O sopro do abismo e o assobio do teatro

Em louvor a Aderbal Freire-Filho, falecido ontem, Luiz Eduardo Soares republica a resenha de um ousado projeto do diretor: o romance-em-cena – improvável convívio de Aristóteles e Brecht, odisseia do homem à deriva em seu (não-)lugar

.

Em homenagem à memória do querido e saudoso Aderbal Freire-Filho, que nos deixou em 9 de agosto, volto a publicar a resenha que escrevi, em novembro de 2006, sobre um de seus mais lindos espetáculos. Meu sentimento é de gratidão por tudo que  nos deu. (Para ler as outras resenhas sobre o autor, clique aqui.)

Você já foi à Bulgária? 

Por Luiz Eduardo Soares

Aderbal Freire-Filho dirigiu um espetáculo primoroso e inesquecível, com  atores notáveis e excelentes soluções na cenografia, nos figurinos, na sonoplastia e na  iluminação: O Púcaro Búlgaro, que ainda pode ser visto no Teatro Poeira, em  Botafogo, no Rio de Janeiro – pelo menos por mais algumas pouquíssimas semanas. A  montagem põe em cena o romance homônimo de Campos de Carvalho, literalmente,  digo, teatralmente, digo… Bem, é melhor explicar. Será possível? Acho que não.  Melhor você conferir pessoalmente. Enquanto isso, algumas palavras à guisa de  convite. 

Quase abri o texto com a exclamação: “uma obra-prima”; e poderia tê-lo feito sem nenhum exagero, mas temi afastar os que temem a arte cabeça, cult, hermética e  chatíssima. Não sendo nada disso, achei que não cabia arriscar. Aliás, confesso que  me diverti, me deliciei, me lambuzei de tanto prazer e saí louco para voltar. 

Ponhamos, entretanto, freio à expansão exaltada dos sentimentos. A fruição  estética – como a loucura – requer método. Eis, então, o registro da ocorrência: trata-se  de uma reincidência do projeto “romance-em-cena”, que o diretor concebeu e  inaugurou, em 1990, com A mulher carioca aos 22 anos, de João de Minas. A  segunda experiência deu-se em 2003, com O que diz Molero, de Dinis Machado. 

A regra de ouro do procedimento que Aderbal ousou inventar e – mais! – praticar, parece simples: monta-se o romance “sem adaptação”. Diz-se-o todo, sem  cortes. Ou melhor, faz-se-o todo. Mas aí está o enigma, o desafio: como se pode  “fazer” um romance? Como convertê-lo em dramaturgia sem cirurgia, levando-o ao  palco, aos outros, soprando-lhe vida tal qual é? (e o modificando, paradoxalmente, por  respeitar sua integridade em dimensões que, por definição, lhe são estranhas, isto é,  não são redutíveis à literatura?). Como seria possível pôr um romance de pé: a  marchar, falar, dançar, colorir-se, iluminar-se, dando-lhe corpo e voz (a rigor, corpos  e vozes), fazendo-o existir fora de si, além de seu domínio? 

Deduz-se, portanto, que sob a aparência de uma redução de ambições e  responsabilidades (“sem adaptação”) esconde-se uma ampliação de propósitos, que  passam a envolver um esforço adaptativo extremo, no qual a própria possibilidade de  adaptação é conduzida ao paroxismo e ao seu limite. 

Quem não se lembra do conto “Pierre Ménard, autor do Quixote”, uma das  joias de Borges? “Não queria compor outro Quixote – o que é fácil – mas o Quixote.  Inútil acrescentar que nunca visionou qualquer transcrição mecânica do original; não  se propunha a copiá-lo. Sua admirável ambição era produzir páginas que coincidissem  – palavra por palavra e linha por linha – com as de Miguel de Cervantes”. 

Já se vê que reescrever Quixote é missão essencialmente quixotesca e se  cumpriria apenas se Ménard se deslocasse ao lugar do outro, Cervantes, recobrindo-o,  superpondo-se a ele, convertendo a autoria em uma experiência permutável,  subvertendo a própria noção de sujeito – singular e individual. Quais as modalidades  possíveis da criação e da recriação? Qual a distância entre copiar ou transcrever e  traduzir e interpretar, ou adaptar e recriar? 

Adaptação é um jogo dramatúrgico, intervenção estética que ousa pôr em  cotejo e comunicação, iluminando reciprocamente e aproximando, universos de  significação, objetos incomensuráveis, culturas, mundos subjetivos singulares,  indivíduos. Adaptação remete a interpretação e a tradução, que evocam categorias  clássicas, como símbolo, representação e verossimilhança, cuja esfera de significação,  por sua vez, recobre a enunciação de problemas permanentes para a arte e a ciência, a  filosofia e a vida cotidiana – entre eles, aquele que poderia ser descrito como o estatuto  do que seja real e do que seja verdadeiro. 

