Educação: Três livros e uma provocação

O ensino tornou-se direito fundamental – e a escola, seu principal dispositivo de atuação. Estes espaços de formação, forjados na modernidade, são a única forma de “progresso”? Há alternativas à crise de sentidos que eles enfrentam hoje?

Imagem: Tetsuya Ishida
.

As políticas de escolarização obrigatória, construídas a partir de um projeto humanizador que se estabeleceu em obras precursoras dos séculos XVI e XVII, refletiram nossa aposta em construir um futuro humano melhor. Tratava-se de um projeto que, marcadamente, caracterizou-se por uma condição otimista que apostava na melhoria individual de nossas capacidades, que nos prometia a emancipação ou a autonomia política e defendia que, por meio da educação, atingiríamos o progresso para as sociedades. A aposta na escolarização para todos levou-nos a considerar, pelo menos desde Jean Amós Comenius, que era possível construir uma pansofia: a possibilidade de ensinar tudo a todos. Essa crença no progresso humano, pela via educativa, ancorava-se no consenso epistemológico (que todos podem ser educados) e criou um novo consenso moral, por meio do qual todos deveríamos ser educados (Sacristán, 2001). Em tais condições, a escola tornou-se a forma privilegiada para levar adiante este projeto de nos guiar na direção do progresso.

Certamente que a promessa da escolarização para todos encontrou antagonistas de diferentes matizes, sobretudo nas primeiras décadas do século XX. Os determinismos naturais ou sociais, os argumentos eugênicos, os modelos de medição de capacidades, a normalização ou a lógica dos exames são exemplares importantes das resistências enfrentadas para a garantia da escola para todos. Ao mesmo tempo, a escola foi reivindicada por lutas sociais e políticas que desejavam superar os privilégios no acesso às culturas letradas e às oportunidades educacionais. Partidos políticos, sindicatos, associações comunitárias, organizações e movimentos sociais agregaram-se na defesa de uma escola capaz de receber a todas as crianças e adolescentes, enfrentando a segregação que ainda nos caracteriza na democratização dos conhecimentos e experiências escolares. Neste complexo jogo de relações, bastante conhecido de nossos leitores e leitoras, assistimos a uma consolidação da escola e de suas promessas como requisitos para a cidadania plena. O direito à educação escolar, financiada pelo Estado, configurou-se como o principal dispositivo de acesso aos conhecimentos historicamente acumulados pela humanidade.

Todavia, desde o final do século XX e neste início de século XXI, estamos diante de uma condição paradoxal: ao mesmo tempo em que estamos garantindo a escolarização plena para todos, experienciamos uma crise de seus sentidos políticos, econômicos e culturais. Em termos políticos, parece estar em curso uma desqualificação da vida pública, acompanhada de certa apatia cívica e de um significativo refluxo democrático (Lahuerta, 2020). Certamente que as relações entre educação e política sempre foram polêmicas; mas, neste momento, precisamos diagnosticar a inediticidade deste processo (sobretudo em suas derivações educacionais). Em termos econômicos, acompanhando as próprias mudanças no mundo do trabalho, percebemos uma consolidação da lógica meritocrática, em que formar para o mundo do trabalho – este importante princípio educativo – foi reduzido a capacitar estudantes para empreender individualmente. A preparação para o trabalho não tem conseguido superar esta narrativa hegemônica. Por fim, em termos culturais, a escola vê-se aprisionada entre a pressa por inovação e a pressão por desempenho. Neste âmbito, torna-se emblemática a posição dos atores envolvidos com a nova equipe ministerial, no Brasil, que não conseguem ultrapassar a melancólica preocupação com a reposição de aprendizagens.

Agora, restaria interrogar: quais as perspectivas para a escolarização obrigatória neste início de século? A escola continuará sendo a tecnologia educativa predominante? Seremos capazes de construir novas narrativas para a educação? A partir de agora vou trazer alguns importantes argumentos, provenientes de estudos e autores de tradições de pensamento diferentes, que nos permitem seguir interrogando as políticas de escolarização. Continuar este exercício de pensamento pode nos auxiliar a reconstruir o futuro desta instituição e, mais que isso, abrir horizontes para pensarmos em novas direções.

O livro mais recente do pedagogo argentino Mariano Narodowski intitula-se Futuro sin escuelas. Sua hipótese principal é que, sendo a escola uma fabricação histórica europeia de meados do século XVII, sua história é bastante recente (correspondendo a 0,6% da história do homo sapiens). Sua difusão internacional e os consensos que foram engendrados para esta finalidade acompanharam o desenvolvimento do capitalismo. A escola correspondeu a uma espécie de mutação educacional em relação às formas que lhe antecederam. Considerando a origem desta instituição, bastante recente, Narodowski argumenta que “isto permite conjecturar a possibilidade de seu final”. Certamente que este quadro não é aceitável atualmente, o que não nos impede de exercitar nossa capacidade imaginativa. A forma que a escola adquiriu nos últimos séculos assumiu tanta força que nem sequer ousamos pensar de outros modos. Mesmo os gurus educacionais quando propõem mudanças ou inovações não conseguem reenquadrar a escola sob novas configurações.

