Um passeio pelo olhar de Marjorie Sonnenschein

Para a fotógrafa falecida no último dia 20, o artista é um fazedor que enxerga a poesia dos momentos cotidianos. Fotografou de Elis Regina e Hilda Hilst a Adoniran e Chico Xavier, e dizia que a beleza do retrato está na troca e na entrega

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Marjorie Sonnenschein, entrevistada por Ric Peruchi

Neta de judeus austríacos assassinados em Auschwitz, Marjorie Sonnenschein nasceu em Fortaleza, em 26 de maio de 1944, e radicou-se em São Paulo no final dos anos 50. Depois de passar pela ilustração, pela pintura e pelo cinema, fixou-se na arte fotográfica.

Suas composições visuais vão da sutil exploração das escalas de cinza até a imersão completa na cor, estabelecendo ou eliminando as fronteiras entre o figurativo e o abstrato. A partir das coisas, dos lugares e das pessoas, realizou uma meticulosa construção da beleza, com absoluta precisão nas linhas, nos enquadramentos, nas tonalidades e na captura da imanência de tudo aquilo que fixou com suas lentes.

Em 45 anos de carreira, sempre relutante em expor e comercializar seus trabalhos, inquieta por perseguir a perfeição, permaneceu como a mais “maldita” entre os grandes fotógrafos brasileiros, em poucas e raras exposições, apesar da vasta e relevante produção. Marjorie tem como legado uma obra que se caracteriza pelo diálogo intenso com as demais artes e a busca pelo essencial.

Formação e início

Iniciou-se no desenho, tendo estudado na Associação Paulista de Artes. Passou pela pintura, quando trabalhou com Lise Forell, Gershon Knispel e Harry Elsas. Dividiu ateliê com Gontran Guanaes Netto e Ionaldo Cavalcanti.

Sua primeira exposição individual foi em um Kibutz em Israel, onde viveu por alguns meses, em 1967, por incentivo de Paulo Ludmer. De volta ao Brasil, trabalhou na produtora de animação Lynxfilm, como assistente de Ruy Perotti e Daniel Messias.

Em seguida, integrou a equipe do diretor de arte Edmar Salles na revista Claudia da Editora Abril. Seu talento como ilustradora e fotógrafa foi descoberto por Ignácio de Loyola Brandão que a levou para a redação de várias publicações que editou, incluindo as revistas Planeta e Status.

Colaborou com O Estado de São Paulo, para o qual ilustrou as críticas teatrais de Sábato Magaldi, no Caderno 2, e outros textos para o Suplemento Literário, em desenhos de inspiração surrealista que assinava como Marjorie Baum, sobrenome de seu primeiro casamento. Na Associação Amigos do MAM, o lendário Bar do MAM, na Rua 7 de abril, sob curadoria de Francisco de Almeida Salles, exibiu seus desenhos e pinturas.

Cinema e livros

Ingressou na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP), onde foi aluna de Paulo Emílio Salles Gomes, Roberto Santos e Rudá de Andrade. Dirigiu dois curtas-metragens. “Steinberg” (1971), uma parceria com Roman Stulbach e Marcelo Tassara, desenvolvido a partir da técnica do tabletop, leva à película os desenhos, textos e cartas do norte-americano Saul Steinberg. “O castelo do Morro dos Ingleses” (1973), produzido e dirigido inteiramente por ela, é uma adaptação livre do conto “A casa tomada” de Julio Cortázar. Os filmes integram o acervo da Cinemateca Brasileira.

Mas foi na fotografia que definiu sua trajetória. Clicou na Europa, nos Estados Unidos, no Canadá, em Israel e na América Latina, mas principalmente no Brasil, de Norte a Sul. Abriu caminhos na fotografia de paisagem e de arquitetura e se tornou, sobretudo, uma indiscutível mestra do portrait. Teve grande influência de Ansel Adams, Georgia O’Keefe e Mark Rothko, dominava igualmente a escala de cinzas e o abstracionismo cromático.

