Para rever a dialética do escravo e do senhor

Em “Jacques e a Revolução”, peça em cartaz no Rio, Ronaldo Lima Lins retoma um velho tema, deslocando-o para tempos de indiferença e comodismo ideológico

Abílio Ramos, Sol Menezes, Marco Aurélio Hamellin e Kátia Yunes (Foto: MarQo Rocha)

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Em “Jacques e a Revolução”, peça em cartaz no Rio, Ronaldo Lima Lins retoma um velho tema, deslocando-o para tempos de indiferença e comodismo ideológico

Por Theotonio de Paiva1

Mas não se pode mandar fingindo que se obedece

e obedecer fingindo que se manda?…

Ronaldo Lima Lins, Violência e Literatura

Jacques e a Revolução

De Ronaldo Lima Lins, com direção de Theotônio de Paiva

De 9 a 31 de janeiro de 2018 – sempre às terças e quartas

19h30 | 14 anos | 80 minutos | R$ 40 e R$ 20

Teatro Municipal Serrador – Rua Senador Dantas, 13 – Metrô Cinelândia – Rio

Participantes do programa Outros Quinhentos  têm quatro ingressos grátis por sessão (detalhes aqui)

Jacques e a Revolução ou Como o criado aprendeu as lições de Diderot, de Ronaldo Lima Lins, foi escrita no final do distante século XX, próximo à queda do muro de Berlim e às comemorações do bicentenário da revolução francesa. E ambos os acontecimentos parecem inspirar a composição da peça.

1789/1987 lembraria a muitos intelectuais e artistas do mundo inteiro acerca da necessidade de se colocar em cena, como de fato ocorreu, algumas reflexões sugeridas por aquele processo histórico decisivo.2 Ora, por aquela ocasião, o ator Luis de Lima, amigo do escritor, propusera-lhe um desafio. Tratava-se de elaborar um texto para teatro a partir de Jacques, o Fatalista, e seu amo, de Diderot. Seria uma maneira de se engajarem naquelas comemorações. A proposta é aceita, embora com ressalvas bastante significativas.

Na verdade, ao ler a peça, não é difícil constatar que estamos diante de uma experiência artística altamente pessoal. Isso não poderia ser diferente. Há tempos Ronaldo transitava pelas prosas de ficção e ensaística. Material de aluvião e Os grandes senhores foram editados, em 1975, em Portugal. Oito anos depois, já novamente estabelecido no Brasil, publicaria A lâmina do espelho, romance que é reconhecido como um dos melhores daquele ano, e, naquela mesma década, sairia As perguntas de Gauguin (1988). Além disso, já se fizera bastante conhecido no meio acadêmico e artístico com a publicação de sua tese de doutoramento, O teatro de Nelson Rodrigues: uma realidade em agonia (1979), que se tornaria muito rapidamente uma obra de referência sobre o autor de Vestido de Noiva.

Por outro lado, assim como muitos dos mais importantes dramaturgos contemporâneos reinterpretaram, com sua própria escritura, obras de outros grandes escritores, Ronaldo Lima Lins pensa o texto romanesco, que tem em mãos, não como substrato para uma fábula e personagens, mas como ponto de inflexão, estabelecendo um diálogo intenso com a obra do filósofo. A peça de Lima Lins revela, pois, a visão de um artista maduro que avança sobre os graves conflitos que a modernidade oferece. Em sua pluralidade de significados, a percepção do fenômeno teatral se reinventa através de um jogo dramatúrgico construído a partir de inúmeras referências literárias e teatrais. Desse modo, o “tema da viagem”, presente no romance, fica para trás. Ao contrário, a peça se concentra num único eixo, no coração de um império econômico, metáfora do próprio sistema. Em campos opostos, vemos um Empresário e Jacques, situados num ponto aparentemente fixo em que tudo se reproduz sem sair do lugar.

EMPRESÁRIO: Chamei. Sabe que gosto de conversar quando me vejo no limiar de um grande negócio. Acabo de dar um telefonema que me renderá milhões, talvez bilhões… Estive pensando na história que me contou ontem. Lá no clube, dizem que sou supersticioso. Sou. Posso negar? Ganho dinheiro!… Só quem ganha dinheiro, bastante dinheiro, tem condições de avaliar o medo que dá o risco de perder.