Também gostaria de sugerir outro texto. Trata-se de um artigo escrito pelos sociólogos Stephen Ball e Jordi Collet. Os sociólogos críticos escreveram um importante ensaio que foi nomeado como Against school. Isto mesmo! Trata-se de uma crítica epistemológica que contesta o predomínio absoluto da forma que a escola assumiu historicamente. Retomando a crítica realizada nos anos de 1960 e 1970, Ball e Collet ponderam que “a escola foi mal projetada e injusta em seus processos”. As atuais reformas ou inovações educacionais são insuficientes para cumprir suas promessas, na maioria das vezes, assentadas em discursos redentores. Sua crítica epistemológica supõe que a crise de sentido hoje experimentada pela escola demanda outras possibilidades de interrogação. Antes de avançarmos para o último texto a ser sugerido, creio que seja necessária uma ressalva: não se trata de abordagens pessimistas, mas perspectivas que têm a coragem e a ousadia para conduzir o pensamento crítico sobre a escolarização para novas direções.

Foi lançado pela Companhia das Letras o mais recente livro de Ailton Krenak, intitulado Futuro ancestral. O pensamento de Krenak, reconhecido como um pensador dos povos originários, tem nos ajudado a colocar sob suspeita as cosmovisões advindas do continente europeu: sua relação com o tempo e os espaços comuns, com as tradições e os saberes ancestrais, com o ambiente e a educação das novas gerações. Nesta obra, em um capítulo nomeado como “O coração no ritmo da terra”, Krenak enfrenta as relações entre educação e futuro. A escolarização, enquanto um projeto moderno, assenta-se na hipótese de que educamos para o futuro: para o êxito, para o sucesso, para coisas úteis ou para o progresso. Ou seja, nossa epistemologia dirige-se a formar para tempos que virão: um futuro prospectivo e acelerado, que se desconecta da vida presente, das experiências comunitárias e da constituição de mentalidades sensíveis. Em conflito com essa forma escolar predominante, o pensador argumenta que “por todos os lugares a gente vê jovens se sentindo expulsos do mundo”. Desde a experiência dos povos originários, defende a importância de as crianças colocarem “o coração no ritmo da terra”.

No decorrer deste texto procurei recompor alguns debates sobre as políticas de escolarização, o modo como este projeto ocidental conduziu as experiências dos sistemas de ensino até este momento. A educação tornou-se um direito fundamental e a escola converteu-se em seu principal dispositivo de atuação. Todavia, atualmente, por conta dos ritmos acelerados que a vida capitalista nos impõe, as políticas de escolarização encontram-se em uma crise de sentidos: entre a pressa por inovação e a pressão desempenho. Diferentemente do caminho proposto pelos interlocutores do novo Ministério da Educação, em nosso país, não se trata de uma repactuação ou de uma reposição melancólica das aprendizagens perdidas nos últimos anos. Trata-se, em minha percepção, de uma valiosa oportunidade para revisitar os sentidos públicos da educação e o próprio lugar da escola como tecnologia política privilegiada. Com coragem e otimismo precisamos renovar nossas perguntas para que possamos sintonizar os desafios emergentes com a metamorfose que estamos vivendo em termos planetários. Parafraseando Krenak, também aposto que o momento nos permite “recolocar a educação no ritmo da terra”.


Referências:

BALL, Stephen; COLLET, Jordi. Against school: an epistemological critique. Discourse: Studies in the cultural politics of education, 2021, p. 1-15.

KRENAK, Ailton. Futuro ancestral. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

LAHUERTA, Milton. Educação e política no contexto da crise contemporânea: formação para a vida civil e o lugar público da escola. In: BOTO, Carlota et. al (Orgs.). A escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios. São Paulo: Livraria da Física, 2020, p. 355-380.

NARODOWSKI, Mariano. Futuros sin escuelas. Colima: Puertabierta Editores, 2022.

SACRISTÁN, Gimeno. A educação obrigatória: seu sentido educativo e social. Porto Alegre: Artmed, 2001.

SILVA, Roberto Rafael Dias da; SCHERER, Renata. A emergência das escolhas individuais como um princípio curricular no Brasil: uma crítica à escola do neoliberalismo. Revista Portuguesa de Investigação Educacional, v. 23, p. 1-25, 2022. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/363732005_THE_EMERGENCY_OF_INDIVIDUAL_CHOICES_AS_A_CURRICULUM_PRINCIPLE_IN_BRAZIL_A_CRITICISM_OF_THE_SCHOOL_OF_NEOLIBERALISM

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *