Aos pobres, a xepa

Ao louvar alta do dólar e fim da “festa danada” das domésticas, Paulo Guedes expressa como nossa elite é nostálgica da escravidão. Trabalhadores, sempre podados da “audácia” de sonhar, são fadados a desculpar-se ou agradecer pela migalhas

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Hoje li e reli a frase dita por Paulo Guedes várias vezes. “O dólar alto é bom. Empregada doméstica estava indo para Disney, uma festa danada”. Essa frase não saiu da minha cabeça o dia inteiro e tem martelado até agora. Esse mal dito me embrulhou o estômago, me fez lembrar de todas as realidades, da minha família, da minha cidade, das vinte e quatro mil pessoas que têm tentando sobreviver nas ruas da cidade de São Paulo e de toda essa miséria circundante e escancarada que não para de crescer e que só não nos engole mais porque estamos de novo em um ponto da história em que estamos naturalizando a violência.

Quando saímos de um lugar muito pobre e conseguimos ocupar algum espaço de privilégio mínimo é sempre um processo difícil desde à projeção à concretização de fato. Toda apropriação é acompanhada de um sentimento esquisito de não-pertencimento e que se manifesta muitas vezes como desconforto. Não somos ensinados a nos projetar na Disney, nas universidades, nas atividades intelectuais, nos grandes cargos ou ganhando grandes salários. Isso é um projeto de Brasil e América Latina já antigo mas que ainda hoje persiste para cercear qualquer possibilidade de voo, qualquer coisa que nos afaste da superfície da terra. O mais difícil e dolorido de todo esse processo é a projeção que exige um exercício de confiança e imaginação que também nos foi recusado. Há o desejo. Claro. Sempre houve e sempre haverá. Todo mundo que é pobre quer romper as fronteiras da pobreza e a projeção é o início da dificuldade. Você precisa forçar a vista para se projetar naquele lugar, se ver ali realizando um sonho que aparentemente não foi feito para você. E é difícil pois nos é ensinado a querer menos do que os outros e a aceitar menos. Abre aspas: você deve lutar pela xepa da feira e dizer que está recompensado. O nosso desejo deve ser sempre limitado. E a palavra “menos” que se traduz às vezes no desejo “menos” vem dessa imposição da classe média de não aceitar de forma alguma que a gente queira mais ou seja mais pelo simples fato de odiar a palavra pobre, a sua origem, o cheiro, as roupas, as falas, o corpo e tudo que constrói o imaginário e a concretude do que é ser realmente pobre.

Esse ódio ao pobre que não se dilui no decorrer da história nada mais é que a atualização do ódio que os senhores brancos e ricos sentiam pelos seus escravos. As pessoas não odeiam o partido dos trabalhadores porque é corrupto. Não foi por ser corrupta que a Dilma caiu, não foi por ser corrupto que o Lula foi preso. Paulo Guedes, Bolsonaro e toda a classe que esses homens representam odeiam é a possibilidade do pobre romper as fronteiras que já foram dadas por eles. Odeiam o nosso sonho. Odeiam a diminuição das distâncias entre eles e nós e sobretudo a ascensão da classe trabalhadora. Essa classe que eles sentem nojo. Só nos querem e nos aceitam nos lugares mais subterrâneos possíveis. Da cinematografia da estética da fome de Glauber Rocha à Anna Muylaerte no filme Que horas ela volta a gente percebe que a nossa fome é que o alimenta o gozo dessa classe. Quanto mais miserável somos ou estamos mais essa gente se regozija, num prazer quase sexual e psicopata. Não cabe a esse corpo que nasce, cresce e se desenvolve nos “subúrbios” brasileiros e que conquistou direitos básicos nos últimos anos possuir o mesmo nível – ou um nível superior – de instrução, inteligência ou de autoestima que eles. Eles constroem um mundo que não podemos acessar e por isso precisamos estar sempre saciando essa nostalgia da escravidão. É preciso possuir aquele ar acuado – sem nenhuma poesia – de quem sabe o seu lugar de inferioridade. É preciso abaixar a cabeça, sorrir, e estar sempre pedindo desculpas ou agradecendo por tudo. É preciso ter a consciência de sua mediocridade histórica. Se não, nada feito. Querem destruir essa ideia tão recente de que todo mundo pode se comportar feito gente e desejar coisas de gente. O governo Bolsonaro é esse produtor fatal de uma legião de corpos que não pode e nem deve mais sentir desejos. Não sem um dia sentir uma saudade doída dos tempos que éramos tratados como gente.

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2 comentários para "Aos pobres, a xepa"

  1. Adriano Léllis disse:

    Não só não querem, como são capazes de fabricar um retrocesso nacional para não terem que se misturar com essa gente. Essa aversão ao pobre tem um nome, aporofobia. A filósofa espanhola, Adela Cortina, lançou um livro com o mesmo nome em 2017.

  2. josé mário ferraz disse:

    Interessantíssimo é o fato de tergiversarem os intelectuais sobre os mais diversos assuntos sem nenhuma vinculação com uma existência mais inteligente e, portanto, de melhor qualidade de vida. Na minha pequena estante com menos de trezentos volumes podem ser encontradas dezenas de inutilidades denominados “Best-Sellers”. O derradeiro em que joguei fora meu escasso dinheiro se chama Escravidão Contemporânea. Nele não há uma vírgula sequer a respeito da escravidão do emprego cujas artimanhas tornam os escravos tão satisfeitos com ela agradecem a deus quando consegue um emprego que lhe permita comprar uma fantasia para o carnaval.

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