Sob suas lentes passaram grandes personalidades, como Pelé, Aldemir Martins, Betinho, José Celso Martinez Corrêa, Geórgia Gomide, Paulo Goulart, Nicette Bruno, Mazzaropi, Chico Xavier, Francisco Gaspar, Antônio Vaz Lemes e muitas outras. É de sua autoria a icônica imagem do reencontro entre Adoniran Barbosa e Elis Regina em 1978 na Padaria Real, ao lado da extinta TV Tupi. Mestre do retrato, registrou famosos e anônimos, sem distinção.

Foi companheira de Massao Ohno por 14 anos, com quem estabeleceu também parceria profissional na confecção de capas e fotos de autores em toda a última fase da produção do editor independente, com dezenas de trabalhos publicados, incluindo obras de grandes autores, como Hilda Hilst.

Massao Ohno

Construção da beleza

Clicou intensamente a cena cultural paulistana e construiu séries marcantes, que incluem “Os faróis da costa brasileira”, “Minha Janela” e “Blow up”. Nas últimas duas décadas, desenvolveu um trabalho pioneiro que denominou “Imagem-terapia”. Por meio da fotografia, devolvia autoestima a pessoas em situação de vulnerabilidade ao capturar e revelar a beleza que via em seus rostos e corpos.

Desde o início do novo milênio passou a explorar as possibilidades do digital como um novo instrumento e um retorno à pintura, em pouco tempo criando domínio e investigando novas linguagens. Sua produção digital ultrapassa 30 mil imagens. Apresentou sua última mostra, “Trajetória”, no Sobrado Dr. José Lourenço em sua cidade natal em 2013.

A fotógrafa, ilustradora e cineasta faleceu na sexta-feira, 20/9, aos 75 anos, em São Paulo. Lutava contra um câncer nos pulmões. Deixa os filhos Luciano, Micael, Maya e Matheus, a neta Daphne, a irmã Magnólia e um acervo de aproximadamente 100 mil imagens. Uma seleção de seus trabalhos foi adquirida para integrar o acervo permanente do Instituto Moreira Salles (IMS), um dos mais importantes dedicados à fotografia na América Latina.

Em rara entrevista, sua última, Marjorie Sonnenschein revela um olhar peculiar sobre a arte e o universo das imagens. Fala abertamente, de maneira íntima e sensível, de sua trajetória como criadora, de seus medos, intenções e descobertas ao longo de 45 anos de carreira.

O primeiro instrumento do artista é o olho?

Eu acho que esse acúmulo de olhares, de todas as coisas vistas, se reúne no momento em que vou realizar o trabalho. De alguma forma, uso essa experiência, a experiência de quem vive de olhar.

O olho edita o mundo?

A mente edita o mundo. O olho é o copião. Quem edita mesmo é a mente. O copião capta tudo, mas a mente é que me leva a fixar no nozinho daquela garrafa ou no verde do seu olho que estou vendo agora.

Para que você fotografa?

Primeiro eu quero gostar. Se eu não gostar, não tem jeito. Ou seja, eu fotografo pra mim, pro meu prazer. É o meu prazer em ver e comparar aquela beleza que vi com o que consegui realizar.

Depois fico imaginando assim… Normalmente as pessoas vão pro trabalho, pra casa, vão de carro, não sei o que, e não têm a oportunidade de fixar. Até passam pelos momentos belos, ou momentos interessantes, mas passam e não veem. E o artista, ou esse fazedor, está disponível. Sua vida é ficar recortando tudo isso que passa. É um indivíduo que se predispõe a fazer esses cortes. Então, aquele que passa e que não tem tempo porque está indo para outra atividade vai ter a oportunidade de ver esses cortes ou de reconhecê-los. Eu desejo, portanto, com as minhas imagens, dar um prazer para o outro individuo.

É como se você quisesse que os outros vissem aquilo que só você vê?

Compartilho aquilo que vejo porque é muito incrível. É muito para ser só de um. É isso. Eu gosto que você veja aquilo que eu vejo. Embora não saiba se você vai gostar, se isso vai impressionar você como me impressionou.

É uma necessidade?

Às vezes, uma beleza é insuportável. Preciso pegar, botar num lugar e me livrar dela. A beleza é deslumbrante. Minha tentativa sempre é de reproduzir esse estado de contato com a beleza.

Quer dizer…

Não é só uma imagem.