Na fonte desse rosário de questões chave, encontram-se, portanto, os temas  por excelência da literatura e do teatro: a palavra; a linguagem; a  (in)comunicabilidade; o caráter inexoravelmente dramatúrgico da vida humana enquanto experiência de sentido, na medida em que sentido só há para o outro, com o outro, como outro; o paradoxo da unidade do sujeito que é outro para si mesmo e a estranheza da alteridade, que assinala nossa finitude.

Na fonte, está lá, assoviando à beira do abismo, o teatro de Aderbal, com sua  aparente trivialidade. 

Aderbal, com bom humor e uma postura franciscana, quase irônica diante da  própria obra, mas plenamente consciente da magnitude do chamado a que submete  sua vontade (vocação, parece a palavra mais apropriada), escreveu, no programa da peça: “O romance-em-cena é o jogo da ilusão no teatro levado ao paroxismo, verdade  e mentira escancaradas simultaneamente, o eu e o outro declarados, o discurso em  terceira pessoa e a ação em primeira pessoa. É ainda a comunhão carnal mais acabada  do épico e do dramático, o tempo inteiro narrativo e o tempo inteiro dramático. Uma  versão radical do sonho de alguns teóricos do século XX de convidar para a mesma  mesa Aristóteles e Brecht. Para alcançar essa loucura impossível é preciso tomar umas  providências triviais”. 

As providências incluem dizer cada palavra. Tudo, no romance, é literatura.  Mesmo o que, aparentemente, é apenas ferramenta de apoio. Os sinais, as indicações  que orientam a leitura constituem parte da obra escrita. Quando o autor põe um  travessão ou quando explica – “fulano disse” –, está intervindo tanto quanto ao narrar  um movimento ou um sentimento de um personagem. Esses indicadores não são  meros sinais de trânsito para dirigir o olhar. Servem para diferenciar o discurso  confessional ou testemunhal, em primeira pessoa – que convoca os leitores para a  intimidade de um espaço subjetivo –, do discurso em terceira pessoa, que descreve algo  ou alguém – com objetividade? à distância? –, ou introduz a fala de alguém, cuja  subjetividade não se desvelará por comunhão com os leitores, mas pela mediação de  um relato externo. Há, aí, perspectivas distintas, que provocam a sensibilidade e  solicitam a adesão dos leitores de modos diferentes, com finalidades e conseqüências  diversas. 

Quando os sinais para a leitura – enganosamente pendurados no romance como  peças irrelevantes de um mobiliário supérfluo – são incorporados à trama  dramatúrgica, as passagens, as metamorfoses se tornam visíveis e se integram ao  universo dos acontecimentos significativos. Ou seja, ganham tanta vida quanto os  gestos, os movimentos físicos, o conteúdo das falas, etc. E o repertório se enriquece  com um novo vocabulário dramático. 

Elias Canetti, em 1929, em Viena depois de uma temporada em Berlim,  percebeu que:

“…o mundo não podia mais ser representado como nos romances  antigos, do ponto de vista de um escritor, por assim dizer: o mundo estava  fragmentado, e só a coragem de mostrá-lo em sua fragmentação tornaria ainda  possível uma verdadeira representação dele”. Mas isso “…não significa, todavia, que  seria necessário lançar-se a escrever um livro caótico, no qual nada mais pudesse ser  entendido; pelo contrário, era preciso inventar, de maneira consequente e com o  máximo rigor, indivíduos extremos, tais como aqueles de que já era mesmo constituído o mundo, e colocar tais indivíduos – levados às últimas consequências lado a lado, em toda a sua diversidade” (1990, p. 247). 

Segundo Canetti, essa invenção seria possível graças à metamorfose,  movimento próprio aos poetas, aos criadores:

“Há em sua natureza um processo  misterioso e ainda muito pouco investigado, que constitui a única e verdadeira via de  acesso ao outro ser humano. Tentou-se de diversas formas dar um nome a esse  processo; fala-se ora em intuição, ora em empatia; de minha parte prefiro a palavra  mais exigente: ‘metamorfose’. Contudo, qualquer que seja o nome que se lhe  empreste, dificilmente alguém ousará duvidar de que se trata de algo real e muito  precioso. Vejo, assim, no seu exercício constante, em sua necessidade premente de  vivenciar seres humanos de toda espécie, mas especialmente aqueles que são menos  considerados, na prática desse exercício, irrequieta, não atrofiada ou tolhida por  sistema algum, o verdadeiro ofício do poeta” (idem, p. 282). 

