As Infraestruturas da Imaginação pós-capitalista

Novas experiências convidam a detectar o que, ao nosso redor, já é semente e atalho para outro futuro. Pois é urgente, como lembrou Italo Calvino, reconhecer quem e o quê, “no meio do inferno, não é inferno; fazê-lo durar, e dar-lhe espaço”

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Por Bernardo Gutierrez, em CTXT | Tradução: Antonio Martins | Imagem: Banksy

Ao por os pés na superfície da Lua, Neil Armstrong vislumbra um grupo de homens em trajes espaciais e roupas de mergulho laranja. Tintin abre seus braços. O professor Tornasol tem um

ramo de rosas. O Capitão Haddock segura ums pequeno placa com a palavra Welcome. O cão Snowy observa a cena. Esse foi o cartoon que o cartunista Hergé, pai de Tintin, enviou a Neil Armstrong em 1969, após o desembarque da Apollo 11 na Lua. Não era preciso explicar: Tintin havia pousado na Lua dezesseis anos antes de Armstrong, nas páginas deExplorando a Lua. Na verdade, desde que Julio Verne publicou Da Terra à Lua em 1865, a espécie humana já havia imaginado várias maneiras de viajar para o satélite terrestre. O filme norte-americano Destination Moon (1950) foi uma das tentativas mais detalhadas. Suas imagens inspiraram profundamente Hergé.

O pouso na Lua foi precedido de ficção especulativa. A história inventada veio primeiro. Pois, como argumenta a pesquisadora afro-americana Walidah Imarisha, antes de construirmos algo, devemos ser capazes de imaginá-lo. Entretanto, em tempos de pandemia, com um futuro sequestrado por uma espiral de distopias, parece que ainda é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. Em meio a este presente bloqueado, emerge do mundo anglo-saxão o conceito de infra-estrutura da imaginação, uma autêntica lufada de ar fresco para enfrentar o colapso planetário. As palavras “infra-estrutura” e “imaginação”, aparentemente antípodas semânticos, tornam-se um poderoso emparelhamento.

Quem me dera que fosse: Em 2010, o artista Candy Chang transformou as paredes das casas abandonadas em Nova Orleans em muros de desejos coletivos. Ela colocou centenas de adesivos com a frase “Gostaria que isto fosse” [I wish it was] e um espaço em branco a ser preenchido pelos transeuntes. Nas paredes brotaram desejos, possíveis futuros, usos concretos para os edifícios abandonados. “Eu gostaria que este fosse um jardim comunitário”. “Um lugar para sentar e conversar”. “Um mercado de produtores sustentáveis”. “Uma loja de vinil”. “Um restaurante chinês”. “Um lar”. A infra-estrutura mínima proporcionada por Candy Chang projetou futuros, abriu possibilidades, desatou a capacidade de imaginar coletivamente. O projeto foi replicado em cidades de todo o mundo.

O método Chang pode se encaixar na primeira definição de infra-estrutura de imaginação da pesquisadora Olivia Oldham, uma “infra-estrutura que apóia o uso e o desenvolvimento de habilidade e capacidade imaginativa”. Oldham, que está ligado ao fascinante projeto “Futuros Emergentes” [Emerging Futures], financiado pelo National Lottery Community Fund do Reino Unido, também vê infra-estruturas de imaginação como “o processo ou metodologia que envolve o uso de faculdades imaginativas para projetar novas infra-estruturas” e “a descrição de como alguns imaginários sócio-técnicos estão embutidos em infra-estruturas físicas”.

Estas três definições de infra-estruturas da imaginação levaram ao evento Imagination Infrastructuring, que ocorreu em meados de 2021. Visto a partir do sul global, o próprio subtítulo do evento soa como uma fábula: “Dotar de recursos, fazer crescer e alimentar as condições para a imaginação coletiva e pública”. A imaginação precisa de infra-estrutura. Física, econômica, psicológica e criativa. A imaginação precisa de “sonhadores públicos” nas mais variadas formas. Paredes de desejos em todos os lugares. Laboratórios cidadãos para projetos de protótipos. Espaços vazios para aprender a habitar o mundo de maneira diferente. Tempo não produtivo para pensar, meditar e criar. Em vez de clusters de empresas, espaços para ação.cooperativas. Hortas urbanas com pedagogias compartilhadas. Em vez de programas de televisão competitivos e agressivos como o MasterChef, precisamos de mais projetos de encontro cultural para vislumbrar nosso futuro comum, como faz a peça teatral The Night, do grupo dinamarquês Hello!earth’s. The Night traz trinta pessoas para dormir juntas e compartilhar seus sonhos para “imaginar uma sociedade pós- capitalista enquanto dormimos”.

“Estive no futuro. Nós vencemos!”

“Estive no futuro. Nós vencemos!”: José Luis Fdez Casadevante ‘Kois’ fala em seu blog essencial, Last Call, sobre o fascínio que sente por uma camiseta preta do movimento Black Lives Matter com uma mensagem simples: “Eu estive no futuro. Nós ganhamos”. A determinação e a esperança, escreve Kois, são indispensáveis e contagiosas. Nesta coluna, já escrevi que quando a imaginação é ação, o futuro desejado ocupa o presente. Também meditei em Microutopias para um futuro inclusivo sobre as utopias reais, tangíveis e concretas que estão se espalhando por todo o planeta. Se quisermos vislumbrar como será um mundo sem carros, nada melhor do que uma visita ao distrito de Vauban em Friburgo (Alemanha). Se queremos examinar as mil faces de um mundo mais justo e sustentável, vamos visitar os futuros fictícios que a iniciativa basca “Rascunhos do futuro” [Borradores del Futuro] projeta sobre coisas que já existem. Antes de escrever, os autores convidados participam de um “Ateliê do Futurível” [Taller del Futurible] com pessoas-chave do projeto escolhido para estrelar a fábula. Da oficina emanam ideias, sugestões e informações emanam que o escritor pode (ou não) usar em sua história. Por exemplo, em El Río, a escritora Uxue Alberdi imagina o efeito transformador do planejamento urbano com uma perspectiva de gênero, com base nas experiências desenvolvidas em Usurbil, município do País Basco. Em sua ficção, as arquitetas Luz e Izaro, que já são idosas, “preparam-se para morrer como habitantes do pântano que preserva a memória de um passado no qual nem todos quiseram participar”. Elas se lembram de como adaptaram as ruas, casas e praças para que o comportamento de toda a população girasse em torno do “cuidado”.

Enquanto nos dotamos da infra-estrutura coletiva necessária para dar poder à imaginação no meio deste mundo infernal, detectemos o que, ao nosso é semente e atalho para outro futuro possível. É urgente, como escreveu Italo Calvino, reconhecer quem e o quê, “no meio do inferno, não é inferno; fazê-lo durar, e dar-lhe espaço”.

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