Qual a primeira imagem da sua existência que permanece em sua memória?

Quando morava em Fortaleza havia um alpendre em volta da casa inteira, que era ao lado da praia. Em todo esse terraço, o chão era feito de losangos vermelhos. Um lado da construção era a entrada social e, no lado de trás, havia uma torneira de onde se puxava uma mangueira que alcançava toda a casa… e as bitucas de cigarro da minha mãe. Ali eu ficava desenhando sobre os losangos. Foi meu primeiro contato com o desenho. Eu devia ter oito anos.

A sua primeira relação com a arte foi o desenho, então?

Foi isso mesmo. Minha família se formou em Fortaleza, depois fomos para Natal, onde vivemos uns três anos. Cheguei aos 14 em São Paulo e fomos morar no Brooklin. Já que desde cedo eu gostava de desenhar, meu pai percebeu. Ele era austríaco e, claro, me colocou para estudar com um senhor alemão. E eu ia sempre. Tinha de desenhar ferramentas, chaves de fenda… [risos] Eram desenhos técnicos mesmo. Depois observava esculturas e figuras humanas…

Então passei por algo incrível. Fiz cursos de desenho de costura e também de desenho livre, com nu artístico e tudo o mais, na Associação Paulista de Belas Artes. Fizemos uma exposição numa galeria que havia embaixo do Viaduto do Chá. Foi minha primeira. Ganhei uma medalhinha. É… Minha história começou com os desenhos.

Quando a arte virou trabalho?

Teve uma primeira história… Quando vi os desenhos do Carybé fiquei louca por aquilo e comecei a desenhar inspirada por ele e fazia cartõezinhos. Eram jangadeiros e outros temas que tinham a ver com a minha infância no Nordeste. Um amigo do meu pai chegou a imprimir algumas coisas e a fazer cartões postais. Eu achava que minha história ia ser isso.

Mas depois é que começou mesmo. Um dia vi um anúncio no jornal para a Lynxfilm, que era uma produtora de animação. Buscavam um assistente de direção para desenhos animados. Respondi e fui contratada. Trabalhei com o Ruy Perotti, que dirigia os filmes, e também com o Daniel Messias, que era um grande ilustrador. Eu desenhava os movimentos. Foi meu primeiro trabalho.

Fiquei um tempo ali e vi outro anúncio, desta vez da revista Claudia, para ser assistente de direção de arte. Fiquei um ano lá, com o Edmar Salles. Fazia diagramação. Foi lá que eu conheci o Loyola (Ignácio de Loyola Brandão), que curtia muito o meu trabalho. Onde ele ia, me levava. Fomos para a Planeta e depois para a Status, sempre como ilustradora. Ainda como parte dessa fase, ilustrei as críticas teatrais do Sábato Magaldi no Estadão e outros textos para o Suplemento Literário.

Você chegou a pintar?

Muito. Comecei a pintar sozinha, como autodidata. Depois frequentei um ateliê coletivo, que pertencia a um italiano. Era ao lado da Escola Panamericana, perto de onde é hoje o Restaurante Piolim. Numa daquelas casas morava o Flávio Império com a mãe dele. Havia vários artistas importantes lá. Lembro do Gontran (Guanaes Netto) e do Ionaldo (Cavalcanti). Cada um tinha seu cavalete e trabalhava ali. E eu tinha o meu. Comecei olhando e ajudando. Foi então que a artista naif Lise Forell, com quem cheguei a trabalhar, me apresentou o Gershon Knispel. Foi uma paixão. Estudei ainda com o Harry Elsas.

O que existe dessa produção?

Sabe o que aconteceu? Destruí todas as minhas pinturas e a maioria dos desenhos, brigando com os companheiros. Quando eu enlouquecia e brigava com um companheiro, em vez de quebrar a casa, eu destruía minhas obras. Reneguei tudo, menos a fotografia.

Na fotografia só sobrevivem instantes e muitas imagens são jogadas fora. Você acha que a vida também é isso? São instantes que sobrevivem?

Não, acho que não. Na realidade, instante tem a ver com instantâneo, e instantâneo também é fotografia, não é? É um sinônimo de fotografia. Na fotografia, de uma certa forma, você fixa o instante, mas a vida, para mim, não é isso. A vida é um rolo de filme que passa e você fica.

