Jodorowsky: Desmesurada poesia

Novo filme em que o cineasta chileno revisita sua própria obra é exuberante e ensaia fusões de cinema, teatro e literatura — mas poderia ser menos idealista em relação aos próprios poetas…

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Por José Geraldo Couto, no blog do IMS

Desde o título, Poesia sem fim, o novo filme de Alejandro Jodorowsky suscita no espectador a pergunta: o que é, afinal, a poesia? E outra: como ela se traduz ou se expressa em cinema?

O cineasta chileno tem uma trajetória ímpar. Depois de realizar, no México e na Europa, uma obra pouco numerosa mas com momentos cintilantes como El topo (1970), A montanha sagrada (1973) e Santa sangre (1989), que lhe valeram um status quase mítico, ficou 23 anos sem filmar. Em 2013, aos 84 anos, retornou ao seu país e ao cinema para passar em revista sua vida e obra numa planejada série de cinco longas-metragens, dos quais A dança da realidade (2013) foi o primeiro. Poesia sem fim é o segundo.

Surrealismo barroco

Desta vez, o período abordado é o da passagem de Alejandro da adolescência à idade adulta. Começa com a mudança de sua família de um vilarejo litorâneo para Santiago e termina com a partida do jovem Alejandro (Adan Jodorowsky, filho do diretor) para Paris.

A abordagem estética, como no longa anterior, é o que se poderia chamar de surrealismo barroco, em que memória e fantasia são sinônimos. Visual extravagante, sobretudo na cenografia e nos figurinos, contrastes violentos de cores, profusão de metáforas e hipérboles, atuações antirrealistas. Para o bem ou para o mal, é uma estética da exuberância, do excesso, da desmesura.

A sequência da chegada da família a um bairro de Santiago, logo no início, é um prodígio de invenção visual, com o cenário sendo construído vertiginosamente diante dos nossos olhos, com painéis móveis e trem de papelão, como num infinito palco de teatro ao ar livre. Não por acaso, o teatro é um dos meios de expressão a que Jodorowsky se dedicou apaixonadamente, ao lado da literatura e do cinema. Em seus melhores momentos, os filmes do diretor fundem e potencializam esses três meios de expressão.

Em Poesia sem fim há várias outras passagens em que essa alquimia acontece: a apresentação do palhaço-poeta Alejandro num circo, o encontro na rua entre dois blocos carnavalescos (o dos diabos e o das caveiras), o retorno ao Chile do líder de direita Ibánez del Campo, cavalgando à frente de seguidores que usam máscaras inexpressivas.

Ambiente artístico-literário

Como o entrecho diz respeito à saída de Alejandro da casa dos pais e seu mergulho no ambiente artístico-literário do Chile do início dos anos 1950, entram em cena vários personagens reais, como os poetas Enrique Lihn (Leandro Taub), Stella Díaz Varín (Pamela Flores) e Nicanor Parra (Felipe Ríos). Todos eles transfigurados pela fantasia e pelo humor do cineasta, claro. Stella, por exemplo, é uma musa esquiva e intimidadora, ao mesmo tempo virgem e agressivamente sexualizada.

O outro polo da narrativa diz respeito à relação do jovem poeta com a família, isto é, com a mãe extremosa e submissa, que canta suas falas como árias de ópera, e com o pai caricaturalmente homofóbico e repressor. Significativamente, o ator que encarna o pai, Brontis Jodorowsky, também é filho do cineasta, de modo que pai e filho, apesar da diferença de idade, são representados por dois irmãos na vida real, ambos filhos de Alejandro Jodorowsky. É bom ter isso em mente na linda cena final, em que aos dois se junta o próprio diretor octogenário, forjando na tela um acerto de contas que não chegou a acontecer em sua biografia real.

A relação com a mãe é ainda mais complexa e sutil. Basta dizer que a mesma atriz que a representa encarna também a vamp Stella, primeira paixão do jovem Alejandro. Mais que isso: de uma cena em que Alejandro sodomiza Stella saltamos diretamente para outra em que Sara, a mãe, é penetrada por trás pelo marido. Os psicanalistas vão se esbaldar.

Discurso diluidor

Se há algo que de algum modo enfraquece o efeito estético-político de Poesia sem fim, é justamente… a poesia, ou melhor, seu discurso sobre a poesia. No filme, os poetas aparecem como seres iluminados, ungidos com um dom especial, apartados dos mortais comuns. Essa velha visão romântica e idealizada da poesia e da atividade poética é repisada a todo momento e acaba por diluir ocasionalmente o que o filme tem de mais forte e original.

Até mesmo cenas que poderiam ser visual e dramaticamente interessantes, como a travessia da cidade “em linha reta” por Alejandro e seu amigo Enrique Lihn, são tornadas pueris pelo insistente discurso explícito dos personagens na linha do “somos poetas, podemos tudo”. Há um ranço de surrealismo datado no humor dessas atitudes pour épater le bourgeois.

Curioso é que os personagens vituperem o “poeta oficial” Pablo Neruda mas compartilhem com ele a mesma verborragia plena de “imagens poéticas” e a mesma concepção romântica do poeta como ser especial.

Em suma, o filme ganharia ainda mais vigor se falasse menos de poesia e se limitasse a praticá-la com seus meios expressivos específicos. Quando faz isso, cresce como cinema, como magia e, claro, como poesia.

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