Letras de mulheres pretas bordadas no papel

Em duas autoras periféricas, já falecidas, a infância pobre, mas convidativa à fabulação e à escrita. Pelas arte e ancestralidade africana, entre Carolinas e Dandaras, aflora a rebeldia negra — e um chamado à paz, mesmo que custe guerras

Tula Pilar
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Por Eleilson Leite, na coluna Literatura dos Arrabaldes 

Os livros analisados neste artigo são de duas autoras negras representativas da literatura periférica contemporânea, porém, mortas: Maria Tereza e Tula Pilar. Da primeira, vamos abordar o livro Negrices em Flor (Edições Toró, 2007)1. Da segunda, leremos os textos publicados na primeira parte da antologia póstuma Pilar: futuro presente – uma antologia para Tula (Edições Sarau do Binho, 2019)2. Maria fez passagem em 2010 e Tula em 2019. As duas autoras são da mesma geração: Maria Tereza nasceu 1974 e teria 46 anos, já Pilar, faria 50 anos em 2020.

Além de escritoras, as duas se dedicavam ao teatro, à dança e à música. Ambas tiveram muitas ocupações de trabalho e vendedora foi a profissão comum a elas. Maria Tereza era natural de São Paulo, morava no bairro da Cachoeirinha, na periferia da Zona Norte e atuava em vários coletivos. Pilar nasceu em Minas Gerais, passou pelo Rio de Janeiro antes de chegar em São Paulo. Morava no Taboão da Serra nos últimos anos de sua vida e frequentava o Sarau do Binho e o Espaço Clariô de Teatro, espaço no qual aquele sarau se realiza.

A leitura conjunta dos livros dessas autoras permitiu observar recorrências que estabelecem aproximações importantes entre elas. Destacamos duas. A abordagem da infância na qual a escrita e a leitura aparecem como elementos de formação autodidata em contextos de escassez relativa para uma (Maria Tereza) e de miséria para a outra (Pilar). A afirmação da mulher negra é a outra estrutura que se capta no texto de ambas. Mas a modulação de tom entre as duas autoras denota diferenças de abordagem que enriquecem a análise dos textos. Tula é mais assertiva e engajada enquanto Maria Tereza é mais reflexiva, menos coletiva, mas sem deixar de ser contundente. Ambas fazem devoções à ancestralidade africana e enaltecem a linhagem de mulheres que as antecederam com especial referência à Carolina Maria de Jesus.

Pilar: Futuro e presente – Uma antologia para Tula

Dedico-me aqui a primeira parte do livro Pilar: futuro presente – uma antologia para Tula. A este capítulo, as organizadoras, Maitê Freitas e Carmem Faustino, deram o nome de Ela Carolina: escritos do cotidiano e autobiográficos. Optei por restringir a leitura a essa parte do livro por três motivos. O primeiro é que nele está a metade dos poemas do livro Palavras Inacadêmicas (publicado pela própria autora por volta de 2015) que, a princípio, seria objeto da análise para este artigo. O segundo motivo é que nesta parte da antologia há vários poemas produzidos pela autora posteriormente. E, finalmente, o terceiro motivo é que os poemas eróticos de Pilar não constam desta parte 1 do livro. Ficaram para a parte 2, onde a poesia de traço mais sensual e lascivo da autora foi reunida, incluindo quatro poemas daquele primeiro livro e todos publicados na sua segunda e última obra publicada em vida pela autora: Sensualidade de fino trato (Sarau do Binho, 2017). Como no livro de Maria Tereza essa temática não tem forte presença, o exercício de articulação entre as obras e as autoras fica mais viável sem os textos eróticos de Tula. Dito isto, concentrei-me nos poemas que expressam as recorrências mencionadas: a infância e adolescência e a afirmação da mulher negra.