A vida não é fotografia, a vida é cinema?

A vida é cinema. E eu sou louca por cinema. [risos]

E como nasceu esse paixão?

Resolvi fazer Filosofia, como ouvinte, na Maria Antônia. Lá tive uma professora de História da Arte, que era apaixonada por cinema. Não consigo lembrar seu nome. Ela era fantástica. Fiquei muito interessada e fui fazer a faculdade de cinema na USP.

Meus contemporâneos lá foram o (Carlos Augusto) Kalil, o Guilherme Lisboa, o Sérgio Bianchi e a Tânia Savietto, a quem eu era muito ligada. Andavam por lá também o Nuno Leal Maia, a Regina Duarte… Entre os mestres havia o Roberto Santos, que era apaixonado pelos alunos, encantado com os jovens que curtiam cinema. Foi muito intenso. Teve ainda o Paulo Emílio (Sales Gomes) e muitos outros.

A Escola tinha recebido uma doação de câmeras de filmar e começou a fornecer o equipamento para profissionais, que integravam os estudantes na equipe, para fazer a prática. Eu sempre me enfiava nas trupes. Via Rudá de Andrade e toda uma turma.

Há uma imagem minha que ilustra muito bem o que foi essa época. Estavam na mesma mesa, rodeados por nós alunos, Edgard Morin, Roberto Rossellini e Glauber Rocha.

Você chegou a realizar filmes?

Rodei um curta-metragem com o Roman Stulbach e o Marcelo Tassara a partir de desenhos, textos e cartas do Saul Steinberg. Era todo em tabletop. Ainda circula por aí em mostras. Dirigi sozinha outro curta baseado no conto “A casa tomada”, do Julio Cortázar. Chama-se “O castelo do Morro dos Ingleses” (1973). Os dois trabalhos integram o acervo da Cinemateca Brasileira.

Além disso, colaborei com a Tânia Savietto na produção de um documentário chamado “Comunidade Scapin” (1971). Depois fui para o longa com direção de arte e still. Trabalhei em “Jogo da vida e da morte” (1972), do Mario Kuperman, em “Longo caminho da morte” (1972), do Júlio Calasso, e em “O Predileto” (1975), do Roberto Palmari. Meu último trabalho para o cinema foram as fotos de cena e para o cartaz de “O amor está no ar” (1997), do Amylton de Almeida.

A fotografia, de fato, veio quando?

Me casei na tradição judaica e quase imediatamente depois fomos para Israel, que se preparava para a guerra, em 1967, com um grupo de voluntários do mundo inteiro. Fomos viver num Kibutz. Ali considero minha primeira exposição individual, com desenhos e pinturas. Foi no meu “barraco”. Quem me apoiou muito foi o Paulo Ludmer. Foi todo o mundo do Kibutz para olhar e aí foi aquela coisa.

Na volta de Israel, passando por Paris, comprei minha primeira câmera, uma Canon. Eu tinha interesse, gostava de fotografia. Mas era um olhar amplo para a arte. Pintura, desenho, fotografia… Eu sempre gostei de tudo. Naquele momento vi e gostei do instrumento. Mas só vim a fotografar mesmo quando entrei na ECA no início dos anos 70. Lá tinha um laboratório. Quando entrei e vi aquilo, adorei. Foi então que comecei a me interessar por fotografia pra valer. A paixão pelo cinema e a preguiça de pintar me levaram para a fotografia.

Falando em suas raízes judaicas, os seus avôs estiveram em Auschwitz…

Morreram em Auschwitz.

Sonnenschein?

É um sobrenome austríaco. Meu pai, Leopoldo, fugiu da Áustria com seu irmão durante a Segunda Guerra. Eles eram jovens. Meu tio foi para o Canadá e meu pai para a Argentina e de lá para o Brasil. Eles queriam que meus avós viessem, mas eles não acreditaram…

E sua mãe era brasileira?

Minha mãe, Francisca, era maranhense. Fez o primário junto com o Aldemir Martins. Mais tarde foi estudar em Fortaleza e lá conheceu meu pai. Deu certo. [risos]

E o resultado?