JACQUES, contém um bocejo de enfado: Mas o senhor me chamou para quê? Já lhe contei a história. Não vou lhe contar novamente. E, ainda por cima, tenho pilhas de faturas para examinar.

EMPRESÁRIO, cortando: Isso espera. Não se ganha dinheiro com fatura. Ganha-se com ousadia. E sorte, muita sorte. Isso espera.

JACQUES, acaricia a perna doente: Ai!… 3

Em seus múltiplos planos, o autor organiza idas e vindas no fluxo narrativo. Pouco importa passado ou futuro. Ao mesmo tempo, estabelece saltos na história de uma modernidade, que se fundamenta em rupturas com a tradição e instaura uma maneira de viver e pensar absolutamente nova. Nesse quadro, observamos a atemporal e cíclica alternância de papéis entre opressores e oprimidos. Nada disso se constituindo enquanto novidade. Tampouco uma prisão. Curiosamente, este posicionamento volátil – ora um, ora outro – está presente no dia a dia contemporâneo, inclusive nas mais corriqueiras relações humanas. E é neste ponto que ganha corpo a grandiosidade do autor, sua percepção de que tal oscilação de atuação ocorre, inclusive, no íntimo das relações interpessoais.

Há na peça um discurso desestabilizador que coloca em relevo a natureza das relações pessoais e sociais, com as periódicas permutas entre o opressor e o oprimido. Podemos enxergar a dialética do público e do privado invadindo uma narrativa que obedece a uma estratégia de fragmentação. E não é difícil perceber, nessa condição, uma clareza de propósitos. Aliás, seguindo de perto as observações de Dau Bastos, um dos teóricos que mais tem se dedicado a estudar a prosa ficcional de Ronaldo Lima Lins, Jacques e a Revolução confirma a experiência do ficcionista no exercício de narrativas “densas e experimentais, aliado a um trânsito desenvolto entre as esferas pública e privada”.4 Desse modo, a conversa – amigável e informal, entre os dois personagens-chaves – às vezes resvala para conflituosa, e, em outros momentos, adquire um nível de tensão em que não parece apresentar saída.

No meio disso tudo, presenciamos um jogo, no qual há trânsito e alternância de posições. Quem estava por baixo vê-se por cima e vice-versa. E nesse movimento pendular, Jacques e o Empresário passam em revista as suas próprias histórias, ambições e derrotas em meio a uma infinidade de relatos, animosidades e conflitos políticos.

EMPRESÁRIO: Odeio prejuízos. Os imbecis, pobres de espírito, não entendem como são grandes as emoções de ganhar, arriscar, tornar a ganhar. O mundo não se mostra mais como antes quando tudo se calculava com dez, vinte anos de antecedência porque, no fundo, nada saía do lugar. Hoje não pode ser assim… Mas prejuízo, não! Odeio prejuízos.

JACQUES: Ai!

EMPRESÁRIO: Parece não compreender. Estou falando de milhões. É a própria Terra que não deve parar – e você geme!…

JACQUES: Também conheci na cadeia um sujeito que detestava perder…

EMPRESÁRIO: Como assim?

JACQUES: Tipo interessante. Empreendedor, à sua maneira, isto é, via apenas o seu objetivo pessoal e não lhe interessavam os outros. Chamava a si mesmo de Patrão…5

Abílio Ramos, Sol Menezes, Marco Aurélio Hamellin e Kátia Yunes (Foto: Flávia Fafiães)

Ao fim e ao cabo, somos colocados diante de uma dialética envolvendo dominador e dominado. Esta se apresenta como se fosse um destino, irônica referência aos princípios fatalistas. Tais princípios, contudo, parecem sobreviver apenas quando nos encontramos numa instância propícia a contemplar aquilo que já foi vivido e experimentado. Fora disso, em suas composições e relatos, Jacques e o Empresário, parecem insistir na ausência de um ponto de equilíbrio.