O livro abre com Sou Carolina, poema manifesto por meio do qual a autora se apresenta ao mundo e descreve suas motivações de poeta. Assumindo o eu lírico, parece falar por muitas. Devota sua superação à Carolina Maria de Jesus de quem compartilha várias semelhanças. Veio de Minas, viveu em favelas, foi empregada doméstica desde menina. A redenção veio pela escrita: “a caneta é meu troféu/ bordo as palavras no papel”. Reitera em versos que sintetizam sua trajetória de superação: “a negra escritora que foi do quarto de despejo/ aos programas de TV”.

Na sequência vem Sou uma garota ousada que é outro poema de afirmação: “meu cabelo é crespo, minha pele é negra” e rejeita o estereótipo que atenua a negritude: “não tenho boca de mulata”. Mulher independente: “durmo com quem quiser e sigo sem compromisso”. É da noite e da cultura: “ando na madrugada!/ nos batuques de umbigada!/Tango, hip hop/ mostro meus conhecimentos/ canto com os camaradas”. No final reverencia sua linhagem afro-brasileira: Carolinas e Dandaras/Aqualtunes e Odaras.

Africanidades é um poema exaltação das origens africanas da autora com um recorte de gênero: “poder e voz para as mulheres negras”! O impulso é de conflito, mas o tom é de reconhecimento e irmandade “a consciência é negra/ a pele é escura/ mas o sangue que corre nas veias/ é igual em todos os irmãos”. Um poema para ser lido em voz alta no 20 de novembro. Poetando com “P” é um pequeno poema cujos versos falam por si: “Poesia pra Pilar/Piar/Pele preta/Poeta/Princesa”.

Ao discorrer sobre os homens que amou e com quem teve seus filhos, ela também enaltece a altivez da mulher preta em face da covardia e negligência dos progenitores que não assumiram a cria. Os homens que amei é o nome do poema e é dos mais inspirados do livro. Em três estrofes, modula o sentimento que nutre pelos seus amantes. No primeiro é o amor: “abri-lhes meu coração/ abri-lhes minhas pernas/ abri-lhes a porta da casa”. Na segunda estrofe, lamenta a rejeição frente a gravidez: “os homens que amei/ ao verem a barriga de seus frutos/romperam com o meu ser/apunhalaram-me pelas costas”. Na última estrofe, a superação: “sobrevivi através dos anos/ abençoada pela força de Oxum/lamento dizer que seus frutos, em tempos mais tarde/ tornaram-se fortes homens e belas mulheres”.

Há poemas no bloco de afirmação da mulher negra que fogem um pouco ao tom de punho erguido para uma exaltação mais contida, sem perder a profundidade. São textos bem distintos. Um é Assucena, Assucena, poema em homenagem a uma das cantoras trans do grupo musical As bahias e a cozinha mineira. A sensibilidade em exaltar uma mulher transgênero se revela em belos versos: “as falenas estavam lá/ nos jardins das Helenas/ as açucenas/menina serena/ mulher obscena…/ Assucena, Assucena”. O outro, Descansando sorrindo é um réquiem para a mãe da autora em seu leito de morte: “deixou os filhos descalços/ cabeças pensantes/corações partidos”. O poema traz uma nota em que faz a dedicatória póstuma do poema, não só a sua mãe, mas também a duas outras ativistas negras ligadas à Marcha Mundial da Mulheres e que foram importantes para a sua formação.

Os poemas dedicados à infância e adolescência são todos autobiográficos. Começa com Meu avô catador, poema que trata do avô que era catador de reciclados e os vendia nos galpões conhecidos como Ferro Velho. Trata-se de uma forma de geração de renda que ainda resiste nas periferias entre os mais pobres. Pilar faz um relato afetuoso do avô que, certa vez, a presenteou com “um chinelinho de cor natural”: “foi o melhor presente de Natal/a criança não mais andava descalça”. Ela também discorre sobre a importância desse tipo de profissional na vida urbana: “enfrentam todas as intempéries do tempo/ só não se faz saber o que seria do lixo neste país/se não fosse esse trabalhador”.