Magie e Marjorie. Minha irmã cantava e eu gostava de dançar.

Hilda Hilst

Falando nisso, você chegou a dançar com a Renée Gumiel…

Dancei. Fui aluna dela. Era uma das queridinhas. Mas eu já era velha pra caramba para a dança. Tinha uns 18 anos. Eu adorava. Queria ser bailarina. Mas ficou pelo caminho…

Teve algo mais que você quis muito ser?

Arquiteta.

O que representa tudo aquilo que você não conseguiu ser?

Não tenho apego com as coisas que deixei para trás. Mas, claro, elas ainda me sensibilizam muito. Uma coisa que acontece, por exemplo, quando vejo um espetáculo de dança choro o tempo todo.

Um choro bom?

Um choro bom mesmo… de emoção.

Você é perfeccionista?

É quase TOC. É horrível… Tem muita história que eu bloqueio.

Existe uma relação entre fazer arte e viver uma insegurança permanente?

Total.

Como essa relação atravessou a sua vida e o seu trabalho?

Será que a arte me é acessível porque que eu acesso esse universo? Me sinto privilegiada e, às vezes, tenho vergonha de me sentir privilegiada porque penso: “Não, todo mundo pode ser, não ter diferença”. Mas não é isso. Não há nada de grande. Então, pergunto: “Qual é a minha fazendo arte?”. Fazer arte é uma coisa muito séria. E isso me deixa insegura.

É oscilante? Às vezes você olha pro seu trabalho e ama e às vezes você olha e odeia?

O tempo todo.

Mesmo com um monte de gente dizendo que ama…

Não importa, acho que o cara não está vendo, sei lá qual é a da pessoa… Eu deixei passar muita coisa porque não acreditei no reconhecimento, nem do outro, nem no meu sentimento – por causa da bendita insegurança.

Mas você se compara?

Nunca.

Mas também pouca coisa deixa você tão furiosa quanto ser comparada…

É?

É.

Por que será, heim?

[risos]

Tenho certeza que somos únicos. Quanto mais o tempo passa, mais certeza tenho. Cada artista é único. Há os imitadores, mas isso não interessa. Não importa.

Aldemir Martins, artista plástico

Você prefere fotografar as pessoas ou as coisas ?

Olha, é mais fácil fotografar as coisas, porque, ao fotografar uma pessoa, além de você tomar um cuidado com a forma, tem que tomar cuidado com o ser humano. Fotografar sempre é uma invasão. Frequentemente me sinto como se estivesse invadindo. Aí, mesmo que simbolicamente, com uma troca de olhares que seja, eu tenho que, de alguma forma, pedir permissão para invadir. É dessa forma que eu faço.

Você tira a beleza das pessoas ou você cria a beleza?

Tem que haver uma troca.

As pessoas tem que se entregar para você?

Tem, ou não. Eu posso fazer, mas não acho graça.

Pode não acontecer?

Pode, se a pessoa não quiser uma entrega. Também quando a pessoa não quer ver de jeito nenhum e imagina que a imagem dela é outra. Aí é terrível.

Você deixa a câmera de lado?

Ah, muitas vezes eu deixo a câmera. Deixei de fazer muita coisa em respeito ao que vi. Em respeito àquela situação, àquele momento da pessoa que estava ali.

É uma sedução? Você seduz quem você fotografa?

Eu acho que sim, num certo sentido. No momento que vejo a imagem, tenho de ser seduzida por essa imagem, que está impressa. Se ela não me seduzir, não vou nem olhar pra ela. Com todo mundo é assim. Então, eu tenho que fazer esse papel. Tenho que fazer com que a pessoa fotografada se sinta seduzindo quem vai olhá-la.

E o seu momento?

Não, meu momento pode ser qualquer momento. Depende da resposta. Tenho de sentir que há uma receptividade de quem estou fotografando.

Alguns artistas escolhem trabalhar não com a beleza, mas com a dor, a feiura, a solidão… Toda a sua obra é uma busca pela beleza?

