Mesmo céu, mesmo CEP – a literatura das bordas

Marginal, dissidente, literarrua, poesia das ruas. As muitas denominações conotam sentimentos emergentes, que não se enquadram nos critérios canônicos. Suas duas grandes linhas, periférica e hip hop, com visões opostas dos arrabaldes

O escritor Ferréz, autor de “Capão Pecado”

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A reflexão que expus no artigo anterior no qual fiz uma análise do Livro Torto Arado, de Itamar Vieira Jr, à luz da literatura periférica suscitou um interesse de leitores em compreender melhor os critérios que definem uma escrita da periferia. Sem ser pretensioso, escrevo aqui um texto mais teórico que, espero, pode elucidar melhor os parâmetros por meio dos quais defino literatura periférica e os marcos teóricos que orientam minha abordagem.

Experiências estéticas de uma literatura emergente

A literatura produzida na periferia paulistana desde o ano 2000 expressa-se como uma ideia coletiva compartilhada por um significativo grupo de autores e autoras. Trata-se de um movimento baseado em práticas literárias vivenciadas em espaços culturais de bairros periféricos não só da Capital, mas da Região Metropolitana de São Paulo. Dessa forma, entendo que seja um fenômeno que se manifesta no contexto da cultura popular urbana, isto é, de um movimento amplo de manifestações simbólicas vinculadas às classes populares dos centros urbanos. 

Dito isso, tal produção literária não pode ser vista como um movimento vinculado à tradição da literatura brasileira, pelo menos enquanto está em pleno processo. Entendida como uma cultura emergente, nos termos em que propõe Raymond Williams [1], a literatura periférica paulistana requer, enquanto objeto de investigação, uma abordagem analítica que dê conta da sua vitalidade cultural e artística, sem os imperativos das classificações dominantes que consagram as criações por um critério valorativo de qualidade estética. Na tradição da crítica literária brasileira, mesmo de esquerda, isso corresponde aos parâmetros do cânone.

A fim de desatar esse nó é que analiso a escrita periférica como um movimento de práticas literárias e não um movimento literário, definição que traria no seu bojo um desejo de inserção numa tradição estabelecida. 

Sendo assim, “experiências estéticas de uma literatura emergente” é uma forma cuidadosa de abordar o tema. A prudência, porém, não impede de afirmar a existência de uma literatura própria da periferia, mas esta é ainda uma instância que só identifico em um plano material específico, num dado contexto social como já foi dito, não uma generalização estabelecida consensualmente. 

Entre as linguagens artísticas, a literatura é a que mais oferece condições de apreciação das estéticas das periferias, dada a vasta produção existente [2].  Há inclusive a configuração de um campo de disputa. Essa literatura tem diferentes denominações: periférica, marginal, dissidente, literarrua, literatura hip hop, poesia das ruas. Acredito que a existência dessa diversidade de nomenclaturas se deve às diferentes concepções estéticas internas ao fenômeno. 

Esse mosaico de referências tem outras denominações se olharmos nomes de grupos culturais, títulos de obras artísticas e nomes de coletivos: Perifatividade, Periafricania, Cooperifa, Periatitude, Marginalhiaria, Fundão, Da Quebrada, Grajauex e muitos outros. Toda essa abundância de significações é representativa das formas artísticas que são produzidas e que acabam por identificar a periferia paulistana. A partir daí entendo que a identificação de estéticas próprias das periferias contribua para que a arte periférica seja reconhecida também por sua relevância artística e não só por uma dimensão ética, reduzindo-a somente a sua conotação social cidadã, na medida em que promove escritores e escritoras que estão nos setores excluídos da sociedade.

A cultura periférica e por consequência a literatura periférica são, portanto, denominações recentes que estão em pleno processo de construção, cercadas de imprecisões, porém reveladoras de uma força simbólica que lhe confere uma notável singularidade.

O poeta Sérgio Vaz, coordenador da Cooperifa

Estrutura de sentimento como recurso analítico

A condição emergente da cultura de periferia não a impede de exercer pressões e fixar limites efetivos à experiência e à ação, enquanto não tem uma classificação que a defina com mais precisão. Essa pressão se dá, a meu ver, no primado da elaboração estética dada a sua possibilidade de expressão múltipla, daí a profusão de termos que cercam a cultura de periferia, diversos, porém agregados em algumas estruturas de sentimento. 

É necessário ressaltar que estrutura de sentimento é menos um conceito amplo que define objetos e mais um recurso interpretativo, uma hipótese cultural, como define seu autor, o sociólogo britânico, Raymond Williams [3].

Esse recurso analítico abre uma perspectiva de solução para o problema teórico abordado no início desse artigo que é a falta de parâmetros estético-teóricos que deem um tratamento digno à produção literária da periferia, sem que esta seja analisada na comparação com a literatura canônica ou outras formações dominantes. 