Num mundo que se desagrega, a peça possui uma característica que potencializa aqueles termos pensados acima. Construída como uma espécie de espelhamento, Lima Lins investe numa curiosa arquitetura deixando entrever uma preocupação formal que se tornaria recorrente em diversas obras, inclusive na estruturação de seus ensaios, como é o caso exemplar dos trípticos, em A indiferença pós-moderna (2006). Assim, observamos que as diversas facetas dos personagens intensificam uma visada contemporânea e ousada, ao mesmo tempo em que assistimos a leituras conflitantes de situações muito próximas em sua natureza e características.

PATRÃO: Perdi. Mas não tem importância. Eu acredito também que um dia é da caça e outro do caçador. Está escrito. Jogamos outra?

JACQUES, aceita o convite, sentando-se. O patrão ajeita as peças no tabuleiro, perfeitamente confiante: Uma coisa que me desperta a curiosidade. Como o pegaram?

PATRÃO: É o que eu digo. Estava escrito que me pegariam. E está escrito que eu sairei daqui em breve. A primeira vez, deu certo. Armei a jogada direitinho. E ninguém pôde alegar que não avisei. Cheguei a escrever um livro, que publiquei, demonstrando como faria para enganar as pessoas. Foi na América do Sul. Sabe como é, são coisas que se passam lá com mais facilidade.

JACQUES: Não percebi. Avisou através de um livro que enganaria as pessoas – e enganou?

PATRÃO: Todo mundo comprou o livro, que se transformou num enorme sucesso, leu e morreu de rir. Julgaram que era brincadeira. Ninguém levou a sério. Foi meu primeiro grande golpe. Esgotei várias edições em três meses. Com o dinheiro, eu me instalei. Depois, botei em prática o que havia anunciado no livro. Em pouco tempo, tinha um banco à minha disposição e um plano para capitalizar recursos de donas-de-casa. Elas acorreram à minha porta como abelhas à flor!

ZELADOR: Elas punham dinheiro no seu banco?

PATRÃO: Claro, às quantidades! Fiquei milionário. Eu havia lido que um certo senhor francês, no século XVIII, descobriu uma maneira de trazer recursos para o Estado com um expediente que não ocorrera a ninguém. Segundo ele, o governo não precisava de dinheiro… desde que dispusesse de crédito. Persuadiu o rei a gastar, a gastar muito, porque os bancos, gananciosos, emprestariam dinheiro. Durante algum tempo, o Estado francês distribuiu pensões e prêmios em quantidade. E, em troca, obteve financiamentos nos bancos. O problema consistia em manter essa política por muito tempo, porque os bancos, aos poucos, começaram a desconfiar que não reaveriam a grana, compreende? Óbvio. A bancarrota tardou mas chegou.

ZELADOR: Não deu certo.

PATRÃO: Lá não deu. Mas no meu caso procurei corrigir os erros daquele senhor. Além disso, mantinha sempre o passaporte preparado. E, quando estourou, já me pegaram longe, muito bem escondido. Não me acharam.

JACQUES: Levou o tutu?

PATRÃO: O máximo que consegui. Mudei de nome, de nacionalidade, de país, de tudo. Quando se deram conta de que os fiz de otários, era tarde. Ha! Ha! Ha!

JACQUES, suspeitando do que se passava no tabuleiro: Alto lá! Que jogada foi essa?

PATRÃO, fazendo-se de desentendido: Que isso, meu amigo? Eu sempre aviso quando vou enganar alguém. No jogo, sou honestíssimo. 6

Nesse quadro em que nada é seguro e tudo pode ser visto e compreendido exatamente como o seu oposto, o jogo das representações – espécie de teatro dentro do teatro –, oferece composições cambiantes e reforçam as dúvidas profundas sobre as identidades e máscaras sociais.