Um mundo refratário à unidade sintética de um conceito, uma voz, um juízo,  uma razão soberana, uma história, uma ideologia; realidade que se prenunciava em  Berlim, nas primeiras décadas do século XX, e que é a nossa, ainda, e mais  radicalmente. Mundo que requer, para representar-se, a multiplicidade de perspectivas  e a polifonia de sensibilidades. Mundo de diferenças, irredutível a personagens-síntese  mutuamente permutáveis (intercambiáveis porque não passariam de expressões  variadas do mesmo). Mundo, portanto, que exige mais de seus poetas – e mais poetas.  E no qual a metamorfose talvez se converta na virtude por excelência. 

Poetas, escritores, mas sobretudo o teatro, sobretudo os atores vivenciam a  metamorfose – até mesmo por ofício, esses últimos.  

Romance-em-cena talvez seja, antes de tudo, a dramaturgia da metamorfose,  porque destaca as passagens entre as vozes – a primeira e a terceira pessoas – e as  mudanças de personagens entre os atores. 

Durante décadas, o teatro politicamente correto era aquele que promovia o desmascaramento da representação, para que o efeito de verossimilhança não  duplicasse outras ilusões. Era preciso, ensinou-nos Brecht – na contramão de  Aristóteles, que destacava o vigor da catarse e, portanto, da identidade proporcionada  pela mímese –, desmascarar a representação e revelar os mecanismos de produção do  efeito mimético: sob o cenário, os bastidores; a face sob a máscara. Impunha-se trazer  à luz e derramar sobre a consciência das plateias a natureza artificial e construída do  espetáculo. Esse método ostensivamente antinaturalista precipitaria o espírito crítico que, logo, logo, descobriria as contradições do capital e a luta de classes sob o fetiche  da mercadoria.  

O teatro de Aderbal Freire-Filho vai além e muito mais fundo. Não  desmascara (Canetti foi um crítico duro e arguto do que chamava “a paranoia do  desmascaramento”, contraface, aliás, da onisciência de quem desmascara, porque  fazê-lo implica conhecer a verdadeira realidade). Não traz à cena o bastidor. Não  mostra a face sob a máscara. Focaliza, sim, a travessia dos atores pelos personagens,  aguçando nossa sensibilidade para a aventura extrema das mutações (descentramento,  compaixão, relativização autocrítica e empatia) que conduzem um sujeito ao lugar de  outro (não é esse o movimento elementar do sentimento moral?) – este lugar existe,  tem um corpo, é uma singularidade irredutível, implica emoções, uma vivência, visões  de mundo, dicções, estilos, uma sensibilidade, memória e expectativas. Nesse trânsito,  o outro, mesmo extremo – ridículo, curiosíssimo, perverso, doido de pedra, genial,  virtuose –, é único e, ao mesmo tempo, permeável, poroso, tangível, próximo, irmão – porque frequentável por um poeta, um ator, minha imaginação, minha disposição  empática, por mim – por que não? 

*** 

O romance de Campos de Carvalho é um achado, não só por ser uma obra magnífica, mas também porque tematiza um dilema arquetípico: a epopeia da viagem – a vida como viagem, como epopeia. A referência mitológica é a Odisseia, poema  atribuído a Homero, onde se narram infortúnios e virtudes de Ulisses, que sofre mas  vence tormentas e monstros para retornar à sua casa e reencontrar Penélope, tecendo,  à sua espera. A unidade fraturada é reconstituída, depois das aventuras mundo afora, nas  quais as faces extremas do desconhecido se manifestam.  

A Odisseia do Púcaro literário e teatral é outra. A pergunta que consome as energias de nossos personagens é outra: existe mesmo, afinal, a Bulgária? Não havendo Bulgária, haveria búlgaros? Em havendo, onde fica e o que é, o que seria? Será aqui, estará abaixo de nós, dentro de nós, a Bulgária? O mundo da Odisseia  reduz-se à casa do personagem-narrador; à arena de Aderbal. Transfere-se para a geografia doméstica do mundo burguês a epopeia cosmológica de Homero, matriz da  dialética civilizacional e das cosmogonias religiosas. No drama burguês, a História clássica que integrava o divino e o humano – a beleza, a verdade e a virtude –, resume-se à história ou relativiza-se na multiplicidade das histórias, restritas ao espaço (demasiadamente) humano, social e cultural, onde não mais impera a unidade. 

Nosso anti-herói não sai de casa. A longa jornada é um projeto adiado. A  viagem é imaginária (uma simulação teatral de uma espécie paradoxal de road-movie introspectivo e solipsista). É o tempo que passa – ante espaço e corpos quase em  repouso; tempo contado, no diário que se escreve e lê, em cena, à maneira trôpega de  uma respiração irregular, ao sabor de pulsações nas quais se chocam o ritmo sincopado de João Gilberto (aqui e agora; o Brasil em raízes; o contexto reconhecido e explicitado) e os estampidos frenéticos de pêndulos-gongos assimétricos (a  temporalidade atemporal do demiurgo dramaturgo). 

