O Rio concretista

O movimento se inicia no Ateliê do Engenho de Dentro, de Nise da Silveira e Mario Pedrosa, afirma socióloga. Em novo livro, ela examina as relações entre artistas e críticos e propõe novas visões para momento chave da arte brasileira

Tecelar (1959), de Lygia Pape
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Por Glaucia Villas Bôas, entrevistada por Juliana Miraldi e Sabrina Parracho Sant’Anna na coluna da Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS) 

Esta entrevista foi publicada originalmente na coluna Coluna Arte e Sociedade, com curadoria de Sabrina Parracho Sant’Anna, no Blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS). Para ler outros textos publicados na coluna, clique aqui

Nos últimos meses de 2022, Glaucia publicou Forma privilegiada. A Arte concreta no Rio de Janeiro de 1946 a 1959. O livro, editado pela 7Letras, reúne os resultados de pesquisa meticulosamente burilados pela socióloga ao longo de quase duas décadas de investigação sobre o Concretismo no Rio de Janeiro. Por um lado, o livro marca a importância para a Sociologia da Arte brasileira de uma abordagem centrada na análise das formas sociais e das trocas recíprocas, na qual a autora orientou uma geração de jovens pesquisadores. 

Por outro lado, a publicação divulga o diligente trabalho de pesquisa que permitiu lançar luz sobre novas interpretações a respeito do surgimento do concretismo no Brasil. Suas reconhecidas reflexões sobre o Ateliê do Engenho de Dentro foram fundamentais para constituir inovadoras perspectivas sobre o movimento e permitem o avanço dos debates sobre o tema. Na entrevista, Glaucia reflete sobre o livro e outras possibilidades para a Sociologia da Arte.

Leia a entrevista na íntegra. 

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Juliana Miraldi e Sabrina Parracho Sant’Anna – Como surgiu a ideia do livro? O que despertou seu interesse neste tema de pesquisa?

Glaucia Villas Bôas – Forma Privilegiada dá continuidade à problemática da mudança, questão sociológica por excelência, que, na minha trajetória intelectual, foi privilegiada para entender transformações que ocorreram no Brasil em meados do século XX. Comecei pesquisando as ideias e interpretações sobre a sociedade brasileira, através dos livros que circularam nos meios intelectuais na década de 1950. Registrei aspectos dessa pesquisa no livro Mudança Provocada, publicado em 2006. Me interessei também pela recepção de autores, como Karl Mannheim e Max Weber, na sociologia daquela época e, depois, dei início à pesquisa sobre as artes visuais no pós-guerra. Creio que o convívio com a minha querida e saudosa colega Ana Maria Galano, que estudava as imagens fotográficas e o cinema, despertou em mim um interesse especial pela visualidade.

Tradicionalmente, as pesquisas em arte têm dois caminhos: análise do contexto de produção e circulação de uma obra/artista/movimento ou análise interna da obra. No entanto, sua pesquisa propõe outro tipo de problemática, centrada nas relações sociais dos envolvidos no movimento concreto carioca. Esta é uma abordagem bastante desafiadora e ainda pouco empregada. Por isso, gostaríamos de saber um pouco mais sobre o que te levou a circunscrever o problema sob esta ótica, como foi o processo de pesquisas (materiais de pesquisa e metodologia utilizada) e, por fim, quais os principais desafios e ganhos que você teve com esta abordagem?

