Ondas do Oriente na Mostra de São Paulo

Um diretor chinês, um coreano e um taiwanês agitam a 41ª Mostra Internacional de Cinema; mas há outras e boas apostas (inclusive do Brasil) entre 394 filmes

O drama dos refugiados, em "Human Flow", de Weiwei

O drama dos refugiados, em “Human Flow”, de Ai Weiwei

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Um diretor chinês, um coreano e outro taiwanês agitam a 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo; mas há outras e boas apostas (inclusive do Brasil) num mar de 394 filmes

Por José Geraldo Couto, no Blog do IMS

Vem da Ásia uma das ondas mais fortes e interessantes do oceano de filmes que compõem a 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, iniciada dia 19. A começar pelo filme exibido na abertura do evento, o documentário Human flow, do artista multimídia chinês Ai Weiwei, que aliás está em São Paulo como convidado especial da mostra, da qual criou o cartaz.

Para permanecer na metáfora marítima, a ambição totalizante do filme de Weiwei acaba por afogá-lo, ou quase. Em pouco mais de duas horas, Human flow tenta abarcar o drama dos refugiados nos quatro cantos do globo. Sendo assim, cai na tentação de misturar no mesmo saco situações muito diversas.

O que há em comum entre a minoria muçulmana que foge de uma perseguição feroz em Mianmar para o miserável Bangladesh e os mexicanos que buscam melhorar de vida cruzando ilegalmente a fronteira com os Estados Unidos? Ou entre os palestinos que vivem há décadas espremidos na faixa de Gaza e os sírios que, fugindo da guerra em seu país, atravessam várias fronteiras com o intuito de chegar à parte rica da Europa? O que une todas essas situações é a ideia abstrata de migração, de deslocamento, de desterritorialização. Mas são fenômenos completamente distintos, experiências humanas únicas, intransferíveis.

Quando aproxima sua câmera e seu afeto de alguma dessas experiências, trocando a visão panorâmica pela imersão, Weiwei faz seu filme crescer, ganhar substância e contundência. Ao mostrar como, nas situações mais cruéis, as pessoas lavam suas roupas, cozinham seus alimentos e mantêm seus rituais religiosos, ou como as crianças não cessam de inventar suas brincadeiras mesmo entre escombros e lixo, Human flow nos aproxima desses seres, aguça nossa sensibilidade para a vida que eles levam. Cada uma das situações abordadas daria um filme.

Sobre esse núcleo concreto, porém, o documentário sobrepõe uma capa de informações, uma avalanche de números, além de entrevistas com agentes humanitários e estudiosos que acabam por atordoar e talvez até por anestesiar o espectador. Essa carga informativa ficaria melhor, por exemplo, numa série documental de TV. No cinema, o drama de uma única pessoa diz mais do que a informação abstrata da morte de milhares.

Formigueiros humanos

Mas há imagens de fato impressionantes, como as tomadas aéreas da agitação humana em certos acampamentos, semelhantes em tudo a formigueiros. Ou as cenas de refugiados envolvidos em papel alumínio dourado fulgurando estranhamente na noite ao se deslocar por uma zona de conflito. São tocantes também, e eventualmente divertidas, as passagens em que o próprio Weiwei interage com refugiados. Numa delas, por exemplo, ele tem seu cabelo cortado por alguém numa cadeira de barbeiro ao ar livre, num acampamento; em outra, é ele que corta o cabelo de alguém.

Para quem quiser conhecer melhor a trajetória artística e principalmente política de Ai Weiwei, a 41ª Mostra programou o documentário Ai Weiwei: Sem perdão (2012), de Alison Klayman. É bem convencional, mas bastante informativo, trazendo registros muito vívidos da criação estética e da militância política desse artista consciente como poucos da força da internet e da comunicação instantânea na vida contemporânea.