A minha busca é a beleza. Até já cheguei a ter uma questão com todo esse pessoal que está agora fazendo fotografia em São Paulo. Vários deles meus amigos. Quando eu estava começando meu trabalho fotográfico ficava imaginando que esses grupos poderiam achar meu trabalho alienado. Porque muitos profissionais fazem imagens de passeata etc. Mas percebi que toda essa história dos temas é uma escolha ou até uma teimosia. Não deveria existir uma separação entre uma arte política (“engajada”) e uma arte alienada. Ou é arte ou não é! Isso não se qualifica.

Não é alienação. Não da minha parte. Porque eu sou consciente. Eu vejo. Só que quero encontrar uma forma de mostrar uma solução e não a morte em si. Eu já fiz o dramático, mas com o desenho e nunca era uma coisa revolucionária, um desenho de revolucionários.

Você viveu a ditadura…

Vivi. Cheguei a atuar como pombo-correio (mensageira) duas vezes. Entreguei bilhetes, cujo conteúdo eu desconhecia, mas que precisavam ser entregues. Tinha a ver com o Frei Betto. Eu não era muito consciente… Na última vez, me lembro o trajeto perfeitamente. Tomei um ônibus e fiquei com tanto medo que desci na entrada do túnel da Av. 9 de julho para pegar outro e disfarçar. Achava que estava todo mundo me perseguindo.

Tem uma coisa no seu trabalho que chama muito a atenção. Você nunca foi muito uma fotografa da crônica, no sentido de registrar o que tá acontecendo…

Por isso nunca fiz fotojornalismo.

Suas imagens têm um caráter de atemporalidade… Seus retratos não trazem muitas marcas da época em que foram feitos.

Não trazem. Porque é sobre o ser humano… Você pode captar uma coisa que é permanente nele, que é uma emoção… Se você olhar imagens que fiz há mais de vinte anos parece que foram fotografadas hoje. É aquele ser humano. Não importa a época em que ele viveu.

No meu trabalho, o que importa é o sentimento. É a essência. Da mesma forma, penso que, se hoje você lê um filósofo, é como se ele estivesse falando de agora. Na literatura, sempre lembro da Marguerite Yourcenar. Você pega o texto dela, me refiro, por exemplo, a “Memórias de Adriano”… Fico impressionada porque parece que foi escrito hoje.

Você acha que a arte para ser arte tem de sobreviver ao tempo?

A arte tem que sobreviver ao tempo. A arte tem que me causar emoção independente do que está vestindo ou não vestindo. Por isso eu não gosto quando vejo cenas de batalha com navios chegando. Você não vê o ser humano. Você só vê uma história, entendeu? Você não vê o indivíduo.

Você tem a consciência de que suas imagens vão sobreviver a você?

Nunca pensei nisso. Só pensei que cada livro que eu tenho aqui é dedicado a um dos meus filhos. Já sei que este aqui é pra Maya… e esse outro…

Os seus projetos de livros?

Não. Os livros que eu tenho.

Você está falando de quando um dia você…

É. Quero dizer… Leio o livro e penso em quem vai ficar com ele, entendeu? Sei para quem vou dar a literatura que me acompanhou, para que tenha uma memória de mim mais próxima do que eu possa ter sido. Agora, em relação às minhas imagens, nunca pensei se elas vão permanecer.

Você tem alguma pretensão com a sua arte?

Nunca pensei disso, talvez pela minha insegurança. Mas gostaria de ser reconhecida, claro. Não sei se essa palavra está certa, mas reconhecida no sentido de que eu gostaria que as pessoas conhecessem o meu trabalho.

Não sou só eu quem digo, mas muita gente acha isso… você é uma das grandes fotógrafas brasileiras. Mas inacreditavelmente permanece fora do circuito comercial e dos museus. Você talvez seja o mais maldito entre os grandes nomes da fotografia no país. Foi uma escolha ou foi um acidente?

Escolha não foi. Acidente também não. Eu trabalho muito. Os movimentos que eu fiz durante toda minha trajetória não foram em direção a permanecer. Em alguns momentos, não soube como, em outros realmente não quis.

Mas isso aborrece você?

Não me aborrece nem um pouco.

Você só fez o que você quis?

Na minha fotografia, vivi a minha teimosia. Sempre fiz o que eu quis. É do meu jeito. Por isso me ferrei muito.

Recentemente o Instituto Moreira Salles (IMS), que possui um dos mais importantes acervos fotográficos brasileiros, adquiriu imagens suas…

O Massao Ohno me apresentou o Antonio De Franceschi. Foi um contato muito agradável. Eu lhe disse que queria sua opinião sobre o meu trabalho. Levei umas 50 imagens, em outra ocasião. Ele se interessou muito e quis me apresentar o Sergio Burgi, curador responsável e diretor de fotografia do IMS. O Sergio ficou aqui em casa três dias, viu boa parte de minha produção e fez uma seleção de 100 imagens, que se configura como uma coleção e hoje integra o acervo permanente do Instituto. Todas são coloridas, para meu espanto. Pensava que minha escola era o preto e branco. Li tudo do Ansel Adams.

Por falar no editor Massao Ohno, como foi sua colaboração profissional com ele? Enquanto viveram juntos, vocês fizeram muitos livros…

Nossa! Foi. Fiz muita coisa com ele. Eu já havia feito capa de livro antes de conhecê-lo. Mas, além da minha paixão por ele, pela pessoa Massao, havia uma identidade muito grande com ele por tudo o que fazia em termos de trabalho gráfico. Foi a mesma história que persegui a vida inteira – a simplicidade. Então, eu fazia um traço e ele já sabia. Ele fazia um traço e eu já sabia. Foi incrível!

Quantas imagens existem no seu acervo?

Em torno de 100 mil, sendo 20 mil em digital. Tem que fazer uma grande edição, mas é a minha história.

No início do no milênio, você começou a aderir ao digital. Como foi essa história?

Foi muito complicado sair de uma ideia de fotografia como grafar, foto/grafar. Você trabalha com luz, sombra, temperatura… Você projeta no papel temperatura, agitação, luz… Fecha diafragma, abre diafragma. Era um instrumento que a gente estava acostumado a trabalhar e a fixar aquilo que quer fixar. De repente, se impõe uma ferramenta nova. Mas aí fiquei pensando que resistir e fazer só o analógico seria a maior besteira do mundo.

Porque não é sobre o instrumento. O importante é aquilo que o artista resolve com aquilo que está usando. Pode ser gravura, aquarela… o que for. Eu acho que a minha aceitação em relação ao digital se deu por isso. Encarei o digital como mais um instrumento, como um pincel diferente.

Se, por exemplo, mudo a tonalidade do céu alterando a temperatura com a tal da ferramenta digital que eu encontrei, posso mexer na temperatura de uma forma mágica… É tão mágico como quando eu mexia nas cores das tintas em cima das paletas. Então, sinto que estou fazendo isso agora como se estivesse pintando. É como se estivesse misturando as tintas, botando um pouco mais de branco, um pouco mais de preto, um cinza mais denso ou mais pesado, um pouco mais de amarelo… E vi que tem uma ferramenta que me obedece, por isso a chamo de pincel digital.

Há quanto tempo você fotografa?

Comecei a fotografar no início dos anos 70 e nunca interrompi esse trabalho. Acho que são 45 anos de imagens. Nossa! É uma vida. É a minha vida.

Ao longo de mais de quatro décadas você produziu uma obra incrível…

Nada excepcional. Minha existência, minha família, meus amigos, meus filhos… o mundo, as pessoas.

Você fotografou também várias personalidades… Me ajude a lembrar…

Elis, Adoniran, Betinho, Pelé, Zé Celso, Aldemir Martins, Chico Xavier, Hilda Hilst, Ianelli, a Pascolato, o pianista Antonio Vaz Lemes, Paulo Goulart e Nicete Bruno, Georgia Gomide, Sargentelli e suas mulatas, o chefe do esquadrão da morte, políticos, prostitutas… Muita gente.

Curiosamente você os fotografa da mesma forma que fotografa qualquer outra pessoa…

Porque eu fotografo o ser humano.

Foram muitos lugares também…

Cuba, Peru, Estados Unidos, Espanha, Itália, Israel… Mas principalmente muitos locais no Brasil.

O que falta fazer?

Tudo!

O trabalho do artista nunca termina?

Não, nunca. É uma aventura. Você não termina de olhar nunca. Só quando fechar os olhos.

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