Quando comecei a ler estudos e pesquisas sobre o surgimento da arte abstrata no Brasil (Brasil que na maioria das vezes se circunscreve ao Rio de Janeiro, São Paulo e, eventualmente, a Minas Gerais), notei que o aparecimento da abstração, e em especial da abstração geométrica, era atribuída à industrialização e à urbanização do país, ou à influência dos movimentos de vanguarda europeus do início do século XX, ou ainda, com muita frequência, aliás, até os dias de hoje, à influência do artista suíço Max Bill, que esteve no Rio e em São Paulo e ganhou o Prêmio de Escultura da I Bienal de São Paulo em 1951. À medida que lia, mais e mais me perguntava quem teriam sido os personagens que efetivamente agiram e interagiram para que o concretismo fosse instituído e saísse do mundo das ideias para se corporificar em um movimento criativo, portador de uma nova linguagem artística, bem diferente das que predominavam na época. Eu não estava, de fato, em conformidade com o peso dado às determinações e influências para o entendimento do concretismo na literatura sobre o tema. Na verdade, já vinha questionando essa perspectiva determinista havia algum tempo, deste o livro Mudança Provocada, cujo título é esclarecedor da minha posição. A inquietação em relação a esses problemas aumentava com a continuidade das leituras de Max Weber e Georg Simmel. Forma Privilegiada não traz estampado um quadro teórico e conceitual como fazem muitas pesquisas nas ciências humanas, mas o livro se estrutura no que aprendi com aqueles autores, sobretudo no que respeita ao efeito das trocas recíprocas, geradas na convivência, hipótese elaborada por Simmel na sua sociologia. Os capítulos do livro integram uma sequência de ações e interações que se entrelaçam no Ateliê do Engenho de Dentro, na crítica renovada de Mario Pedrosa a circular na imprensa e nos cursos de Ivan Serpa no MAM do Rio de Janeiro, cujo efeito é o movimento concretista. Em outras palavras, o concretismo resulta de um emaranhado de ações, relações e interações em um contexto histórico, político e artístico, no qual o moderno se traduz pelo grau cada vez maior de intelectualização.

Daí as formas, os pontos e as linhas no lugar da figura ou assunto. O ganho ou vantagem dessa abordagem? Penso que ela revolve a memória do concretismo na cidade do Rio de Janeiro, oferecendo uma versão pouco familiar e tradicional, ao recusar julgar o movimento artístico a partir de um padrão que se supõe existir em países “centrais”, “desenvolvidos” ou “adiantados”, termos cujo uso varia de acordo com o contexto histórico intelectual. A consequência dessa abordagem implícita ou explicitamente se repete na afirmação do atraso de nossas coletividades, ideias e instituições e no tocante à produção artística de que estamos falando.

Você mostra que a narrativa oficial sobre o surgimento da arte concreta apaga ou torna lateral uma série de fatores que sua análise recupera a fim de demonstrar a complexidade e a multiplicidade que compõem o bom entendimento da arte concreta. Gostaríamos que você contasse um pouco sobre esse jogo entre memória e esquecimento, como é a narrativa oficial e quais críticas e revisões a sua obra propõe.

Em nenhum momento me refiro a uma narrativa oficial do concretismo. A definição dessa oficialidade exigiria uma sistematização específica das minhas leituras da produção textual e visual sobre o assunto, além de reflexão sobre a própria noção “narrativa oficial”. Apenas construí uma questão de trabalho, observando que a memória do concretismo carioca tem sido pouco revisitada, repetindo-se em dezenas de textos e imagens. Além disso, circunscrevi minha pesquisa à cidade do Rio de Janeiro. E corri o risco de não me referir ao movimento paulista, como afirmo na Introdução. Enfim, não é desconhecido o fato de que a memória se constrói mediante um processo de seleção, e que a seleção é um dos elementos mais importantes da representação do passado. Depois da seleção, a repetição de um traço, atributo, qualificativo é imprescindível para que aquilo que se deseja preservar seja retido na memória coletiva e individual. No entanto, se a memória não for revisitada, de quando em vez, corre-se o risco de confinar uma ideia, um evento, uma imagem, um movimento aos limites de um discurso ou de uma imagem. No decorrer do tempo, sentenças e juízos que permanecem intocáveis acabam mantendo a memória em um círculo fechado. Eis um dos motivos pelo qual julguei relevante pesquisar o surgimento do concretismo carioca. Desejava contar uma história do concretismo que oferecesse alternativas para rememorá-lo.

Qual a importância do concretismo do Rio de Janeiro para a arte contemporânea brasileira e, se pudermos ampliar, para a história da arte?

