Cinema: A solidão do pampa

Casa vazia, de Giovani Borba, é uma narrativa seca sobre um homem abandonado pela família, desempregado e ladrão de gado. Na vertigem horizontal da planície, filme mostra um peão fora do jogo devido à monocultura de soja – e sua mecanização

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Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema

Um filme ambientado no pampa que não é um épico gauchesco, nem uma celebração nostálgico-folclórica da cultura da região, mas sim um olhar crítico e sensível aos dilemas que acossam hoje o homem do campo. Assim pode ser definido Casa vazia, de Giovani Borba, que entra em cartaz nos cinemas nesta quinta-feira.

Na região de Santana do Livramento, perto da fronteira com o Uruguai, Raul (Hugo Nogueira), um homem de meia-idade, oscila entre a difícil busca de um emprego e a participação num bando de ladrões de gado. Ao voltar de uma lida, encontra a casa vazia: a mulher e os filhos o deixaram, não se sabe ainda se de modo temporário ou definitivo.

Esse drama individual do protagonista – de quem a câmera nunca se afasta muito – é narrado de modo a iluminar as transformações verificadas nos últimos tempos na campanha gaúcha, a par da persistência de antigos valores e crenças. Raul, de certa forma, é um homem que não se encaixa, perdido entre dois mundos. Um peão fora do jogo.

As “novidades” surgem ora de maneira sutil, como as torres de energia eólica despontando no fundo do quadro, ora ostensivamente, com o avanço da monocultura de soja, sua mecanização e a homogeneização monótona da paisagem. Numa fila de candidatos a emprego, o capataz pergunta: “Alguém aí tem experiência com GPS de colheitadeira?” Como ninguém tem, ele dispensa todos, inclusive Raul.

Mundo horizontal

A narrativa é lacônica, seca, condizente com o temperamento do protagonista e com seu contexto agreste. A fotografia de Ivo Lopes Araújo explora com eficácia a extensão da planície (a “vertigem horizontal”, na definição do pampa pelo escritor francês Drieu de La Rochelle) e, mais que isso, o contraste violento entre a luminosidade cegante do dia e a escuridão quase absoluta da noite, com a virtual ausência de luzes artificiais.

Essa escuridão, que incita o espectador a completar pela imaginação (com a ajuda dos sons) aquilo que a imagem sonega, mostra sua força logo na primeira sequência. No breu da planície, ouvimos os mugidos de bois e vemos um par de faróis de carro vindo do fundo do quadro. Segue-se uma ação confusa de vultos na penumbra, que só aos poucos identificamos como o roubo e o abate de uma parte do rebanho.

É um mundo bruto e essencialmente masculino, ainda regido pelos valores da virilidade, tanto de um lado da lei como do outro, e onde ainda se recorre a benzedeiras e se acredita na lenda do Negrinho do Pastoreio. Um mundo em que estancieiros armam milícias para defender sua propriedade contra “índios, sem-terra e ladrões de gado”. Mas é também um mundo em transformação, em que uma mulher pode arrebanhar os filhos e deixar o homem que não a satisfaz. O linguajar característico da região – uma vertente muito particular do “portunhol” – contribui para o frescor e o encanto do filme.

Uma circunstância que adensa o drama de Raul na busca por trabalho e pela família perdida é sua tentativa de parar de beber, que reaparece (sem ênfase, como que naturalmente) em várias cenas, a ponto de nos perguntarmos se não terá sido a bebida o motivo do afastamento da mulher.

O caráter algo indecifrável do protagonista deve muito à caracterização precisa do ator Hugo Nogueira, um ex-peão de fazenda em seu primeiro papel no cinema. Com seu rosto duro e vincado, sua escassez de gestos e palavras, ele expressa uma solidão irredimível. Solidão de homem do pampa, com suas lonjuras e seu silêncio.

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