Já no poema Boneca de pano, a autora faz um pêndulo entre a vida na favela e no quarto dos fundos da casa da madame para quem trabalhava, embora fosse uma pré-adolescente. E como criança lidava com o trabalho apesar do trampo pesado: “eu era pequenina e a vassoura grande/ eu varria, eu limpava sempre cantando”. Mas a menina queria estar com sua boneca de pano no barraco da favela onde podia brincar plenamente. O poema faz um retrato da violação do direito da criança que é obrigada a trabalhar, mas não perde o gosto por brincar.

No poema Os pés me levam para os meus sonhos, a autora, mais uma vez, estabelece um paralelo entre dois cenários. Um é a cidade grande em cujas ruas anda avidamente no seu ofício de vendedora da Revista OCAS, um território do qual parece ter um domínio: “caminho pela cidade/ caminho pelo mundo/buscando meus desejos…”. Num flashback, volta à infância, e sua narrativa descreve um contraste com a metrópole: “pelos campos de terra vermelha das Minas Gerais/ corri para brincar de pique-esconde/pular corda, amarelinha”. Pilar estabelece um elo entre os dois mundos por meio dos pés com os quais caminha na metrópole na vida adulta, mas que na infância a levava até os rios e cachoeiras pisando nas terras vermelhas dos grotões de Minas. A autora conclui: “os pés me levam para onde eu quero ir…/ para onde posso sonhar”

Entre os poemas voltados à condição infanto-juvenil há um que se refere a um dos filhos da autora. Se liga moleque é um manual de conduta para adolescentes em fase de descoberta de si e do mundo, porém, sem saberem se equilibrar entre sua ansiedade e os riscos e desafios do mundão. Enfatiza a importância da escola: “não enrola, vai pra escola/seja inteligente/não faça prova copiando cola”. Alerta para os perigos das drogas lícitas e ilícitas: “não se drogue, não beba, não fume/faz perder a infância e vira costume”. Exalta o trabalho como caminho para conquistar os sonhos aliado ao estudo: “tem que sonhar, planejar, estudar/quando for homem, vá trabalhar/ e tudo que sonha poderá comprar”. A humildade é a síntese dos ensinamentos: “veja lá, ouça o que a mãe diz/jamais deixe de ser um aprendiz”.

Esse grupo temático de poemas dedicados à infância se encerra com um dos textos mais marcantes do livro: Frango verde: alimentando-me do lixo. Trata-se de um depoimento sobre a infância paupérrima que passou em favelas de Belo Horizonte, o trabalho na infância, a vinda pra São Paulo, os três filhos, o trabalho como catadora de reciclável até se tornar escritora e o desejo de vencer na vida com a venda de seus livros. Pilar discorre em texto fluente sobre as dificuldades da vida. Ela relata os perrengues como se voltasse a ser criança, achando graça de comer um frango que a tia retirou do lixo, mas cujo saboroso tempero, ela guardou na lembrança pelo resto da vida.3

Negrices em flor

Os 42 poemas contidos no livro de Maria Tereza, discorrem sobre a infância e a afirmação da mulher negra, mas também tratam de outros temas. Um deles é o da alimentação, que tem uma presença relevante. Pães, doces, farofa e temperos permeiam a poesia da autora. Outra linha temática é o fluxo na cidade, especialmente o caminhar que parece ser para ela uma forma de pensar. No poema Persigo que tem a forma de um haicai ela sintetiza sua visão de mundo: “persigo três palavras/Ifé, Ori e Axé/ Enquanto aprendo”. Entendo que ela fala de amor, espiritualidade e força como uma busca permanente. Essa trilogia dá forma ao universo utópico da autora que faz um uso sofisticado das palavras formando versos simples, mas de elevada inspiração como: “arroz com ovo é gostoso”; “Na mente milimetricamente horizontes alargados” ou “E a noite preta, destelhada e estrelada”.