As navegações postergadas empurram para fora do centro (da cena) a  descoberta do território procurado (a Bulgária) e da verdade investigada (existe? Há  búlgaros?). E o vazio vem ocupar o centro, reenviando o olhar da plateia, como  espelho, de volta para si mesmo, para si mesma – o que funciona à perfeição no palco arena, circundado pelos espectadores.  

Ulisses não retorna a Ítaca porque não saiu de sua ilha. Mesmo imóvel, seu  mundo caiu de joelhos ante a interrogação que o atormenta. Trouxe de uma visita a  museus nova-iorquinos a dúvida fundamental, que reúne Shakespeare e Descartes sob  o sol da província: se um púcaro búlgaro está exposto na coleção do Museu da  metrópole, haveria Bulgária? Isso valeria como prova inconteste? A capital do  império vale como a matriz que chancela a verdade última da geografia mundial? O  Museu de Nova York é depositário da história global e fonte indubitável da verdade  sobre a distribuição dos territórios do planeta entre nomes, identidades, poderes e  culturas?  

O sol da pátria tupiniquim derrete certezas e autoridades, corrói a matéria  intangível do poder, embrulha a linguagem científica na inteligência indomável da  sofisticadíssima retórica selvagem. Tanto que até mesmo a ousada psicanálise  vienense é surpreendida e submerge, no fluxo torrencial da associação livre que ela  própria autorizara. Curiosamente, o paciente – que é nosso personagem-narrador desloca a técnica analítica e dá um nó no terapeuta, porque, em seu discurso engraçadíssimo, o sujeito são as palavras, palavras que puxam palavras e comandam a  fala, promovendo a autonomia da linguagem e a neutralização da autoria (autoridade),  que perde unidade e profundidade psicológica. Quem governa é a rima, não a verdade  da alma. Quem manda é a superfície sonora, não o inconsciente. Quem dirige é a  música da palavra, não a lógica oculta do sujeito. Dada? Surrealismo? Tropicalismo? O personagem daria uma gargalhada e mandaria as classificações aos museus e às  favas. 

Depois da viagem aos Estados Unidos – e assim começa a peça –, divorciou-se e recolheu-se à solidão da Gávea. Um ermitão pequeno-burguês que lê classificados,  escreve um diário e cobiça a empregada. 

A utopia desloca-se. Bulgária é o não lugar, terra da fantasia, alvo da  esperança, que dita o destino da trupe arregimentada pelo narrador para encontrá-la,  numa expedição arriscadíssima. Os mapas dos destinos épicos traduzem-se nas cartas  de outros jogos. As grandes conquistas evocadas na dicção quinhentista do professor – 

extraordinário personagem que compartilha sua solidão com o narrador –, glórias  imperiais que deram origem ao mundo moderno, são refratadas por lunetas lunáticas  da Gávea: aqui, nos trópicos, na periferia do capitalismo, a aura aristocrática de belas artes e ciências desanda, na feijoada cáustica de nossa banheira. Aqui, as grandes  navegações, conquistas e utopias circundam a sala e, no máximo, se espicham até o  quarto da empregada. O outro monstruoso das teogonias gregas, o deus homérico vira  lata na esquina, vira fulano, beltrano, vizinho, vizinha, o corpo cobiçado à distância,  ao alcance da luneta. A observação astronômica converte-se em voyeurismo pedófilo.  A maior escapada é um tour a Copacabana.  

Não se vai muito longe, girando em torno do umbigo, em circunvoluções  narcísicas. Cruzam-se algumas rotas desgarradas de solitários anônimos – e é só. Mas  isso tudo, que soa tão cruel – e é –, pode ser divertidíssimo e extraordinariamente  estimulante, sobretudo quando rir de nós mesmos aponta para o mundo – o mundo fora  do cativeiro narcisista da imaginação solitária – e nos convoca a sair da sala e entrar  em cena. 

Ficha Técnica do espetáculo: 

Texto: Campos de Carvalho 

Direção: Aderbal Freire-Filho 

Elenco: Raquel Iantas, Augusto Madeira, Cândido Damm, Gillray Coutinho e  Isio Ghelman 

Figurinos: Biza Vianna 

Iluminação: Maneco Quinderé 

Música: Tato Taborda 

Adereços: José Maçaira e Luiz Amadi

Referências bibliográficas:

Borges, Jorge Luis. Ficções. Porto Alegre: Globo, 1970. 

Canetti, Elias. A Consciência das palavras. São Paulo: Companhia das Letras,  1990.

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *