Temporada: nas telas, um Brasil real

Novo filme de André Novais, que estreia hoje, enfrenta o enorme déficit do cinema brasileiro com as periferias, ao enxergar, muito além da caricatura de violência, também solidariedade e ternura

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Por Roberto Andres

Um homem sentado no alto de um barranco contempla um lago. A cor da água sinaliza haver ali uma boa dose de esgoto. Às margens, uma retroescavadeira leva terra do chão para a traseira de um caminhão. Ao fundo aparecem ruas e casas, algumas sem reboco, expondo os tijolos com os quais são feitas.

Uma mulher se aproxima, carregando sacolas de plástico. Ela se chama Juliana; ele, Hélio. Ambos trabalham no controle de endemias da prefeitura de Contagem, visitando quintais para eliminar focos de dengue. Ela pergunta o que ele faz ali e ele diz que está olhando a paisagem. Ela ri – dele e da paisagem. Pergunta porque ele não vai apreciar a paisagem da Lagoa da Pampulha. A plateia ri.

Esta é uma das tantas cenas marcantes do excelente Temporada, filme que estreia hoje em diversas salas de cinema do Brasil. Imaginar um morador da periferia de Contagem pegar um ônibus, baldear em um terminal e gastar algumas dezenas de reais para apreciar a paisagem da Lagoa da Pampulha (também repleta de esgoto, diga-se) evidencia o absurdo da desigualdade espacial nas cidades brasileiras.

Por outro lado, a cena mostra, como me disse a atriz Grace Passô (a Juliana do filme), que “a paisagem depende do olhar, é uma construção afetiva”. Talvez esteja aí a principal qualidade de Temporada: olhar para os territórios periféricos e para as vidas que os habitam pelas lentes poéticas ou cômicas da vida cotidiana, carregada de dificuldades e opressões, mas também de ternura, solidariedade e momentos felizes.

O cinema brasileiro tem um déficit considerável com as periferias. Não foram poucas as vezes que estas foram retratadas pelas faces da miséria e da violência – como se a vida nelas se resumisse a isso. Uma distorção classista e uma “perspectiva colonizadora”, nos termos de Grace, por quem não parece querer conhecer a vida real da maioria da população.

A violência enorme da sociedade brasileira é sim presente em bairros de baixa renda, já que temos um país muito desigual, um modelo de segurança pública falido, uma polícia classista e disfuncional, uma política de guerra às drogas ineficaz e violenta. Mas a vida nos bairros vai muito além disso: se dá pela convivência no trabalho, o brincar na rua, a conversa no banco da praça, a festa na casa do colega. Em suma, é a vida – e é bonita.

Talvez um filme como Temporada só pudesse mesmo ser feito por pessoas como André Novais e seus colegas da produtora Filmes de Plástico: jovens negros, moradores da periferia de Contagem, gente comum com um olhar sensível e muita capacidade de fazer cinema. Por uma série de situações cotidianas – sutis, comoventes, desconcertantes ou divertidas, mas sempre reveladoras – vão nos ensinando a olhar e perceber.

Olhar e perceber. Em certo momento, Juliana tem uma relação amorosa com Renato. A cena é a mesma que se vê diariamente na televisão: entre beijos e amassos, um tira a roupa do outro, trombam num móvel, vão para o quarto. Não passam das preliminares, mas há quem se incomode com a imagem. Afinal, aqueles corpos não foram esculpidos pelo imaginário hegemônico. São corpos negros, gordos – bonitos.

Corpos que estiveram presentes na pré-estreia do filme, no cinema Belas Artes em BH, em uma convivência racial bastante rara nesses lugares. Aliás, como foi mesmo que naturalizamos o apartheid em que vivemos no Brasil? Ou alguém acha que é da ordem divina que a grande maioria das pessoas nos cinemas, galerias de arte e museus seja branca? Que a nossa sociedade seja dividida entre ricos e pobres pelo recorte da cor da pele? O passo seguinte a olhar e perceber é desnaturalizar. E, no Brasil, o racismo estrutural precisa ser desnaturalizado.

Temporada recebeu reconhecimento de festivais internacionais importantes e arrebatou quatro prêmios no Festival de Brasília, dentre eles o de melhor filme. Seria impossível fazer um filme como este sem o apoio de programas de incentivo como o Filme em Minas – um edital de subvenção ao cinema do governo do Estado. É importante lembrar disso, nesses tempos. Muitas produções culturais só são possíveis com apoio estatal, a fundo perdido. É assim no mundo todo.

Por tudo, vale muito assistir, divulgar, aprender com e conversar sobre Temporada.

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