltamos”.

Nessa cidade distante, com menos de 10 mil habitantes, houve uma Jornada da Cidadania, pelo programa Scholas Occurrentes. Temas escolhidos pelos jovens: alcoolismo e drogas entre os jovens.

O que um jovem poderia fazer na cidade?

As pedras, a paisagem cinza, o vento frio, a poeira, o pouco trabalho, a pouca escola, as distâncias. O vazio no topo do mundo.

– Mas quando chove, em dias, tudo fica verde. Essa montanha fica linda! – diz uma das meninas, lembrando que a chuva chega ao final do ano e dura dois meses, que é o tempo em que o cinza desaparece. Elas abrem um sorriso.

– Eu queria morar em Salta, aqui não tem futuro – diz outra.

– Mas este lugar é mágico, o rio amanhece congelado e ao longo do dia vai descongelando, com a água correndo, todo dia é assim, fica bonito –refuta outra.

– A que conclusão chegaram sobre alcoolismo e drogas? – pergunto.

– Criamos um cineclube, também um jornal – respondem.

“O que isso teria a ver com drogas e álcool? E o que mais?”, me pergunto em silêncio.

Sem que a pergunta tivesse sido feita, elas respondem em voz alta:

– Decidimos pintar a ponte!

A ponte por onde passa o trem de carga levando minério para o Pacífico.

Na cidade de San Antonio de los Cobres há duas pontes. Uma mais distante da área urbana, conhecida como a “ponte das nuvens”, com oitenta metros de altura, estrutura metálica e localizada a mais de 4 mil metros de altitude. Outra, mais próxima, que permite avistar a cidade, como um mirante, com quarenta metros de altura. A distração dos jovens é ir para as pontes, onde fazem festas e circulam muita bebida e drogas, sobretudo a partir das sextas feiras.

Tento descobrir algo que eu já sabia, mas preferia não perguntar, esperando que elas dissessem por elas mesmas. Havia um motivo forte para minha viagem, uma viagem difícil, feita com tanto sacrifício, até para respirar. Precisava de resposta para uma pergunta que eu não pretendia fazer àquelas meninas. Segui evitando fazer a pergunta, na espera de que elas revelassem.

– Temos muitas amigas que deixam a escola porque engravidam – diz uma delas.

Era possível deduzir que isso acontecesse, mas não era esse o motivo de minha viagem. Minha motivação era a ponte e o que acontecia em torno da ponte. As pontes, das nuvens, imperam sobre a cidade. Sobre elas, reina o mais sepulcral silêncio.

Evitando a pergunta direta, procuro ter uma ideia de como planejaram pintar a ponte.

Elas mostram a arte. Santa Terra, que é como chamam a Pachamama em La Puna. Uma Santa Terra grávida, com muita luz em volta dela, muitos seres, uma pulsão de vida, espigas de maíz (milho), batatas brotando da terra, aves coloridas.

Uma das meninas diz:

– Somos pedaço da Pachamama, somos pedacito de terra, volveremos a ser terra.

Peço que me levem à ponte.

– Vamos! –elas respondem.

A vista panorâmica da cidade, a vegetação seca e rasteira, as pedras, o cinza, o azul do céu tocando as montanhas. O trilho do trem. A ponte. O silêncio.

Descemos para olhar a ponte por baixo, em sua base.

– Aqui pintaremos nosso painel! –indicando o lugar do painel.

Ele será pintado entre as pilastras, na base da ponte, sobre as pedras, formando um grande e belo mural, colorido e cheio de vida. Subimos novamente ao topo da ponte, escalando quarenta metros. Voltamos aos automóveis e seguimos em visita à outra ponte. A ponte mais alta, sobre as nuvens. O caminho foi em estrada de terra, já estava entardecendo. Meia hora por estrada, a poeira levantada pelo movimento dos carros. A neve nos picos, também em volta. O gelo que podia ser alcançado com as mãos. A ponte.

Uma ponte construída há quase um século, toda em estrutura metálica. Magnífica, soberana, atravessando os Andes, a Ponte das Nuvens. Sob a ponte as quatro meninas brincam de jogar neve umas nas outras. Elas riem. O som do riso se mistura com o som do vento. Parece uma sinfonia. Estava escurecendo, decidimos voltar. Na cidade, já noite, nos despedimos com alegria e abraços. Fazia frio.

Na praça, aproveito para sugerir um filme neozelandês para o cineclube das jovens: A encantadora de baleias. As meninas de San Antonio de los Cobres são mestiças, descendentes dos povos atacamenho e qolla, e o filme é sobre um povo como o delas, os maori. É uma película premiada, cuja personagem principal, uma menina de 11 anos, consegue conversar com as baleias, reavivando a cultura de seu povo. Pergunto às meninas se elas já haviam entrado no mar. Todas respondem que não.