O primeiro poema do livro é Saudações. Umtexto abre-alas: “a poesia é crua/ a poesia é toda a realidade/porque todo dia tentam/ com a mídia morta/ padronizar cabeças”. A autora diz a que veio: “hoje como sempre, atitude e pensamento valem como corpo e espírito presente”. Um mantra intercala os versos: “pela água, pelo fogo/ Amor, amor, amor em dobro”. Trata-se do manifesto estético que lastreia sua poesia: “arroz com ovo é gostoso”. Coisas da vida de quebrada, das comunidades do povo negro. Um poema de resistência: “peço ajuda, não peço arrego”. Contra a uniformização que a mídia impõe, uma poesia sem filtro que fala da dor, mas oferece amor em dose dupla.

No mesmo diapasão está o poema Brasileira gigante. Uma ode à mulher negra: “mulheres negras me criaram, mulheres negras me ensinaram” Versos que exploram o duplo sentido de certas palavras: “a vida não usa ruge, fera ri e ruge”. Novamente o movimento: “sob a luz da lua mundana eu vou que vou/caminhando no asfalto elaboro minhas oferendas”. O adjetivo “gigante” no título do poema tem um sentido conotativo de grandeza em virtude de valores como dignidade, ética, independência, mas pode ser uma referência também a estatura da poeta. Maria Tereza era uma mulher esguia.

Vida verdadeira agora, por sua vez, é um texto em prosa com um poema em três partes: solo; entremeios; parceria. Segue a linha do primeiro poema, exaltando as ancestralidades: “ancestralidade que gera sempre heranças. Heranças… Passadas no pé do ouvido, no dentro do vermelho líquido, no olho, na voz, no maior órgão do corpo, tua pele”. Oxumaré movimentar parece completar essa sequência de textos. Neste poema, o movimento aparece já no título ancorado na divindade de Oxumaré que representa o movimento do tempo e tem por característica não ter o gênero definido. Esse traço parece estar presente na composição do poema, na última estrofe: “No início da lágrima sorrio/arco-íris pintando o infinito/ ser mulher na cabeça de menino”.

Rosa Preta abre um outro subgrupo dentre os poemas de afirmação da negritude feminina. A autora busca mais uma vez suas raízes afro: “eu é que afrorústica brasileira”. Bem elaborados versos: “atento quando o tema é pensamento”. Usa a metáfora do ciclo menstrual para falar do processo de criação poética: “quando esse fluxo mensal poético/ inunda meu sistema nervoso”. Neste poema a autora parece preparar o combate que ganha contornos mais precisos em Movimentos Ogúnicos, poema precedido de texto em prosa no qual a autora se vê atormentada por lembranças ruins de um passado recente. A solidão numa madrugada de réveillon acentua a tristeza que lhe consome em meio ao alarido de vizinhos em festa e da matilha assanhada na rua. Entre a fome e a angústia, escreve o poema em um velho caderno. Ogum é o Orixá da guerra e os quatro versos da composição é um anúncio de combate: “apontar no alvo diretamente/fulminar a fúria do algoz/matar o atravessador de caminhos tirando cabeças/organizador do bom trabalho”.

Em Aquilombados aparece uma coletividade pouco presente nos poemas autocentrados da autora. Esse texto aborda o corre do povo negro periférico, cuja dinâmica remete a estratégia quilombola: “é dos olhos que sai o mar efervescente dos aquilombados”. A autora cria imagens do povo em movimento: “somos língua viva botando fogo no sereno/ na feira, no ônibus, na roda tem/na fila, no trânsito, elevador também”. “( …)Observo enquanto errando acerto/ Na São Paulo camaleão feminina, da norte mesmo ao sul extremo” E conclui: “(…) amor é inteligência/ é preciso exercitar”

Num terceiro subgrupo de poemas de introspecção, a autora se volta novamente para seu eu profundo. Parição é um poema que ficou muito conhecido por ter inspirado e dado título à peça teatral escrita por Cidinha da Silva e montada pelo grupo Os Crespos 4.Trata da solidão da mulher negra: “pari com força/pari sem dor/pari entre um sonho e outros/depois virei outra pessoa/ em respeito a mim mesmo/aprendi a voar sem asas”. Faz muito tempo, segue a narrativa da mulher abandonada pelos homens, um manifesto feminista. Já o poema Hoje coloca as coisas em outros termos: “Dê-me de beber/ dê-me de comer/ me carinhem os pés/… mas não me excitem muito/ que hoje eu tô puta da vida!”

O bloco finaliza com dois poemas que compõem a mitologia da negrice em flor. A flor da danação guarda um verso que é um contundente anúncio: “quando floresce a negrice, movimentam-se mundos”. Corpa negra que é o último poema do livro, fecha também o conceito que a autora quis expressar ao longo da obra: “Parira amores e dores/ mesmo que pequenas e grandes nações desumanizadas/demoradamente a cada demora três centenas de anos ( …) trocou aquilo por isso e quilombolizara até hoje/ banhou-se por horas a fio, perdoou-se de ranços, renomeou-se/chegou aqui”.

Nos textos de Maria Tereza referentes à infância, o recorte etário fica abaixo dos 10 anos, diferente de Tula, cujos poemas alcançam a fase adolescente. Outra distinção é a relativa ausência do sofrimento. Na infância desenhada pela autora, a tristeza não vigora e o contexto de pobreza não aparece como um empecilho para uma infância feliz. Mas essa percepção só é nítida nos poemas que parecem ter traço autobiográfico. Logo no início do livro aparece Presente de mãe que é umtexto em prosa, um conto infantil que foi convertido em livro publicado pela Editora 34, em 2009. Nele, uma criança que gostava de brincar de fazer bolo de terra no quintal de sua casa, ganha um bolo de verdade da mãe no dia do aniversário de 9 anos. Porém, a guloseima não era vermelha como ela queria e sim branca com um morango solitário no topo como se fosse a representação acanhada do rubro desejado pela garota. A frustração foi aliviada pelo presente que acompanhava o bolo. Embrulhado de maneira estranha, havia um espesso caderno com folhas vermelhas que fascinou a menina.5

No poema onírico Os sonhos de meu acordar o encantamento da infância pobre, porém, feliz é exaltado em prosa: “(…) lembrando como era o sol do desenho da minha infância, o cheiro do lápis de cor ou do giz de cera/Eu tinha tudo isso, canetinha, ou era um toco de carvão que eu pegava nos antigamente (…)”. Novamente a autora enfatiza o letramento, o contato com a escrita por meio dos objetos a ela associados como a canetinha e o caderno que aparece no poema anterior. Por outro lado, a falta desse acesso ao mundo das letras aparece no poema Rigidez no qual retrata crianças que trabalham e não estudam. E se pergunta: “como seria saber pronunciar bem e entendendo/palavras escritas/ até poesia”.

Os outros dois textos que fecham o bloco dos poemas que tratam da infância também são críticos e deixam de ser líricos; são narrativos. Um deles é Conta-gotas que retrata o cotidiano de uma pessoa em moto-contínuo que sai de manhã para o trabalho no qual “tem dificuldade de repetir, o sim senhor, a sim senhora”. Na volta para casa, no barraquinho onde morava, a aflição de ver as crianças sedentas por pão e um sorriso”. Já o último poema, cujo título é Eugenia, trata do racismo e com sutileza se refere às teorias eugenistas. Eugenia é o nome de uma boneca negra que uma menina branca de sugestivo nome Clarice ganhou de alguém. A garota adorava aquela boneca para o desgosto da mãe que abominava o brinquedo em função de sua cor preta, razão pela qual deu o referido nome a ela, mas sem o acento circunflexo

Movimentos ogúnicos

Conforme já citado em nota deste artigo, a jornalista e escritora Bianca Santana organizou um livro com depoimento de 26 mulheres negras nos quais elas narram suas trajetórias de vida e estratégias usadas para enfrentar os desafios do cotidiano. O título deste livro, Inovação ancestral de mulheres negras, é de grande inspiração e nos ajuda a compreender os textos de Tula Pilar, que foi uma das autoras da referida obra, e de Maria Tereza, que poderia muito bem estar entre elas caso fosse viva no ano em que a obra foi produzida. Para as duas autoras, as táticas de enfrentamento dos desafios da vida cotidiana e as tecnologias que desenvolvem são inspiradas na ancestralidade do povo negro desde África até o Brasil antigo e contemporâneo. Ancestralidade é um conceito que se renova, mantendo o vigor tanto como espiritualidade quanto como conhecimento, como ciência.

