Macunaíma é a cara do Brasil – de ontem e de hoje

Filme de Joaquim Pedro de Andrade completa 50 anos. Ao digerir antropofagicamente obra de Mário, dá rosto burlesco a nosso “herói sem caráter” e expõe a eterna luta do povo brasileiro contra Gigantes Comedores de Gente

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Ai, que preguiça! Estejam certos, não é a frase ideal para começar um texto. Com ela, o leitor-navegador pode entendê-la como seu desejo perante a leitura. Ou abrir um sorriso e lembrar-se de Macunaíma. Ainda bem. Meu objetivo aqui é homenagear o personagem. Tão bem construído por Mário de Andrade em 1928 que ganhou vida própria. Magistralmente adaptado por Joaquim Pedro de Andrade no cinema em 1969 que adquiriu rosto. Melhor, rostos, como Jano: Grande Otelo e Paulo José.

A Constituição de 1988 tem de pedir bênção ao herói de nossa gente. No ano em que ela completou trinta anos, ele completou noventa. A rapsódia de Mário de Andrade foi inspirada nos mitos descritos pelo etnólogo alemão Theodor Koch-Grünberg sobre os povos indígenas da região da tríplice fronteira entre Brasil, Venezuela e Guiana Inglesa. Alfredo Bosi observa que “a mediação entre o material folclórico e o tratamento literário modernos faz-se via Freud”. E as transformações do protagonista obedecem à estrutura do pensamento selvagem, descrito por Claude Lévi-Strauss como “pensamento capaz de compor e” – continua Bosi – “recompor configurações a partir de conteúdos díspares esvaziados de suas primitivas funções”1.

Macunaíma é o herói sem nenhum caráter porque está em constante transformação, espécie de argila a ser moldada pelo medo e pelo prazer. Índio nascido preto, sem pai, torna-se branco. Malandro a cair na conversa dos mais espertos. Mentiroso incorrigível que mente para sobreviver e tirar vantagem. Egoísta tragado pelo egoísmo dos outros. Mulherengo a sofrer por causa de uma mulher. Nasce no fundo do mato-virgem, renasce na metrópole.

Tendo em mente o protagonista amorfo da rapsódia de Mário de Andrade, Joaquim Pedro de Andrade é fiel a Macunaíma – o herói sem nenhum caráter por não ser canônico. No press book de 1969 afirma que considera o filme um comentário ao livro2. Realmente é. Quem estiver a fim de ver literatura no cinema está indo ao lugar errado. Não tente inovar, vá à biblioteca.

As mudanças do longa-metragem são precisas e circunstanciais, produtos de um homem consciente da histórica do Brasil e do modernismo. Não só, da transposição da linguagem literária para a cinematográfica. Em 1969 o herói de nossa gente estava com 41 anos. O cineasta tinha clareza dos propósitos do escritor: de voltar-se contra a arte dos salões, representada pelo Parnasianismo, com sua dicção afrancesada, através do uso da linguagem oral e da cultura popular, parodiando os discursos empolados dos oradores. Uma afronta iniciada em 1922 que se consolidou ao longo dos anos, através das obras iniciais do modernismo e de seus manifestos.

Mas a iconoclastia ganhou forma no Manifesto Antropofágico. Joaquim Pedro de Andrade digeriu Mário de Andrade com o estômago de Oswald de Andrade e o olhar aguçado da sua câmera. Atualizou Macunaíma à conjuntura política (Ci era guerrilheira), parodiou a estética julgada ultrapassada da chanchada (o humor burlesco), ironizou o kitsch tropicalista (o figurino de Anísio Medeiros) e deu algumas cutiladas na ditadura militar (a canção ufanista em momentos grotescos ou trágicos).

Se havia sutileza no livro, na película ela tornou-se mau gosto, exagero e grossura. Humor de menino criado na rua, empinando pipa, andando de carrinho de rolimã, jogando bola, caçando passarinho com estilingue, entre tantas outras brincadeiras. Quem pensa como a mãe a dar tapa na boca do filho por falar sujeiras se incomodará com o Macunaíma de 1969. Se bobear, até com a lascívia do de 1928. “Procurei fazer um filme sem estilo predeterminado. Seu estilo seria não ter estilo. Uma antiarte, no sentido tradicional da arte”, começa o cineasta no press book para logo depois arrematar: “Não existem nele concessões ao bom gosto. Já me disseram que ele é porco. Acho que é mesmo, assim como a graça popular é freqüentemente porca, inocentemente porca como as porcarias ditas pelas crianças”3.