Por outro lado, o autor cria uma profunda identidade entre uma dramaturgia com um evidente vigor contemporâneo, ousado, diria, e a exploração de uma experiência social, que também se estrutura na ordem da subjetividade. Para tanto, emprega alguns recursos estilísticos, como o uso de metáforas e da parataxe, deixando com isso a descoberto claros desvãos a serem preenchidos pela experiência do leitor/espectador. E em sua construção temática, a obra jogará com tensões profundas, situando o embate entre os dois personagens centrais, num “tabuleiro de quadrantes claros e escuros alternados”7, para lembrar a imagem que o ensaísta usa ao falar de Platão e seu enlace com verdades e mentiras, outro díptico caro ao autor. Ligadas entre si, a peça se aproxima em muito daquilo que Pavis vai pôr reparo, ao analisar o teatro franco-alemão dos nossos tempos: “nada mais será do que a revelação de uma profunda crise da cultura e da sociedade”.8

EMPRESÁRIO: O mundo fartou-se dessas teorias. Elas estão acabadas. Ao contrário de você, eu privilegio as palavras. O entendimento é a qualidade que nos diferencia dos animais. É preciso aperfeiçoar os meios de empregá-lo. Uma palavra no lugar certo, na hora certa, consegue milagres. As mais enfurecidas multidões, diante delas, caem em si…

JACQUES, reagindo com uma careta: Obedecem… 9

Abílio Ramos e Marco Aurélio Hamellin (Foto: MarQo Rocha)

Nesse sentido, a obra aponta para uma série de indagações sobre a criação e a nossa própria cultura, ao dialogar com uma época capaz de ousar em experiências de toda ordem e desordem. A partir daí, é possível compreender melhor uma modernidade que se instala a um preço violento e a forte inspiração da queda do muro e toda a sua implicação simbólica.

De algum modo, não é difícil encontrar na dramaturgia de Jacques e a Revolução a urdidura de um escritor acostumado a lidar com “os traços de uma humanidade em busca de suas obsessões”,10 e, ao mesmo tempo, centrado, no esteio de uma época que “se iniciou com o sonho de uma revolução”.11

JACQUES: Assim que entramos, verificamos tudo, o mais insignificante documento. Não encontrará, positivamente, o que procura. Melhor sentar e conversar. Ajuda a matar o tempo.

EMPRESÁRIO, estupefato, senta-se: Não pode ser. É um sonho. Não acredito no que acaba de me dizer.

JACQUES: Apesar das nossas diferenças, gosto do senhor. Quem se surpreende com as coisas hoje em dia, tem sangue nas veias. Nós atravessamos uma era de indiferença, de comodismo ideológico. É agradável verificar que ainda se consegue chocar alguém.

EMPRESÁRIO, cansado e sem ação: Ah é?

JACQUES: Veja se não me dá razão. Os homens já foram bravos, heroicos, levavam suas convicções às últimas consequências. Atualmente, não. Aceitam tudo. Não há mais graça no mundo. Estagnamos!

EMPRESÁRIO, atônito: Ah é? Eu prefiro como está. Não me agradam os extremismos. São péssimos para os negócios. O sindicato, por exemplo, se se mostrasse razoável…

JACQUES, sem captar a observação: Até as vinganças não se passam como as de antigamente. Lembra-se como eram terríveis, belas? Agora todo mundo compreende todo mundo… As cabeças não rolam mais. As mulheres, inclusive, tornaram-se compreensivas. Morre-se de enfado! (Levanta-se e se agita com as ideias que desenvolve.) Não há mais criatividade nas pessoas. E, no entanto, como faz bem às vezes uma vingançazinha! 12

Nessa tessitura de fina percepção, Lima Lins traz a público um tema controverso. Este gira em torno da natureza da máscara social, a que já aludimos, perguntando-se sobre o mistério da própria condição humana. Em miúdos: a depender do papel que exercemos, estamos confinados por uma espécie de persona social, cujas implicações se situam muito além das nossas próprias forças. Essa ideia aparece com força em Max Horkheimer, um dos mais expressivos teóricos do movimento que ficou conhecido como “Escola de Frankfurt”, e talvez tenha inspirado as intenções do escritor.