Naquele momento decidimos regressar para a sala em que se reúnem para as exibições do cineclube. Localizamos o filme pela internet e assistimos. O azul-turquesa do mar se encontrando com o céu acinzentado. O conflito entre um mundo globalizado e consumista e os laços de continuidade com a cultura ancestral. Uma aldeia triste, em frente ao mar, em lugar decadente, quase estéril. Um povo alquebrado, quase todos gordos, levando uma vida sem sentido. Um ancião querendo repassar os segredos da cultura de seu povo para os meninos, porque criado na sociedade patriarcal. A menina, por sua vez, queria aprender com o ancião, avô dela, mas ele a desdenhava. Por sua vez, o avô era desdenhado pelos meninos, que achavam ridículos aqueles ritos e costumes. E a menina insiste em aprender.

Determinado dia, uma baleia encalha na praia. Para o povo maori, foi uma deidade, Paikea, que os conduziu para aquelas distantes ilhas da Nova Zelândia. Paikea viajava montada em uma baleia, e os maori a seguiram em suas canoas. Quando uma baleia encalha na praia é como se Paikea morresse, cortando definitivamente os laços dos maori com sua ancestralidade. Toda a aldeia se mobiliza para ajudar a baleia a voltar para o mar. Não conseguem. O esforço é imenso, jogam baldes de água sobre a baleia, procuram puxá-la com um trator, mas não há meio de ela reencontrar o caminho ao mar. É quando a menina decide conversar com a baleia.

A menina e a baleia, em silêncio, uma acariciando a pele da outra. Como por encanto, a menina monta na baleia e, juntas, voltam ao mar. Desaparecem. A população da aldeia é tomada por aflição, entre angústia, arrependimento e impotência. Até que a encantadora de baleias retorna do fundo mar, montada na baleia, que a devolve à praia. Daquele momento de reencantamento, de religação profunda do povo maori com sua ancestralidade, o povo da aldeia redescobre sua força.

As meninas de San Antonio de los Cobres se entreolham com sorrisos e dizem que vão programar o filme para os demais jovens da cidade; as sessões de cinema acontecem sempre às sextas-feiras. Nos despedimos novamente, entre abraços.

Mais não perguntei.

Até porque já havia escutado sobre o que se passava naquelas pontes. Por saber daquela história é que decidi viajar até lá. Em anos recentes, até 2017, San Antonio de los Cobres passou a ser conhecida como uma das cidades com as mais altas taxas de suicídio de jovens na Argentina. Trinta suicídios de jovens em um único ano. Eles se atiravam das pontes.

Graças à mobilização da prefeitura, junto com lideranças comunitárias e o programa Scholas Occurrentes, foi possível implantar uma unidade de saúde psicológica e terapêutica na cidade. Também realizaram uma Jornada da Cidadania em que jovens apresentavam suas aflições, buscando compreender o sentido de suas vidas, identificar problemas, testar hipóteses e buscar soluções. Foi a partir dessa jornada que decidiram criar o cineclube, sempre às sextas-feiras, dia da semana em que a incidência de suicícios era mais provável. Também decidiram pintar um mural na base da ponte, cuja imagem original apresentaram a mim. Foi uma epopeia até logrararem autorização para a pintura do mural. Queriam pintar de vida, e dar cor à ponte de onde vários jovens, amigos deles, haviam se atirado.

Semanas depois desse encontro, recebo notícias das quatro meninas.

Felizes, alegres e decididas, como as havia conhecido. Elas estavam voltando de mais uma Jornada da Cidadania, na cidade de Jujuy, a duzentos quilômetros dali. A autorização para fazerem o mural na base da ponte, que é patrimônio histórico da nação argentina, havia saído. Depois da menina encantadora de baleias, no distante Pacífico, agora seriam elas, as meninas do deserto, as encantadoras de La Puna, a fazerem o sentido da vida brotar novamente em San Antonio de los Cobres.

Desde então, nunca mais houve notícia de suicídio de jovens na cidade.


1 Papa Francisco, no encerramento do IV Congresso do Scholas Occurrentes, em 5 de fevereiro de 2015.

2 Encontro com jovens de oito países, por videoconferência, em 9 de junho 2017.

3 Rappero: cantor de rap, rapper.

4 E acontece/A esperança enfraquece, e enfraquece/porque o dinheiro não alcança/A realidade é crua/muda, mata e arrebata/com minha rima eu te dou minha vida.

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Um comentario para "Juventude, pós-capitalismo e as escolas do encontro"

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