Apesar de imerso na estética antropofágica e no momento histórico, a fita é atual, por se manter como nossa imagem refletida no espelho. Sim, é um reflexo distorcido. “Mesmo quando uns e outros enfatizam apenas aspectos da situação ou acontecimento, mesmo esquecendo outros aspectos, ainda assim, nesses casos, ocorre alguma forma de esclarecimento”, segundo as palavras de Octavio Ianni4. Não é em vão, portanto, comparar Paulo Guedes, Ministro da Economia, a Pietro Pietra (Jardel Filho), o gigante comedor de gente. E nós com Macunaíma (Grande Otelo e Paulo José). Apesar disso, ainda nos divertimos com eles e Ci (Dina Sfat), Jiguê (Milton Gonçalves) e Maanape (Rodolfo Arena).

Ai, que preguiça! Para que falar do enredo se todos o conhecem de cor e salteado? Contudo sou obrigado a dar os parabéns ao filme Macunaíma, por completar 50 anos em 2019. Com Joaquim Pedro de Andrade, o herói de nossa gente esteve em boas mãos. Mas o câncer do cineasta o levou alguns dias antes de ver um de seus sonhos realizados, uma constituição a ver o povo como cidadão. Apesar de a Constituição de 1988 estar sob ameaça no Governo Bolsonaro, temos duas obras-primas, uma a dignificar nossa literatura e outra o nosso cinema.

1 BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 42ª ed. São Paulo: Cultrix, p. 352, 2004.

2 ANDRADE, Joaquim Pedro de. “Com a palavra Joaquim Pedro de Andrade”. In: MACUNAÍMA. Rio de Janeiro: Filmes do Serro, p. 6-7, 1969. 16 p. Encarte elaborado para o DVD Macunaíma.

3 Ibidem, p. 7.

4 IANNI, Octávio. “Tipos e mitos do pensamento brasileiro”. Sociologias, Porto Alegre, ano 4, n. 7, p. 185 [176-187], jan./jun. 2002.

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6 comentários para "Macunaíma é a cara do Brasil – de ontem e de hoje"

  1. THAIS MAIA disse:

    O que chama mais a atenção é que o herói lendário não é um herói no sentido tradicional, ele é mais um anti-herói, já que de acordo com a lenda Macunaíma era preguiçoso, mentiroso, covarde, manhoso e sensual. Para Mário, era o próprio retrato do brasileiro: “povo sem nenhum caráter”. Mas hoje me faço a seguinte reflexão, seremos mesmo um povo sem caráter ou será que mais sem caráter é o sistema brasileiro que leva o cidadão aos extremos para a então sobrevivência.

  2. josé mário ferraz disse:

    Ora, brasileiro não luta contra gigantes comedores de gente. Pelo contrário, o brasileiro se encanta com os parasitas sociais do mundo do pão e circo que consomem a riqueza de amenizar o sofrimento de quem sofre por falta de recursos. A grana embolsada pelas nulidades intelectuais que os papagaios de microfone denominam “famosos” e “celebridades” fazem destes inocentes úteis verdadeiros comedores de gente porque muita gente morre por falta desta grana.

  3. josé mário ferraz disse:

    Ora, ora. Na beira do abismo, precisamos mais de praticidade do que especulações intelectuais. Não se pode ser indiferente a esse absurdo de condenar Paulo Freire e enaltecer múmias saídas de sarcófagos. É preciso, sim, um método de educação que estimule a capacidade de raciocinar. É preciso que as crianças aprendam a se interessar pela política, ao contrário do que afirma o presidente de ser preciso afastar a garotada da política. Rodopiar em torno de intelectualidade é tão inútil quanto o livro de Natalie Depraz, Compreender Husserl, uma baboseira inútil e enfadonha.

  4. Glaucus Linx disse:

    Eu acho que Macunaima é uma visao eurocentrica e diminuidora do brasileiro, que, por sua vez assumiu a definicao elitista e “casagrandesca” do “homem cordial” do elitista Sergio Buarque de Holanda. Enquanto esse estereotipo racista e vira-latas de nosso povo e nosso país perdurar, seremos a grande masssa de manobra submissa a uma elite ignorante e sem personalidade.

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