Williams entende “sentimento” como um termo que vai além dos conceitos de “visão de mundo” ou “ideologia”, que são crenças formais e sistemáticas. Sem recusá-las, apregoa que “sentimento” pode alcançar significados e valores “tal como são vividos e sentidos ativamente e a relação entre eles e as crenças formais” [4]. Em outras palavras, o sentimento como é pensado e o pensamento como é sentido. Já a “estrutura” é entendida como série, conjunto de relações internas específicas, fluente e tensa ao mesmo tempo. 

A cultura periférica, entendida como um movimento emergente que, portanto, está “em busca de novas formas ou adaptações das formas” [5] e que está por isso em pleno processo tencionando as formas vigentes (residuais ou dominantes), é também um movimento em articulação e com baixa  institucionalidade, embora incidam sobre essa cultura agentes de elevada institucionalização, como órgãos governamentais (por meio de políticas públicas e editais), instituições culturais privadas (SESC, Itaú Cultural, ONGs), mídia, corporações da indústria cultural (editoras, gravadoras).

Essa ambiguidade é explicada por Williams em função da impossibilidade de abordar o emergente fora das relações estabelecidas no processo cultural. Suas definições, portanto, só podem ser feitas em relação com um sentido pleno do dominante. Ou seja, a abordagem deve levar em consideração toda a complexidade do objeto, suas contradições e elementos fundamentais que definem suas estruturas de sentimento.

Literatura Periférica e Literatura Hip Hop 

Ao estudar a literatura produzida nas periferias paulistanas, especialmente no período de 2000 a 2012, procurei observar as estruturas de sentimento contidas nos textos. Nesse exercício cheguei na classificação que faço das vertentes da Literatura Hip Hop e da Literatura Periférica [6]

A primeira corresponde à fase inicial do movimento que vai de 2000 a 2005 e tem nos autores Ferréz, Sacolinha e Alessandro Buzo, nomes de referência e que já foram abordados em artigos anteriores nesta Coluna. Todos eles autores de prosa, incluindo romances, gênero até os dias de hoje com reduzida produção nas periferias. Já a Literatura Periférica é a vertente da poesia dos saraus, encontros que surgiram também na alvorada do século XXI e que se expandiram na virada dos anos 2010 ganhando novo fôlego mais recentemente com os Slams. A Literatura Periférica tem no poeta Sergio Vaz o autor mais influente, cuja obra também já foi analisada por mim aqui nesse espaço.

A vertente Hip Hop se expressa numa visão demasiadamente negativa em relação à coletividade da qual fazem parte seus autores. Há uma constante subestimação do povo, apresentado em particular na obra Capão Pecado, como fofoqueiro, alcagueta, que se regozija do sofrimento alheio. Um povo alienado que só quer saber de novela e futebol. Especialmente as mulheres são tratadas com machismo e desprezo. Tal visão é muito disseminada no RAP dos anos 1990, especialmente dos Racionais MC’s, várias vezes citados nos intertextos desta e de outras obras. 

A produção musical deste grupo também consagrou a expressão “Zé Povinho” [7] que seria o povo que tem inveja do sucesso dos que venceram, como é dito, entre outros, no RAP Negro Drama. Visto dessa forma, o povo, para esses autores, carece de evolução e não de emancipação. Essa evolução se daria pela leitura e pelo estudo, virtudes alcançadas por eles, colocando-os num plano distinto sem deixar de estarem integrados, produzindo uma visão moralista e redentora em relação à massa iletrada com a qual convivem. 

Em resumo, a estrutura de sentimento que Capão Pecado revela, e que está presente em boa parte da produção vinculada à Literatura Hip Hop, é de indignação com o sofrimento do povo expresso numa visão crítica da desigualdade social, porém uma descrença na capacidade de superação coletiva desse povo, dada a sua falta de consciência, de conhecimento e sujeição aos assédios da mídia e outros poderes que os manipulam. 

Em face dessa visão, o que encontramos neste livro e também nos autores que fazem parte da Literatura Hip Hop é o povo contra o povo. Algo que, para uma literatura que se pretende engajada, que quer “constranger o Sistema” pode ser visto como uma limitação argumentativa, pois não oferece ao leitor uma perspectiva de futuro que não seja a superação individual, pelo acesso ao conhecimento letrado. 

Dessa forma, os próprios escritores, na condição de representantes de uma coletividade em relação à qual assumem a missão de anunciá-la na forma de texto literário, acabam por se tornarem, eles mesmos, um exemplo de superação pessoal a ser seguido por um povo abatido pela opressão social, mas que também se destrói mutuamente nos conflitos que se dão no interior de sua própria comunidade.

