Na metrópole infectada, uma normalidade melancólica

É a hora em que as panelas batem, mas aqui não há panelas. No centro de SP, nove da noite, há ainda movimento. A polícia nas ruas, os sem-teto nas escadas, os camelôs vendendo cigarros. Estranha rotina, à beira do iminente desastre social

.

Tarântula 4

3 de abril 2020

Eram 10h45 quando desci a avenida Liberdade ei direção ao centro. Muito entregador, sem-teto, terceirizados e garis em atividade. Passei pelos cortiços da rua Condessa de São Vicente e vi boa atividade nas calçadas, umas 50 pessoas.

Desci a avenida Brigadeiro Luiz Antônio, e vi um senhorzinho nissei de joelhos nos canteiros do viaduto que leva à Praça João Mendes. Ele arrancava o mato e cuidava da vegetação pública. Na João Mendes vi quatro prostitutas de pé, e segui para a Praça da Sé.

Lá, vi umas 400 pessoas: os sem-teto, miseráveis, pregadores evangélicos, garis, e desterrados de costume.

Mas notei dois corpos desacordados no chão. É muito comum na cidade de São Paulo ver gente esparramada no chão, desassistida, em estado incerto de saúde. Mas chamou-me atenção que, desta vez, nos dois casos, tinha um policial checando a ocorrência.

Desci a ladeira da General Carneiro e notei que havia camelôs ao pé da passarela que leva ao terminal Pedro II. Vendiam havaianas, cigarros, bebida, amendoim, cofrinhos de cerâmica em forma de porquinho, churrasco, batata frita. Um vendedor de CDs de música tocava sucessos da Jovem Guarda.

Caminhei de volta à Liberdade, e passei pelo cruzamento da Major Quedinho, São Luís e Consolação.

Enquanto esperava o sinal abrir, vi uma senhora negra que orava ao mesmo tempo que impunha suas mãos na cabeça de um homem sem-teto, ajoelhado no chão junto a seu cobertor cinza. Ao final, ele levantou e a abraçou. Ao meu lado, um jovem negro ciclista entregador vestia bermuda e top de lycra, justinhos, montado em sua bicicleta.

Subi a Major Diogo e fui para casa.

7 de abril 2020

Saí pela avenida Liberdade às 19h15. Fui em busca de reações bolsonaristas aos sonoros panelaços que são diários em certos bairros de São Paulo. Tinha chegado à minha bolha que em Santa Cecília os panelaços vinham dando lugar a manifestações bolsonaristas, tanto na forma de gritos como na forma de agressão às pessoas nas ruas.

Nas redes, uns tais “Soberanistas” lançaram a “Black Week”, ou “Bolsonaro Week”, conclamando todas as lojas a abrirem, garantindo que todos os estabelecimentos iam oferecer preços vantajosos ao consumidor. O presidente busca erodir a quarentena aos poucos.

Chequei perto de casa para ver se o comércio estava aberto de tarde, mas não vi nada de significativo.

Esperava chegar a Santa Cecília em tempo para os panelaços, que têm irrompido ao redor das 20h30.

Na frente do hospital público perto de casa, vi na calçada uma mesa com 4 homens jogando baralho. O ponto de táxi tinha dois motoristas e umas 15 pessoas sortidas animavam a rua.

Desci até a rua Condessa de São Joaquim e a percorri-a até a avenida Brigadeiro. Os cortiços da Condessa esparramavam hoje menos corpos na rua que de costume. Vi os mercados maiores abertos (Dia etc), mas também os micro-bares de portada. Vi a viatura ‘comunitária’ da PM no viaduto, e também os travestis na esquina da rua Coroborós. Senti o cheiro doce da maconha no ar.

Desci até o hospital Pérola Byington e tomei a rua Santo Amaro até a Câmara Municipal. Ouvi um um vigoroso mas solitário “Fora Bolsonaro!”. Pendurado na fachada de um estreito sobradinho, um plástico que trazia: “A Bonita. O cabelo é poder. Celular 91xxxxx”.

Segui até o cruzamento da Augusta, Major Quedinho, São Luís e Consolação. Na espera de abrir o sinal, vi um moço que fazia malabares de fogo na faixa em frente aos carros que aguardavam o semáforo abrir para o fluxo direcionado ao centro. O moço era acompanhado de um outro jovem que fazia percutir seu atabaque, fazendo a trilha sonora para o espetáculo visual. A luz pública noturna iluminava também os ciclistas entregadores, muitos, além dos sem-teto e sem-rumo que transitavam por lá.

Lembrei dos muito jovens que tenho visto recentemente nas estações do metrô, tocando ao violino ou ao violoncelo melodias do repertório erudito – frequentemente são moços e moças negras periféricas. Certamente são egressos dos programas privados de orquestras clássicas nas periferias e nas favelas. Os programas foram interrompidos, como é usual em iniciativas privadas, e agora temos músicos híper-qualificados entretendo os distraídos usuários do transporte público com melodias favoritas do repertório clássico, truncadas para passantes indiferentes. Assim está definida toda a indústria criativa, hoje em desmonte.

O cenário desse cruzamento, à sombra do que hoje é o Hotel Jaraguá e já foi o jornal Diário Popular, estava populado por ciclistas entregadores, tão ubíquos e numerosos nos dias de hoje. Perto de mim, um painel luminoso de LED da CET informava: “Não coloque a mão no rosto. Coronavírus: previna-se”

Atravessei a Praça da República. Na esquina onde a rua do Arouche encontra o Largo de mesmo nome, homens, sem-teto, catadores e carroceiros.

