Fragmentos: mortes na emboscada-Brasil

Mestre Moa, símbolo da cultura afro-brasileira e estatística das 1.001 noites coturnas; Tatuagem, artista e faz-tudo, salvou quatro crianças de prédio em chamas; Cadu, boêmio e bocudo, e os chamados urgentes que poucos atendem…

Mestre Moa

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Romualdo Rosário da Costa morreu da emboscada brasil, que permanece há séculos na sombra, apenas aguardando a ocasião, e a ocasião desta feita luziu na facada traiçoeira, uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze — uma pra cada mês do ano que não terminou. Foi quase que nem repicar carne, podia ter dito o assassino. Não era açougueiro, porém, era barbeiro e bolsonarista.

Só soube da existência de Mestre Moa do Katendê (remanesce o Atlântico entre SP e Bahia) quando deixou de existir. “Compositor, percussionista, artesão, educador e mestre de capoeira”, estampa em lápide a Wikipédia, orgulho do Brasil-que-amamos-lá-fora, símbolo da cultura afro-brasileira, virou tristonha estatística de mais uma cilada brasil, que a gente parece não querer enxergar, mas continua ali, na esquina, alerta e solerte, na nossa cara, nas nossas barbas, sempre pronta a aparar o topete do populacho, as soberbas da sobra.

Não sei se o Brasil existe ou não, se é pura ficção, boa, ruim, se é ficção que não se populariza, de tão alta, ou baixa, ou que nunca acaba, em seu reencetar sem fim, com suas 1.001 noites coturnas, se só fixação, não sei. O que sei, o que sinto é que nunca deplorei tanto ser paulistano e não palestino. Ele bem merecia uma intifada.

Desplante

Em memória do Tatuagem

O corpo todo tatuado, não queria parecer homem, sabia que os homens não se dão entre si, e mal com bichos e plantas, que ele amava e escondia num buraco alto do Centro, onde se escondia junto. Tatu? Tinha que ser um pouco, mas tatu tatuado, tatu artista, artistatuado, artistatuante sobre patins, senão ia sobreviver como, carregando e descarregando caminhão? Descarregou ainda do prédio em chamas quatro crianças, com quem bulia de passagem, bulindo amoroso, e que o chamavam de “Tatuagem”, como todo mundo. O nome era Ricardo e o sobrenome, Oliveira Galvão Pinheiro, — comprido, de troncos tão nobre, quem sabe o único desplante do pobre, explicava naturalmente o gosto por fotografar paisagem, como quem fotografava a si mesmo, e o gosto por se fotografar, como quem fotografava paisagem.

Em tempo: um ou outro gaiato o chamava Coração de Leão… Ele sorria, desentendido, mas a gente entende, e sente, o coração inda ardente nos escombros do sinistro.

Jordão

Em memória do Cadu

Não te conheci estudante, militante, docente, bibliografia et al. Já te topei boêmio e bocudo, enchendo a cara até cair e caindo, id. ibid., como eu, passim em apud. Mas, se a gente não era caduco, também estava longe de ser criança e, você sabe, os madurões aguardam a fruta cair, não são loucos de subir em pé. Mergulhar — nem se fale! Não porque sejam invariavelmente geladas as águas, turvas sempre serão, há-as mornas, até quentes, é que abraçar novo nome, o que se chama conhecer, nesta curva altura da vida, cê sabe, é coisa de denodados, não pra carecas ou gente de cã em tempos de cão. Por isso que as pessoas acabam passando por nós… O que posso te dizer, agora que você desceu correndo, é que volta e meia me tocava tua voz, o timbre de difícil definição, entre ladainho e rezingado, apelo insistente, chamado urgente, que poucos atenderam, sim, mas que tem sido a vida além disso? Abraço, velho.

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