E se desfez o anonimato dos afetos escondidos

Duas jovens escritoras periféricas mostram: o mergulho no eu pode ser ato de generosidade. Fora da dicotomia emoção-razão, seus amores e frustrações são convite à resistência feminista, do qual ninguém atravessa incólume — nem homens

Imagem: Belkis Ayón
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Por Eleilson Leite, na coluna Literatura dos Arrabaldes

Compartilho neste texto a leitura que fiz dos livros Do verbo que o amor não presta, de Helena Silvestre (Edições do Sarau do Binho, 2018) e Um ano sem Roupa – Textos sobre como amar é difícil e bom, de Juliana da Paz (Vicença Editorial 2021). Nascidas em meados dos anos 1980, são praticamente da mesma idade. Helena é de Mauá, no ABC Paulista enquanto Juliana é natural de Maceió. As duas se cruzaram nos agitos do Sarau do Binho na Zona Sul de São Paulo para onde migrou Juliana muito recentemente. Ativista de movimentos de moradia, Helena não se fixou muito em um local, mas sabe-se que se aquietou na área rural de um município da Região Metropolitana, sentido sul, de onde vem produzindo muito. Já lançou um outro livro em 2019 (Notas sobre a Fome) que chegou a ser finalista do Prêmio Jabuti. Juliana, por sua vez, é professora com mestrado e doutorado em Educação, mora no Capão Redondo e tem uma atuação no movimento feminista.

Helena e Juliana guardaram seus livros para serem lançados num momento de maturidade. É perceptível o quanto as duas obras são produto de uma longa gestação. São obras que fazem um balanço de suas vidas em um tom pessoal, mas sem ser particularizado. Falando de si, elas falam de muitas. Dar forma de livro para tanto sentimento represado é por si, um ato de generosidade e sororidade, valores tão marcantes na escrita de mulheres. Não vejo exatamente como cura ou libertação. A mim não ficou essa impressão. Mas pode repercutir assim nas leitoras que captam sutilezas que um homem dificilmente percebe. Os livros acabam por trazer à luz como literatura uma reflexão densa sobre a vida na qual não há dicotomia entre razão e emoção. Os livros de Helena e Juliana acabam por desfazer o anonimato dos afetos escondidos, parafraseando Altemar Dutra na canção que foi imortalizada na interpretação de Amelinha1.

Do verbo que o amor não presta

Dos 44 textos do livro, entre poemas e contos e outras composições que não se enquadram em gêneros definidos, 25 são de amor, quase todos em tom de angústia em contextos de ruptura e desencontros de relações – que parecem ser muitas ou, pelo menos, diversas. Helena, porém, não se afunda na amargura, talvez, por isso, em boa parte dos textos, desloca o eu lírico para a terceira pessoa, inclusive de um homem, fazendo assim um movimento de distanciamento do objeto, lidando até com certa ironia com as aflições amorosas de que trata abundantemente em seu livro. Ela expressa, mesmo nos momentos mais doloridos, uma certa resiliência que a livra (e o leitor também) de cortar os pulsos. Afinal, diz ela em uma de muitas elaborações brilhantes: “só se esvazia aquilo que ousou-se encher”. Ou seja, para algo serviu o amor que se acabou.

Nos demais textos, o lugar de fala da mulher afro-indígena fica mais nítido e de acordo com a ênfase dada no texto Advertência III – para amar uma mulher negra. Organizado em capítulos, o livro concentra esses textos nos dois últimos. A relação com o tempo, tema tão fecundo para especulações filosóficas aparece com destaque tendo explicitamente duas referências ao romance Cem anos de solidão, de Gabriel Garcia Marques, em intertextos. As metáforas de agulha e fio que têm uma certa recorrência podem ser inspiradas também naquela obra clássica. O engajamento nos movimentos sociais e sua formação política de esquerda aparecem num contorno poético elegante longe de qualquer tom panfletário. Helena estreia com um livro precioso seguido pelo referido Notas sobre a fome que confirmou o talento da autora que já tem um lugar assegurado entre as principais escritoras da literatura periférica e para além desse nicho.