A Literatura Periférica, por sua vez, muda substancialmente essa relação com o povo morador da periferia: “Povo Lindo! Povo Inteligente!” é o bordão usado pelo poeta Sergio Vaz para abrir os recitais da Cooperifa. Há uma confiança no povo como protagonista de seu destino, assim como há uma valorização de aspectos da vida da população periférica que são reprovados pelos escritores da Literatura Hip Hop, notadamente, Ferréz, e Sacolinha, como o consumo de bebida alcoólica, o futebol, a festa, malandragem e outras características que pouco aparecem nos escritos desses autores. 

Diferente da Literatura Hip Hop que acentua o aspecto sombrio da periferia permeado por violência, tráfico de drogas e traições, na Literatura Periférica o céu está sempre cheio de pipas no ar, tem churrasquinho na laje, crianças na rua, lembranças da infância feliz, apesar de pobre. A violência está presente nos textos, mas é atenuada por uma abordagem mais sutil e reflexiva, menos explícita. Outro fator de distinção fundamental é com relação ao tema da mulher.

Na Literatura Hip Hop, exceto as mães, a mulher tem um tratamento secundário: é vulgar, traidora, fofoqueira, aparecem quase que exclusivamente para fazer sexo. Ao passo que na Literatura Periférica, as mulheres são cultuadas por seus atributos de beleza, força e companheirismo. Há uma exaltação à figura feminina e o sexo recebe uma abordagem mais delicada. Dois autores (Fuzzil e Akins Kinté) chegam ao ponto de fazerem poemas com o eu lírico feminino. 

Em suma, os poetas da Literatura Periférica se envolvem com o povo colocando-se no mesmo patamar dele, com os defeitos e virtudes que lhe são próprios e vislumbram uma transformação que passa, necessariamente, por essa relação. Já os escritores da Literatura Hip Hop parecem se afastar do povo, várias vezes definido como manipulado e fútil. Dotados de uma visão redentora, superestimam o acesso à leitura e à escrita como caminho para a massa a sair da inércia da submissão em que se encontram.

Uma literatura que tem CEP periférico

Identificar essas duas tendências da literatura produzida nas periferias de São Paulo mapeando as estruturas de sentimentos que lhe são inerentes, ajuda a entender a própria existência de uma literatura que tem CEP periférico. Uma literatura ainda emergente, mas que já tem um lugar na literatura brasileira contemporânea. Um lugar de tensionamento, por certo, mas também de integração. 

É preciso ressaltar que Ferréz, há mais de 20 anos é publicado por grandes editoras (Objetiva, Planeta e, atualmente, Companhia das Letras). Já Sergio Vaz, desde 2007 está no catálogo da Global Editora. Alcançaram um merecido prestígio literário. Mas são autores cujo vínculo com as periferias continua o mesmo. A literatura que produzem também mantém a pegada periférica, mas atravessou a ponte alcançando leitores para além dos arrabaldes. A classificação de periférico ou marginal para eles, longe de ser um limitador, foi impulsionadora do sucesso de ambos.


Notas:

[1] WILLIAMS, Raymond, in: Marxismo e Literatura, pág. 126, Zahar Editores, 1979, Rio de Janeiro.

[2] Reuni quase 800 títulos ao longo dos 23 anos em que acompanho essa produção.

[3] Raymond Williams formulou essa categoria de análise ainda nos seus estudos sobre teatro nos anos, 1950. Avançou com seu clássico Cultura e Sociedade, publicado em 1958 e depois no estudo The Long Revolution (sem tradução no Brasil), de 1962. Mas, é no livro Marxismo s Literatura, de 1977 amplamente citado aqui, que ele aborda o tema como teoria. Uma boa discussão sobre estrutura de sentimento como abordagem analítica pode também ser encontrado no livro A política e as letras que é um volume com uma longa entrevista da New Left Review conduzida pelo historiador Perry Anderson, publicado no Brasil pela Editora da UNESP.

[4] WILLIAMS, Raymond, Marxismo e Literatura, op. cit.

[5] WILLIAMS, Raymond, Marxismo e Literatura, op. cit.

[6] Desenvolvo esse estudo no meu mestrado: Mesmo céu, mesmo CEP, defendido em 2014 na EACH/USP.

[7]Termo que já aparece no livro Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus, como neste

trecho: ”Quando começa as brigas os favelados deixam seus afazeres para presenciar os bate-

fundos. De modo que quando a mulher sai correndo nua é um verdadeiro espetáculo para o Zé

Povinho” (JESUS,2010, p. 46).

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Um comentario para "Mesmo céu, mesmo CEP – a literatura das bordas"

  1. Denis Moraes disse:

    Eleison como sempre irresistível! Seu pensar crítico e analítico nos faz refletir o periférico, CEP imanente à nossa vida!

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