Aderbal e a baleia

Na segunda resenha em homenagem ao diretor, morto no dia 9, Luiz Eduardo Soares analisa sua linha de fuga ao impasse político entre o pacto fáustico e o idealismo inócuo. A anti-terceira-via é Moby Dick: a infinita caça ao monstro, a morte como norte

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Por Luiz Eduardo Soares

Redigida originalmente em 2009, esta resenha é republicada como homenagem de Luiz Eduardo Soares e de Outras Palavras ao diretor de teatro cearense Aderbal Freire-Filho, falecido em 9 de agosto de 2023. Para ler as outras resenhas, clique aqui

Moby Dick: O Anti-Fausto de Aderbal

Por Luiz Eduardo Soares

Se me perguntarem o que é teatro político – se é que esta categoria faz sentido, uma vez que supõe um improvável teatro apolítico –, eu diria, sem hesitar: aquele que encena Fausto, em qualquer uma de suas ilimitadas encarnações. Porque este é o dilema político, ou melhor, o dilema, por excelência, da política pós-muro: o pacto com o diabo, entendido como a assimilação de condições e a mimetização de práticas cuja negação fundamentou a identidade do (anti)herói. Seu destino, no poder, é converter-se no outro que lhe dera sentido por antagonismo. 

Nas palavras sábias e céticas de Max Weber: a ética da convicção sucumbe ante os imperativos da ética de responsabilidade. Para governar, impõe-se renunciar aos valores e render-se aos limites ditados pela realidade, que se confunde com a lógica do capitalismo globalizado. 

Antes, visões de mundo e valores se chocavam e a luta pelo poder era imantada pela expectativa redentora de transformações estruturais. Assumir o governo correspondia à conquista do poder (quase demiúrgico) de desfigurar o Estado herdado e conformar o real à imagem e semelhança das ideologias. 

Hoje, a dinâmica do mercado é refratária aos espasmos do voluntarismo, às intervenções matriciais da política. No máximo, autoriza correções de rota e alguma regulamentação perfunctória, sob pena de fazer desabar sobre a sociedade uma tempestade devastadora, que a condenaria a anos de prostração, sofrimento, desemprego, desinvestimento, pobreza, colapso da ordem institucional e mais desigualdades.

Eis a equação que não fecha: aplicar-se a cumprir convicções, sacrificando a governabilidade e fechando as portas para as mudanças desejadas, ou adequar-se ao realismo, postergar fantasias, negociar com Mefistófeles, aliar-se aos inimigos e resignar-se a gerenciar a máquina sem tirá-la dos trilhos, em nome da governabilidade? Na segunda hipótese, manter-se-ia o poder, entretanto esvaziado de substância e sentido. Na primeira, a fidelidade a princípios o desconstituiria. Que fazer? De novo, como sempre, a pergunta mais dura e decisiva.

Estão aí, no meio de nós, no meio da rua: Fausto e suas trevas. O dilema hamletiano resolve-se na direção do que há de mais sombrio.

Por isso, Ahab é o personagem contemporâneo mais extravagante, surpreendente, provocativo, intempestivo, inadaptável. Ele é Fausto às avessas e reina no teatro de Aderbal, representando a antítese do homem de poder contemporâneo. Teatro anti-político, dentes nos nervos de nosso tempo: negando a política tal como hoje constituída, em seu círculo aprisionante, Ahab protagoniza a politização radical dessa anti-política que dramatiza.

Personagem fascinante dos absolutos inconciliáveis, faz da caça à baleia uma luta interna, externa, mitológica, teológica, arquetípica. Comandante de navegação infinita, cujo ponto de inflexão (a morte, enfim) não passa de artifício para um confronto que transcende sua própria vida. O combate é pessoal mas também universal. 

A barca dos homens se dirige ao abismo insondável da violência sem cautelas, sem prudência, sem apelo às virtudes burguesas que se confundiriam com o espírito esclarecido da humanidade. Ahab afunda com seu inimigo. Não se apresenta como modelo. Resiste aos argumentos da razão, às sugestões do bom senso, aos conselhos dos amigos, às seduções da rotina apaziguada. Renuncia à vida na terra. Persegue os sinais de Moby Dick através dos oceanos. Enfrenta o monstro para destruir, com a baleia, as tenazes de seu próprio ódio que o atormentariam até o fim do mundo.