Penso que o concretismo, incluindo o que se denomina neoconcretismo, é uma das portas de chegada da arte contemporânea. Quem discute essa questão com propriedade e de forma precisa é o filósofo Pedro Erber, em Breaching the frame. The rise of contemporary art in Brazil and Japan, de 2015. Em Forma privilegiada, meu interesse foi outro. No que se refere ao futuro, ao tempo que adveio depois do movimento, meu objetivo foi mostrar no Posfácio (muito tempo depois) o que aconteceu com uma boa parte das obras do concretismo carioca e paulista, adquiridas pelos colecionadores Adolpho Leirner e João Sattamini, que hoje se encontram, respectivamente, no Museu de Belas Artes de Houston, no Texas, e no Museu de Arte Contemporânea, situado em Niterói. Neste trecho do livro, sugiro que o deslocamento das obras para aqueles museus lhes conferiu novas camadas de sentido, entre outras razões, devido às tensões e problemas entre as diretrizes dos museus e a representação, o lugar e valor das coleções na história da arte. Ao longo do tempo, as obras da arte concreta se impregnaram de uma multiplicidade de realidades históricas e possibilidades de sentido, que renovam seu estatuto de arte e garantem sua inscrição no sistema histórico da arte. Nesse ponto, há ao lado do planejado, programado e esperado, o imprevisível e o fortuito. A imprevisibilidade da vida em sociedade, tão enfatizada por Max Weber, tem sido mais acatada, ultimamente, depois da crítica pós-moderna à noção moderna de tempo e ao iluminismo.

Você faz um trabalho que envolve pensar conexões, relações de filiação, alianças a fim de identificar as condições sociais de produção de um movimento estético que, mesmo com nuances, encontra certa homogeneidade na heterogeneidade; contudo, seria interessante pensarmos nos conflitos, nas lutas, nas oposições. Como você trabalhou com esse fator de disjunção na sua pesquisa? Como a oposição pode ter sido também um fator determinante, afetivo e intelectual, para o surgimento da arte concreta?

Nas ciências sociais é muito frequente o uso das oposições para definir campos de interesse, mostrar conflitos, lutas e desavenças. Na pesquisa que deu origem a Forma Privilegiada, no entanto, escolhi trabalhar com a ideia de que os conflitos e desacordos convivem com a cooperação e as alianças de várias maneiras. Poderia enumerar alguns conflitos ou discordâncias que aparecem nos capítulos do livro, como, por exemplo, no convívio de quase cinco anos de Mário Pedrosa e Nise da Silveira, no Ateliê do Engenho de Dentro. Há entre a médica e o crítico não só interesses comuns relativos à importância do lugar, mas uma grande distância no que respeita as relações entre a arte e a loucura. Nise da Silveira manteve durante muitos anos uma posição de visível desacordo com os métodos violentos utilizados pelos médicos no tratamento da esquizofrenia, e não foi reconhecida no campo da psiquiatria. Enquanto isso Pedrosa mantinha uma acirrada polêmica, que durou dois anos, com os críticos de arte cariocas e paulistas a respeito da arte dos esquizofrênicos. Relato essa polêmica no segundo capítulo do livro, assim como destaco a discordância de Pedrosa com os modernistas brasileiros, a respeito da apropriação da noção de nacionalidade no campo da arte.

Entre os alunos de Serpa havia rivalidades e discordâncias. Ivan Serpa não foi convidado para assinar o manifesto neoconcreto em 1959; Gullar afirma em entrevista que sempre discordou das ideias de Pedrosa, fundadas na teoria da Gestalt. Outros conflitos são apresentados no posfácio sobre os colecionadores da arte concreta. Leiner é acusado de vender sua coleção para o museu de Houston, provocando enorme polêmica. Sattamini se indispunha com a direção do MAC. As tensões, brigas e conflitos se apresentam em Forma Privilegiada, apenas não estruturei o livro com base nas pelejas e oposições, mas, como disse, meu intento foi destacar um conjunto encadeado de ações e interações – incompletas, imperfeitas, conflitivas e cooperativas – que lograram criar o concretismo.

Na introdução ao livro, há uma ênfase muito importante da pesquisa na reflexão sobre a sociabilidade dos artistas, sobre o modo como constituíram vínculos e relações sociais, grupos e associações, dando origem a novas formas artísticas. A organização dos capítulos se constitui a partir dos espaços em que essa “conversão” se deu: o Ateliê do Engenho de Dentro no Centro Nacional Psiquiátrico Pedro II; a crítica de Mario Pedrosa e os encontros em sua casa; as aulas de Ivan Serpa no Museu de Arte Moderna do Rio. Nos anos 1950, a produção da sociabilidade parece se dar localmente por atores sociais que se encontram no espaço da cidade. Como você vê as relações no mundo da arte hoje? Você acha que houve alguma mudança nesse sentido ou o mundo da arte ainda está enraizado no mundo da vida?