Avançando um pouco mais, nota-se que Ronaldo Lima Lins se lança numa digressão que quebra a simulação da realidade. A narrativa se esmera em isolar os assuntos a fim de dar conta de um embate colossal. Este se traduz, a princípio, na dialética do senhor e do escravo e o processo de formação da consciência-de-si e da importância com o outro na constituição da identidade. 13 No entanto, essa dimensão parece não ser ainda suficiente para o autor. Adiante, irá desnudar as suas intenções ao colocar aquele mesmo embate em xeque. Primeiramente, aparece dentro do diálogo entre os dois personagens centrais. Chama a atenção o fato de num determinado momento da peça sermos impactados com a pergunta que os personagens se fazem: “Quem é mais digno de pena? O que bate ou o que apanha?” E assim seguem duelando numa aposta de interesses e objetivos que novamente não parece apresentar saída.

Podemos perceber igualmente outra expressão que nos remete a esse problema, diríamos, conceitual. Está presente numa espécie de espera por mudanças, numa imaginação que se compraz aos “sinais da alma” dos “navegadores de outro tempo”. 14 É algo comum aos personagens de Beckett, conforme o autor deixa escapar num dos seus poemas. Desse modo, encontramos numa espécie de prólogo, que se complementa e se coaduna a um epílogo de mesma natureza, duas cenas que nos chamam a atenção pelo seu tom enigmático: são seres que reavaliam a experiência da revolução numa outra expressão dramática. Numa primeira contemplação, parecem deslocadas das histórias contadas e encenadas por Jacques e seu patrão. Engano. “Hoje em dia, há corpos espalhados por aí em toda a parte. Não pertencem a ninguém”. A fala evidentemente dialoga de um modo soturno, duro, com a inscrição que o autor invoca na rubrica a fim de que apareça bem visível para todos: “EU SOU DE TODOS E NÃO PERTENÇO A NINGUÉM”. Deslocada de seu contexto original, trata-se de uma instigante e provocadora ressignificação da frase de Diderot, presente nas primeiras páginas do romance. Na verdade, a inscrição era falsa. Mas isso não nos deve lançar uma suposição de que o problema não existe.

HOMEM 2 faz um gesto de impaciência. De qualquer modo, HOMEM 1 se interrompe, atraído pelo terceiro corpo, ainda deitado. Aproxima-se dele, puxado por uma força irresistível. Vira o rosto da mulher e o examina sem reconhecê-lo.

HOMEM 1: Curioso. Quem será? E como veio parar aqui?

HOMEM 2: Hoje em dia, há corpos por aí em toda parte. Não pertencem a ninguém.

HOMEM 1: Mas olhe, não lembra?… Preste atenção. Não lembra?… (Luta com a memória.) Não sei bem quem lembra.

HOMEM 2 se aproxima:

HOMEM 2: uma mulher, mais nada. Morta. 15

Kátia Yunes (Foto: MarQo Rocha)

A impossibilidade de o horror ser retratado, na medida em que ele “ultrapassa qualquer possibilidade de representação”16, nos lança num esforço desesperado. Esse esforço já aparece no filósofo francês e se evidencia na peça cujo personagem lhe segue algumas lições.

Em Jacques e a Revolução, uma espécie de anatomia do poder irrompe a cena, numa expressão de violência dosada numa chave cômica, ao mesmo tempo em que apresenta algo de profundamente humano nos seus personagens. Nos diálogos emergem contendas afetivas entre o empresário e o empregado, no qual a palavra é um ser vivo. As posições de força são medidas em cada momento. As verdades possíveis emergem e necessariamente são reveladas integralmente. É necessário ir além, ler como se contornasse o outro lado do cenário a fim de entender melhor a construção visível. Não se trata, no entanto, de uma situação onde tudo parece indiferenciado. Um comentário descuidado, no conjunto das situações, aponta para algo profundo, como se as ações humanas permanecessem além da nossa compreensão. As atitudes não se revelam integralmente. Existe sempre algo por dizer, escondido. Os personagens parecem caminhar no eterno processo de repetição. Nada do que parece pode ser visto como uma verdade definitiva. Temas revisitados se atualizam. A história, com suas armadilhas e contradições, é posta à baila. E a ideia de revolução retorna, de certa maneira, ao sentido original da astronomia. E se delineia de modo epigramático ao compor o título à obra.

