Em Fala comigo, inventário de solidões contemporâneas

Longa de estreia de Felipe Sholl especula sobre relações intergeracionais e os limites da psicanálise — quando já não é ferramenta libertária, mas instrumento normativo e repressor

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Por José Geraldo Couto, no blog do IMS

Fala comigo, longa-metragem de estreia do carioca Felipe Sholl, começa e termina no escuro, isto é, com palavras sendo ditas sobre a tela preta. O filme parece partir do princípio (e chegar à conclusão) de que sempre haverá coisas – nos outros, no mundo e em nós mesmos – que nunca saberemos por completo.

Daí também a construção fragmentária da narrativa, feita de elipses, diálogos truncados (ou reduzidos a monólogos), saltos espaciais e temporais, closes e primeiríssimos planos que deixam a maior parte dos corpos fora de quadro. Mas, para que este comentário não fique abstrato demais, é preciso dizer do que trata o filme, ou seja, qual é o seu “enredo”.

Filme de amor

Trata-se, em linhas gerais, do envolvimento de um rapaz de 17 anos, Diogo (o excelente Tom Karabachian), com Angela (Karina Telles), uma paciente quarentona de sua mãe psicanalista (Denise Fraga). A partir dessa situação delicada desenvolve-se um filme de amor que é ao mesmo tempo drama de família, crônica de costumes e especulação sobre temas como a sexualidade difusa da adolescência, relações entre pessoas de gerações diferentes e, não menos importante, os limites da psicanálise, sobretudo quando esta deixa de ser uma ferramenta libertária para se tornar instrumento normativo e repressor.

Unificando todas essas linhas de força, o que vemos é um ensaio dramático sobre a solidão, sobre a carência humana, sobre o caráter incompleto de cada indivíduo – e sua busca meio atabalhoada de se completar nos outros. Essa falha de origem ou defeito de fabricação afeta todos os personagens, não apenas os três protagonistas citados, mas também os secundários: o pai de Diogo (Emilio Melo), sua irmã mais nova (Anita Ferraz), seu melhor amigo (Daniel Rangel) etc. É, de certa forma, um inventário de solidões.

No centro de tudo, claro, está o atormentado Diogo, que flagramos em seu vício solitário e secreto logo na primeira cena. Seu fetiche é telefonar para mulheres pacientes da mãe e se masturbar enquanto ouve a voz delas do outro lado da linha. Porém, ao contrário de um Todd Solondz (Bem-vindo à casa de bonecas, Felicidade, Histórias proibidas), que exibe as perversões de seus personagens como aberrações, explorando o que têm de bizarro, Felipe Sholl parece respeitar essas peculiaridades íntimas como uma espécie de último reduto da individualidade e da liberdade. Nesse sentido, aproxima-se do humanismo radical de O que se move, de Caetano Gotardo.

A carência afetiva de Diogo se expressa num gesto recorrente: ele deita a cabeça no ombro de uma pessoa próxima: do pai (numa das cenas mais belas do filme, em que os dois compartilham um fone de ouvido para escutar uma música, solitários na noite), da mãe, da amante, da irmã.

Razão e vulnerabilidade

Chama a atenção, na decupagem do filme, a relativa escassez de cenas resolvidas pelo campo/contracampo. Estes, quando aparecem, não são meramente expositivos: têm a força de verdadeiros embates entre os personagens, de contrastes radicais de pontos de vista.

Não se trata de um melodrama convencional, onde uns têm razão e outros não. Todos têm suas razões e suas vulnerabilidades. Clarice, a psicanalista mãe de Diogo, só se refugia na autoridade classificatória e prescritiva de seu ofício porque sente que está perdendo seu papel protetor, sua ascendência especial sobre o filho. O colega Guilherme hostiliza a namorada madura de Diogo porque não consegue lidar com seu próprio desejo pelo amigo.

Enfeixando pulsões tão delicadas e complexas, esse filme surpreendentemente seguro para um estreante em longa não está isento de fraquezas, entre elas uma cena um tanto clichê de pais discutindo a separação enquanto os filhos ouvem escondidos, ou a naturalidade pouco crível com que uma menina de dez ou onze anos anda sozinha de táxi pelo Rio de Janeiro.

Mas isso tudo é secundário diante da integridade e consistência cinematográfica de Fala comigo, que no Festival do Rio do ano passado conquistou os prêmios de melhor filme e melhor atriz (para a sempre ótima Karina Telles). Nestes tempos de rotatividade predatória no circuito exibidor, sempre cabe a dica: veja logo antes que saia de cartaz.

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