Volto, então, à pergunta: o que é teatro político, hoje? Moby Dick, reiventado por Aderbal Freire Filho e encenado por um grupo de atores notáveis (Orã Figueiredo, Isio Ghelman, André Mattos), liderados por Chico Diaz em performance excepcional. Cenário, iluminação, figurinos, músicas: trabalhos preciosos, cada um à sua maneira.

Ahab não nos ensina a resistir a Fausto. Apenas descreve a rota de um alucinado inconformismo. Mas a derrota de Ahab (ou o preço letal de seu triunfo) não redime Fausto, isto é, não salva a opção mefistofélica. Nada disso. Moby Dick de Aderbal desvela com a poesia de sua escrita dramatúrgica o caráter agonístico e insuperável das aporias políticas de nosso tempo, para homens e mulheres que têm o privilégio de testemunhar sua montagem do clássico de Melville, no teatro Poeira, no Rio de Janeiro.

Mais uma viagem de Aderbal, depois das travessias imaginárias e memoráveis do Púcaro Búlgaro. Antes, a navegação a país nenhum. Agora, ao fundo da noite líquida. A nossa.

As viagens fascinam a imaginação humana porque dialogam[1] com nossa condição elementar e arcaica, primitiva e radical[2]: o prosaico e misterioso estar-aí, em um lugar (entre outros, no tempo), qualquer que ele seja. O mistério está no fato de que esse lugar não é outro qualquer – o que o envolve em névoa mística porque lhe confere um caráter enigmático: expressaria algum desígnio, um destino oculto, uma vontade de quem dispõe das peças do xadrez cósmico? Por que aqui e não alhures? Ante bilhões de possibilidades de existir e não-existir, por que exatamente hoje, aqui, existir entre estes seres? E se a própria pergunta é idiota[3], que inteligibilidade atribuir ao acaso (enquanto tal, sem conjurá-lo)? 

Sair, romper, deslocar-se, eis aí movimentos que implicam transformar-se e alterar os termos dos contratos sociais, situando em perspectiva ligações primárias e significados herdados. Crescer, afastar-se da mãe, distanciar-se da matriz, apontar o nariz em direção à morte, vivenciar o poder e a finitude, ousar constituir a singularidade de uma pessoa e uma história: não é essa a fortuna de uma narrativa biográfica? Ou seja, transformar o dado (o lugar e o ser que nos foram dados) em objeto de arte: deslocamento e invenção; astúcia e engenho; artifício e audácia; sabedoria, habilidade e imaginação. E o destino constrói-se, fortuna e virtu. Finalmente, retornar: à matriz renovada pelo véu de novos significados; às cinzas; mas também ao que permanece fiel à origem sob as mutações e metamorfoses, a despeito das aventuras e dos cantos de sereia, e dos monstros encontrados no caminho. Eis a fórmula da viagem arquetípica: percurso, vida, movimento de autocriação em seu ímpeto histórico, que nos faz agentes, protagonistas, heróis épicos, mas também patéticos sonâmbulos tateando sombras em cavernas. Tateando nossos limites, cenários (externos a nosso controle) que circunscrevem nosso poder – e que, em círculo (ou espiral?), nos permitem experimentar a repetição, o eterno retorno, que é recomeço, negociação inventiva com nós mesmos.

Por isso, a volta pode ser, paradoxalmente, distanciamento da origem – distanciamento da origem aqui entendida como fonte da gravitação que destrói a diferença; diferença sem a qual se eclipsa a identidade humana.

Desde Ulisses ou desde Homero, a Odisseia é o modelo da reflexão sobre a dialética da vida e da morte, é a metáfora para os abismos do sujeito e da condição humana, é o símbolo dos jogos infernais e seminais do eu e do outro, do silêncio e da linguagem, do entendimento mútuo (o consenso, o contrato, o convívio ordenado e legítimo, a Polis, a Justiça) e da ruptura, a diferença, o desvario, o desvio, o dissenso, a desmedida (hybris contra ratio).