Curiosamente, se nos rendermos a Nicolau de Cusa e a sua De docta ignorantia, consideraremos que aqueles movimentos dos astros se mostram implacáveis ao nos revelarem que “é impossível para a máquina do mundo possuir centro fixo e imóvel”.17 Através dessa antiga ciência, portanto, podemos enxergar grandes convulsões, que voltam ao ponto inicial, numa espécie de circularidade, e igualmente uma ausência de ponto fixo no qual possamos nos apoiar com segurança. Ainda há algo a se fazer? O desafio acompanhará o leitor/espectador.

Referências bibliográficas:

Bastos, Dau. A ficção experimental, política e pouco conhecida de Ronaldo Lima Lins. Mimeo, 2015, p. 3; 9.

De Cusa, Nicolau. “De docta ignorantia”, Livro II, Capítulo 2, p. 99 sq. In: Koyré, Alexandre. Do Mundo Fechado ao Universo Infinito. Trad. Donaldson M. Garschagen. São Paulo: Forense Universitária, 1979.

Lins, Ronaldo Lima. A indiferença pós-moderna. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2006.

___________. Jacques e a Revolução ou Como o criado aprendeu as lições de Diderot. Vitória/ES: Aves de Água, 2016.

___________. Mais do que a areia menos do que a pedra. Rio de Janeiro: 7Letras, 2010.

___________. Violência e literatura. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990.

Hegel, G. W. F. A fenomenologia do espírito. Petrópolis: Vozes, 1992.

Pavis, Patrice. O teatro no cruzamento de culturas. Trad. Nanci Fernandes. São Paulo: Perspectiva, 2008.

1 Este ensaio, intitulado originalmente “Jacques e a Revolução: o tabuleiro de quadrantes alternados e poblicado na edição 20 da revista Alegrar (http://www.alegrar.com.br/revista20/capa.htm) segue proximamente a apresentação do livro, Jacques e a Revolução ou Como o criado aprendeu as lições de Diderot, de Ronaldo Lima Lins, editado pela Aves de Água.

2 No Rio de Janeiro, num projeto capitaneado por Maurício Sette, a Fundição Progresso foi responsável pela realização de 1789: a Revolução e a Inconfidência. Este consistia na criação de espetáculos inéditos que reinterpretavam, cada um a sua maneira, os dois acontecimentos históricos: 1789 – A Revolução partia do texto de Ariane Mnouchkine, numa direção de Carlos Wilson, com Paulo José à frente do elenco. O outro refletiria sobre a conjuração mineira. Coincidentemente, Tamen – A Inconfidência fora escrito por Paulo Afonso Grisolli, Luiz Carlos Maciel, Theotonio de Paiva e Armenio Graça Fº, com direção do próprio Grisolli e co-direção do autor do presente trabalho.

3 Lins, 2016, p. 23-4.

4 Bastos, Dau. A ficção experimental, política e pouco conhecida de Ronaldo Lima Lins. 2015, p. 3; 9. Agradecemos ao autor a gentileza com que nos cedeu os seus originais para leitura.

5 Lins, 2016, p. 31-2.

6 Lins, 2016, p. 32-4.

7 Lins, Ronaldo Lima. Violência e literatura. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990, p. 193.

8 Pavis, Patrice. O teatro no cruzamento de culturas. Trad. Nanci Fernandes. São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 83.

9 Lins, 2016, p. 71.

10 Lins, Ronaldo Lima. A indiferença pós-moderna. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2006, p. 19.

11 Idem, p. 7.

12 Lins, 2016, p. 64-5.

13 Cf. Hegel, G. W. F. A fenomenologia do espírito. Petrópolis: Vozes, 1992, parte I, seç. III, A, §§ 178-96.

14 Lins, Ronaldo Lima. Mais do que a areia menos do que a pedra. Rio de Janeiro: 7Letras, 2010, p. 79.

15 Lins, 2016, p. 22-3.

16 Lins, 1990, p. 36.

17 De Cusa, Nicolau. “De docta ignorantia”, Livro II, Capítulo 2, p. 99 sq. In: Koyré, Alexandre. Do Mundo Fechado ao Universo Infinito. Trad. Donaldson M. Garschagen. São Paulo: Forense Universitária, 1979. p. 21-2. Grifo nosso.

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