Relações descompassadas

Mas a “invasão asiática” vem também da Coreia, de Taiwan, do Japão… O coreano Hong San-soo, de quem ainda está em cartaz nos cinemas o belo Na praia à noite sozinha, comparece com o ainda mais belo O dia depois, que mostra, num límpido preto e branco, as relações descompassadas entre um homem e três mulheres: a esposa, a amante e a recém-contratada funcionária de sua editora.

Em poucas e enxutas cenas (de diálogos, em sua maioria), com movimentos sutis de câmera, recusa do campo/contracampo, uso preciso do zoom e delicada direção de atores, Sang-soo pega seu protagonista no contrapé, acumula mal-entendidos, desvela camadas insuspeitas de sentimentos, compõe enfim todo um ensaio audiovisual dramático (e divertido) sobre o teatro de máscaras das relações afetivas numa grande metrópole contemporânea (Seul, no caso). No cinema paciente e arguto do diretor coreano há muito de Ozu, como já foi dito, mas também, neste filme específico, um tanto do Eric Rohmer dos “contos morais” e das “comédias e provérbios”.

Relações humanas desencontradas estão também no cerne de Missing Johnny, longa-metragem de estreia do taiwanês Huang Xi. A metrópole, neste caso, é Taipei, onde se tangenciam e acabam por se entrelaçar as trajetórias de uns poucos personagens: um faz-tudo desajeitado, um adolescente com alguma forma de autismo, uma moça que cria pássaros exóticos em seu apartamento e é sustentada a contragosto pelo namorado. O modo como o filme equilibra os caprichos do acaso e os desejos desses personagens é muito hábil, bem como a revelação paulatina da história pregressa de cada um.

As primeiras imagens (que ecoarão no final) são de uma situação aflitiva: um carro enguiça no meio de uma avenida de grande tráfego e seu motorista, que não consegue fazê-lo pegar de novo, sente a pressão crescente da cidade às suas costas, querendo avançar. A dialética entre movimento e paralisia, inclusive no plano pessoal, guiará todo o desenvolvimento da narrativa. A imagem recorrente de viadutos, elevados e túneis que se entrecruzam será também a tradução visual do percurso dramático dos personagens. Não deve ser por acaso que o estreante Huang Xi é apadrinhado por Hou Hsiao-Hsien. O grande diretor de A assassina e O mestre das marionetes é produtor executivo de Missing Johnny.

Outro cineasta chinês de primeiríssimo time, Jia Zhangke, está presente na 41ª Mostra num segmento do longa coletivo Em que tempo vivemos?, do qual participa também o brasileiro Walter Salles, cujo episódio fala do desastre ecológico de Mariana.

Há ainda o cinema japonês, que vai da doçura de Naomi Kawase, com Esplendor, à violência de Takeshi Kitano, comOutrage Coda. Mas destes falaremos nos próximos dias.

Dicas e apostas

Para quem está em busca de dicas, por enquanto o que é possível recomendar, além das retrospectivas dedicadas a Agnès Varda, Paul Vecchiali e Paulo José, são alguns brasileiros mais ou menos obrigatórios: A garota do calendário, de Helena Ignez, obra de um vigor libertário invejável; Gabriel e a montanha, de Fellipe Barbosa, que venceu o Festival do Rio; Arábia, de João Dumans e Affonso Uchoa, ganhador do Festival de Brasília; Antes do fim, de Cristiano Burlan, lindo filme de amor e morte; Café com canela, de Ary Rosa e Glenda Nicácio; Não devore meu coração, de Felipe Bragança; Vazante, de Daniela Thomas, que tem gerado tanta controvérsia e que cada um deve ver com os próprios olhos.

Na categoria “ainda não vi, mas boto fé”, algumas apostas a conferir são: As boas maneiras, de Marco Dutra e Juliana Rojas, Zama, de Lucrecia Martel; Abaixo a gravidade, de Edgar Navarro, e Saudade, de Paulo Caldas.

Muita coisa escapou e escapará, como a água do mar por entre os dedos de quem tentar segurá-la.

 

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