Sim, claro, as mudanças são notáveis, mais ainda depois da pandemia da Covid-19. O uso cada vez maior da internet modificou profundamente as interações. Os encontros presenciais passaram a conviver com os encontros virtuais. Mas as mudanças vão bem além disso. Guilherme Marcondes do Santos discute, em Procuram-se artistas, publicado em 2021, os desafios dos jovens artistas, que, em início de carreira, se submetem a inúmeros editais e buscam galerias que os acolham e apontem o caminho do reconhecimento e do sucesso. Muitos almejam fazer uma residência fora do país. Não vivem mais a circular nas casas dos críticos, até porque a crítica de arte se faz através de outros discursos sobre a arte. Outro trabalho que mostra as mudanças no campo da arte é a tese de doutorado de Ana Miranda sobre os coletivos de arte. Atualmente, há obras que são criadas, exibidas e vendidas virtualmente. Mas, por incrível que pareça, os artistas ainda se reúnem em vernissages e em torno de algum de seus professores nas faculdades de belas artes. O mundo da arte, seja presencial ou virtual, faz parte da vida social.

No seu livro e na sua pesquisa, existe uma questão que acho muito importante do ponto de vista da narrativa sobre o movimento concreto no Rio de Janeiro, que é a retomada de atores que estavam um pouco apagados da construção dessa nova forma artística, como Almir Mavignier e Nise da Silveira. No final do livro, é mencionada a coleção de Murilo Mendes. Sempre me pergunto sobre a importância desse outro grupo, composto por Murilo Mendes, Árpád Szenes, Vieira da Silva e outros, para a formação daqueles jovens artistas, mesmo que suas posições fossem bastante divergentes. Você menciona a influência deles na formação de Mavignier, mas tenho curiosidade em ouvir mais sobre essas relações.

Na construção do concretismo, retomo, na realidade, os atores que participaram do Ateliê do Engenho de Dentro, do qual faziam parte além de Mavignier e Nise, Ivan Serpa, Palatnik, Emygdio de Barros, Raphael Domingues, Adelina de Barros, entre outros. Esses últimos, internos no hospital psiquiátrico, onde se localizava o Ateliê, não são lembrados como atores da história do movimento, talvez, porque seu trabalho artístico não atenda aos requisitos da abstração concreta. Mas não é isso que proponho no livro, e, sim, como o convívio com eles deu fundamentos à crítica de Mario Pedrosa e à conversão de artistas à abstração. Esta é uma novidade do livro. Nele, o movimento concreto carioca não se inicia com o Grupo Frente. Quanto à referência breve a Murilo Mendes, figura importante no desenrolar da história do concretismo, ela não o contempla devidamente. Não me ocupei dele nem me detive na formação individual dos artistas concretos. Aqueles que menciono, como Ivan Serpa e Palatnik, Hélio Oiticica e Lygia Pape tiveram, quando muito jovens, uma formação à margem da Escola de Belas Artes e dos ateliês dos pintores modernistas. Uns aprenderam desenho em curso oferecido na Fundação Getúlio Vargas, outros nos cursos do MAM, outros ainda com artistas estrangeiros que se refugiaram no Brasil durante a guerra como Árpád Szenes, Maria Helena Vieira da Silva e Axl Leskoschek. Mas Lygia Clark, por exemplo, já tinha estudado com Burle Max e com Fernand Léger, Árpád Szenes e Isaac Dobrinsky em Paris, antes de se juntar ao grupo de artistas do MAM. No museu carioca, lado a lado com os concretos estavam os artistas abstratos informais como Fayga Ostrower, que ensinou a muitos jovens, inclusive Lygia Pape. Isto tudo para não falar dos paulistas, que estavam ali atuando, ao mesmo tempo, com seus críticos e artistas, colaborando e entrando em atrito com os cariocas. Mas isso já é assunto para outro livro.

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