Ulisses vence os desafios, sobretudo quando descobre que sua natureza não é alheia aos monstros – esses monstros cujo poder de destruir não é indiferente ao desejo do próprio objeto de sua violência. Ulisses ata-se ao mastro, portanto, e luta consigo mesmo. O herói retorna à sua mulher, Penélope, e à sua ilha natal, Ithaca. Perfaz a travessia. A epopeia se cumpre. O círculo se fecha, diferenciando-se da origem e a restabelecendo. A vida recomeça e triunfa. 

Fausto, não; Ahab, não. 

Fausto não se amarra ao mastro. Entrega-se ao canto de sereia de seus demônios internos e negocia com o que se lhe afigura como a personificação do mal: sacrifica a alma para alcançar a glória. Troca o valor pelo poder. Sua viagem é outra. O fim converte-se em meio espúrio e utilitário, a serviço da vaidade. Apegando-se ao meio que lhe garante a vitória fugidia, desvia-se de si, transforma-se no outro que ambiciona ser, esse outro-imagem idealizada do poder e da grandeza sobre-humana. Com a conspurcação do fim (o desenvolvimento de seu valor; o aprimoramento de sua “alma”), perde-se a origem, isto é, rompem-se os mapas que o poderiam reconduzir à origem, para restabelecê-la, reconfigurá-la, promovendo a mudança virtuosa, quer dizer, aquela que se daria em conformidade com a natureza humana e com a raiz que vincula Fausto a seu lugar e a seus limites. A morte triunfa.

É outro o destino de Ahab, agarrado em seus nervos e em sua imaginação por Moby Dick. Arpoado (e alucinado) pelo destino que o condena à caça da baleia assassina. Destino que constrói com esse misto misterioso de fascinação e ódio, horror e encantamento. Ancorado no solo inamovível da obsessão, confere à figura monstruosa do Leviatã marinho a representação mais pura e absoluta do mal.

Ao contrário de Ulisses, Ahab não retornará. Em contraste com Fausto, jamais admitirá negociar com o mal. Ainda que o confronto lhe custe a vida. Salvará sua alma, sacrificando-se. Sua navegação será infinita. A ligação cosmológica com seu antagonista mítico já lhe custou a vida, as relações, a casa, a família, o amor, o repouso, o reconhecimento, o acolhimento. O movimento incessante por oceanos profundos, guiado por estrelas e intuições sublimes, corresponde, paradoxalmente, a uma colossal fixação: infinita imobilidade. Ahab perdeu a vida. Sua sentença foi decretada quando decidiu selar o pacto contra o diabólico. Meios e fim se sobrepõem no universo do anti-herói: homem da convicção, que não sobrevive senão no plano do valor, refratário ao mundo das negociações, das concessões, da resignação, Ahab entrega-se em holocausto para levar consigo ao fundo escuro do mar seu outro absoluto.

O que fez Aderbal e seu excelente grupo de atores com essa trama de contrastes? Contou-nos a fábula da anti-política, como antídoto ao veneno da naturalização da política, tal como realmente existente. Antídoto à política entendida e praticada como a rendição fáustica ao realismo inevitável, segundo o qual o preço do poder é a renúncia à identidade e aos valores; o custo da vitória é derrotar o inimigo para converter-se no que ele foi; o preço da glória é o pacto com Mefistófeles. Mas essa crítica poderosa porque radical não implica ingênua adesão ao purismo dos valores; não significa que se suponha possível resolver o impasse com simples reafirmação de fidelidade ideológica. Moby Dick não é um hino ao terror, à violência, ao confronto em nome do bem. Afinal, a loucura de Ahab nada tem de doce e o desfecho não recomenda sua escolha. Aderbal nos deixa a sós com a insuperabilidade das aporias do poder. Contra todas as simplificações e as soluções fáceis. Tampouco se trata de uma celebração do ceticismo e da apatia. O teatro de Aderbal põe em marcha a paradoxal conclusão de Brecht: “como todos vimos, não tem saída. Mas tem de haver”.

Notas

1. Reconhecem-na e a negam, brincam com ela, a antagonizam e reforçam, infundem-lhe sentido e a dissipam, transcendendo-a e a interpelando.

2. Nos sentidos próprios e não judicativos dessas palavras.

3. Também no sentido original da palavra, que, no caso, não deve obscurecer sua face irônica e crítico-judicativa.

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