Ao abordarem o tema da infância, as autoras aqui analisadas falam do encantamento com a escrita produzida com lápis e toco de carvão ou da leitura dos livros da casa em que a adolescente trabalhava como empregada doméstica. Ambas se apropriaram daquilo que veio a lhes emancipar quando mulheres. Fizeram-se Carolinas subvertendo o destino que estava traçado para as mulheres pretas que é o da subordinação. A infância pobre não lhes tirou o encantamento do brincar. Tula fala da boneca de pano com a qual brincava na favela onde morava, local de onde ficava afastada durante a semana quando trabalhava na casa de madame. Fazia o trabalho cantando e dançando com a vassoura que era maior que ela. Mas era trabalho e pesado. Ela ficava ansiosa para chegar o final de semana e retornar para o seu barraco onde podia brincar com sua boneca de pano e voltar a ser criança. Maria Tereza fala do bolo de terra vermelha feito pela menina que se encantava em mexer no solo do quintal. Seria a boneca de pano e o bolo de terra, expressões da inovação ancestral? Com a ressalva de uma leitura um tanto esquemática de minha parte, entendo que sim.

Quando mulheres adultas, a ancestralidade se expressa na consciência intereseccional de classe, raça e gênero em combinação com “ifé, Ori e Axé”, a trilogia amor, espiritualidade e força, de Maria Tereza. “A africanidade está cravada em m’alma”, afirma Tula Pilar invocando a linhagem: “Carolinas e Dandaras/Aqualtunes e Odaras”. Os “movimentos Ogúnicos” de Maria Tereza dão a letra: “apontar no alvo diretamente/fulminar a fúria do algoz”. Não se trata de eliminar o inimigo, mas anular seu ímpeto opressor. Tula diz que “a consciência é negra/ A pele é escura/ mas o sangue que corre nas veias/é igual em todos os irmãos”. Entendo aqui que o chamado é de paz nem que para isso tenha que se fazer a guerra. “Violentamente pacífico”, disse os Racionais MC’s, numa possível tradução do “movimento ogúnico” que me parece uma boa representação da afirmação da mulher negra na obra de Tula Pilar e Maria Tereza.


1 A publicação que se encontra esgotada há vários anos, tem formato 13 cm x 17 cm, 87 páginas. Tem concepção editorial de Allan da Rosa, da própria autora e de Silvio Diogo que assina as ilustrações e a diagramação. O rapper Gaspar faz o prefácio. Na contracapa há um desenho com o retrato da autora feito por Rodrigo Bueno – Ateliê Mata Adentro.

2 O livro da Tular foi lançado em setembro de 2019, cinco meses depois da morte da autora, na edição da FELIZS daquele ano. Foi organizado por Maitê Freitas e Carmem Faustino que assinam os textos de apresentação e conta com um posfácio da Suzi Soares, responsável pela Edições Sarau do Binho.Com formato 14 cm x 21 cm, a obra tem 193 páginas e tem projeto gráfico de Loredana Oliveira e colaboração de SilSil do Brasil. A arte da capa é de Renata Felinto. Além da obra reunida da autora, o livro contém textos de 23 autoras mulheres em forma de carta póstuma dirigida à Tula Pilar

3 Este texto publicado no livro organizado por Bianca Santana: Inovação ancestral de mulheres negras: táticas e políticas do cotidiano, publicado pela Editora Oralituras, São Paulo, 2019.

4 Trata-se da peça “Engravidei, pari cavalos e aprendi a voar sem asas” que teve sua estreia em 2013 com direção de Lucélia Sergio e Sidney Santiago Kwanza.

5 No livro, o texto passou a se chamar Vermelho e contou com ilustrações de Andrés Sandoval

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