Tenho a impressão de que os mais desesperados não serão os primeiros a saquear, mas serão os primeiros a morrer. A Cracolândia está desassistida e vulnerável, cercada por um aparato policial que celeremente mataria a multidão e prontamente faria desaparecer os corpos. O aparato já está planejado e orçado, só falta executar.

A repressão à aglomeração atende ao medo do saque. Perto de casa, notei que já há uns 3 a 7 sem-teto que se aglomeram à porta do Diazinho que tem numa pracinha. A ontologia do saque parece incluir pressão numérica na frente o estabelecimento a ser atacado, tipo uma massa crítica que precisa acumular antes que haja a liberação das mercadorias. O saque prece ser resultado de alguma equação de desespero, iniciativa e ocasião.

Segui em direção ao Largo Santa Cecília e vi dois seguranças particulares na entrada que dá acesso ao minhocão. Notei que seus jalecos traziam “Fonseca’s”. Recordei que a “Gangue do Fonseca” era, se me recordo bem, uma gangue de classe média que praticava a violência nos anos 1970-1980. Vi depois que eles se reinventaram no Jiu-Jitsu nas décadas seguintes, e mais recentemente numa empresa de segurança.

Alcancei o Largo Santo Cecília perto das 20h15 e busquei uma Seleta na rua das Palmeiras, esperando o panelaço e reação bozonarista das 20h30. Achei uma a R$7 e fui sentar na esquina da alameda Nothman.

Um tanto desapontado, nada ouvi e decidi caminhar depois de uns 15 minutos. Desci em direção à Marechal Deodoro e cheguei embaixo do Minhocão, na altura da alameda Angélica.

Tinha um maluco tocando uma guitarra e cantando em algum andar do prédio em frente, caixa de som na janela. Não reconheci a letra, mas os acordes tocados eram meio genericamente dos Beatles na fase Abbey Road. Mas, na canção seguinte, reconheci a letra de Iolanda, que nos é familiar pela voz de Chico Buarque. O efeito geral era humanizante e fofo. Mas separado da realidade na rua.

Embaixo do viaduto, bares populares abertos, carroceiros estacionados, sem-tetos e sans-cullotes dormindo, homens sem rumo perambulado pelas vias. Na viga de cimento vi um cartaz impresso “Pensão para rapazes. Pernoite R$15 Semanal R$105 Quinzenal R$225 Mensal R$390”, outro escrito à mão “Para vereador vote Osias ”, uma pichação “mais amor” e uma placa de sinalização “ciclista, cuidado com os pedestres”.

Saí fora e busquei o Teatro Municipal. Os sem-teto acampados, os sem-rumo nas escadarias. Passei pela Praça do Patriarca e desci a ladeira da General Carneiro, alcançando o pé da passarela que leva ao Terminal. Vi uns 5 ou 6 camelôs com suas pequenas bancadas: bebidas, cigarros, churrasco. O Terminal recebia ainda um bom número de usuários, muitos com carrinhos de carga ou mochilas nas costas, em busca da Zona Norte. Notei que o prostíbulo “A Casa das Primas” estava fechado. O lixo no chão indicava que o maior movimento tinha passado e que estávamos em ritmo de encerramento.

Eram 21h quando peguei uma Velho Barreiro com limão de um vendedor com seu isopor e fui sentar bem junto às catracas da entrada do terminal. A passagem dos precários, jovens do telemarketing, trabalhadoras e descamisados pelo local ganhava um ar de Blade Runner ao som dos anúncios oficiais irradiados pela robótica voz feminina do alto-falante, que alertava para os perigos do coronavírus.

Muitas das mesinhas ou bancas de venda eram manejadas por famílias e não por vendedores solitários.

Um menino negro arisco de uns 5 anos brincava com caixas de papelão do local. Ele veio me perguntar “o que você está escrevendo?”. Eu disse “escrevo a história do mundo! Qual é o seu nome?”, perguntei. “Isaac”, ele disse. Escrevi o nome dele como eu lembrava da Bíblia no caderninho que levava às mãos, esperando que ele reconhecesse o seu próprio nome grafado, mesmo sabendo que é usual que esse nome tenha outras grafias.

Ele exclamou “Eu sei escrever meu nome!”. Ele tomou o caderninho e o lápis que eu tinha nas mãos e desenhou, caprichado, uma figura que era uma espécie de diagrama na forma de um coração feito de linhas retas.

Ela ainda confirmou, repassando o lápis por cima da cada linha que tinha desenhado ao mesmo tempo que entoava: “I-sa-que”.

Uma lufada de vento levantou o lixo do chão e derramou no cimento pisado o que restava de minha cachaça com limão. O menino logo saiu fora e focou sua atenção alhures.

Eu olhei a figura no caderninho e chorei muito sob a luz pública amarela.

Caminhei em direção à Liberdade passando pela Praça da Sé, achei uma cachaça atroz no caminho e segui para casa.

Leia Também:

Um comentario para "Na metrópole infectada, uma normalidade melancólica"

  1. Beatriz disse:

    Que texto lindo!
    O final me emocionou, tanta coisa vemos em nossa cidade, não é mesmo?
    A desigualdade social é escancarada!
    Esse menino, Isaque… é uma das milhões de crianças nas ruas, seja morando, seja trabalhando (não sei nem se devo dar esse nome).

    Amei suas palavras, vou procurar mais de seus textos.

    Abraços.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *