Sombras de um crime: Um Noir desbotado

Submundo. Detetive carrancudo. Loira misteriosa. Filme aposta em pastiche deste gênero fascinante de Hollywood. Mas as referências transbordam sem personagens de carne e osso. A sensação é que assistimos a um jogo cujo resultado já se conhece

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Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema do IMS

Um filme dirigido por Neil Jordan, com Liam Neeson no papel do célebre detetive Philip Marlowe, e de quebra contando com Jessica Lange no elenco, parece uma promessa de satisfação garantida. Mas algo deu errado na fórmula, o que não quer dizer que Sombras de um crime careça de interesse. Como diria o grande crítico Inácio Araujo, é “um filme que se assiste com prazer e se esquece com facilidade”. Suas eventuais insuficiências, entretanto, podem ser instrutivas.

A história se passa em Los Angeles e arredores em 1939, e a primeira coisa a ser dita é que não foi escrita por Raymond Chandler, o criador do personagem Marlowe, mas sim pelo irlandês Benjamin Black (pseudônimo de William John Banville) no livro A loura de olhos negros.

Logo na primeira cena, o veterano detetive é procurado na penumbra de seu escritório, cuja escassa luz entra pelas frestas da persiana, por uma loura sedutora e misteriosa que quer contratá-lo para localizar seu amante desaparecido. Sim, você já viu essa cena, e provavelmente mais de uma vez.

Manual do gênero

A loura em questão é Clare Cavendish (Diane Kruger), filha de uma estrela de cinema do passado, Dorothy Quincannon (Jessica Lange), e herdeira de uma grande fortuna. O amante procurado é Nico Peterson (François Arnaud), um trambiqueiro que contrabandeia “antiguidades” mexicanas (e talvez algo mais ilícito) para um estúdio de Hollywood.

Se a primeira cena parecia o clichê dos clichês do cinema noir de detetive, o que vem depois só confirma a impressão inicial, acumulando elementos que parecem saídos de um manual sobre esse que é um dos gêneros mais fascinantes do cinema norte-americano: contraste entre ambientes sofisticados e antros sórdidos, trama intrincada e cheia de fundos falsos, personagens amorais, relação ambígua do detetive com um policial amigo/adversário, predominância de contraluz e névoa nas cenas noturnas, sem faltar a cena em que o protagonista é espancado ou drogado pelos vilões e perde os sentidos. Em vez de uma loura fatal, aqui há duas.

Essa recorrência a uma iconografia e a uma dramaturgia marcadamente noir não chega a ser um problema num filme que se assume como pastiche, como homenagem, como obra de segundo grau. Mas torna difícil o envolvimento do espectador, que sente estar sempre diante de caricaturas, de referências, e não de personagens de carne e osso.

De tempos em tempos surge no cinema americano uma tentativa de revitalizar o noir. Dessas tentativas pode emergir uma obra-prima como Chinatown (Roman Polanski, 1974), um thriller sensual como Corpos ardentes (Lawrence Kasdan, 1981), um quebra-cabeças irônico como Los Angeles: cidade proibida (Curtis Hanson, 1997) ou mesmo uma paródia irreverente como Cliente morto não paga (Carl Reiner, 1982). Em todos esses casos os realizadores partiam da estética do gênero homenageado para desdobrá-lo em outras direções.

Olhar deslocado

Sombras de um crime, por sua vez, parece se fechar em si mesmo, contentando-se em ser um pastiche. Seu único diferencial talvez seja um certo deslocamento (ou desfocamento) do olhar, pelo fato de ser escrito por um irlandês e dirigido por outro irlandês. Isso confere ao protagonista um tom ainda mais intelectual e irônico do que o habitual. Até uma ascendência irlandesa de Marlowe é sugerida quando ele diz que serviu num batalhão do país na Primeira Guerra Mundial.

Referências literárias (Shakespeare, Christopher Marlowe, James Joyce) pontuam os diálogos do detetive com a diva veterana Dorothy Quincannon, dando um verniz intelectual à dupla e como que a colocando acima dos outros personagens e da própria trama do filme. Conversas com outros personagens trazem alusões ao cinema (Hitchcock, O falcão maltês, etc.). Talvez esteja aí o comentário irônico de Jordan, sugerindo que não leva demasiado a sério seu tema e sua estética.

O resultado dessa operação, a meu ver, é que o espectador é mantido distante, de fora, observando os lances na tela como quem assiste a um jogo cujo resultado já conhece. A ótima trilha sonora com pérolas do jazz e do blues (Duke Ellington, Billie Holiday, The Mills Brothers) acentua esse distanciamento, como se expressasse a admiração de um artista estrangeiro pela cultura norte-americana, mas sem compartilhar sua vitalidade. A certa altura, Dorothy Quincannon rejeita um chá por estar demasiado aguado: “Chá é uma coisa, água é outra”. Poderia ser lido como uma autocrítica, não da personagem, mas do próprio filme.

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