Nos textos de amor, o tema do casamento é o mais constante tanto na poesia como na prosa. Essa questão está presente há tempos para a autora. Em 2013 ela publicou um texto em prosa na antologia do Sarau do Binho que tinha como título O casamento. Talvez este seja um dos primeiros textos publicados por Helena até então. Mesmo depois não localizei sua presença em outras antologias. Nem da segunda coletânea do Sarau do Binho, publicada em 2015, ela participou. Naquele texto, em tom muito pessoal, ela discorre com despojamento sobre o matrimônio: “quando eu era bem pequenininha, casamento era coisa que não existia. Existiam meu pai e minha mãe”. Na época, vivendo o ciclo de saturno, se dizendo cética em relação aos enlaces formais, ela elabora sua tese: “casamento é a gente ter um amigo que foge com a gente da missa, que a gente sente uma vontade maluca de beijar, que passa o café pra gente, que deixa o que tem de melhor pro outro”. Embora longe do nível de elaboração literária que ela apresenta atualmente, naquele texto de oito anos atrás encontramos uma senha para entender os encontros e desencontros amorosos que ela explora em Do verbo que o amor não presta no qual confronta sua fórmula de relação a dois com a realidade dos afetos vividos.

Quase todos os textos de amor discorrem sobre a separação. Divórcio tem um título autoexplicativo e um clima pesado: “enquanto ele chorava suas dores/eu lhe gritei/rangendo os dentes:/- Levante-se! Reaja!/e ao ver que ele só chorava/voltei-lhe os cabelos/e também chorei/entre lágrimas/ eu só pude cantar”. Em Escutas a ninguém o choro dá lugar a uma DR. O eu lírico é de um homem que vive a iminência do fim de um amor: “Apenas arrazoava que aquela morte era o final/ de um definhamento longo que ela nem mesmo/ percebeu como tal”/E fui embora com o peso do mundo nos ombros e o coração vazio”. Se vazio seu coração ficou, é porque cheio ela já esteve, de acordo com a advertência que a autora nos fez. A questão é que a percepção de esvaziamento não é a mesma para os dois.

Há três textos, um em prosa e dois poemas, que retratam com impressionante vigor literário o clima tenso da separação. Se tropeçar no amor… é umconto que narra o desespero da mulher ao ver seu companheiro colocando a mudança no caminhão. A chuva e as escadas conferem ainda mais dramaticidade. Ela tenta pegar as caixas de dentro do carreto. Ele a acalma com um abraço. Ela se conforma com a situação e se afunda na tristeza “com os olhos perdidos no asfalto das ruas por onde seguia o ônibus cheio de gente”. …Não caia é um poema curto, porém, atroz que dá sequência ao conto anterior. Parece uma cena posterior à separação no qual fala do esforço para superar tal situação: “a firmeza me desmoronava/ escorrendo corpo abaixo/ a cada vez que teus telefonemas/ Me alijaram/ Numa bolha de sussurros”. Por fim, Velório caseiro desenha o sepulcro que vira uma casa após o abandono do amor perdido. “Faço carreto/ mudo de mil endereços/ Outro bairro/ novo preço/ e uma casa inteira/pra encher de passado”. Encher de perturbação: “casa vazia/ até o dia/ em que teus juízos/ me atearem fogo”.

O conjunto de textos que tem o fim de um relacionamento, para não falar casamento, como tema central se completa com dois contos que exploram o pós-rompimento e, talvez, a possibilidade de um novo enlace. Caso você case é narrado em primeira pessoa, cujo personagem é um homem que na solidão de sua casa acende um baseado. Estreava na maconha. Uma mulher, identificada como “amiga do Joca”, chega com umas brejas. Ele é surpreendido com o cheiro da moça que se assemelha ao de uma outra que parece ser sua ex. Ele sai de casa. Entra numa festa em que “duas bêbadas” lhe beija a boca; prenúncio de orgia. Volta para casa feliz. Acende um cigarro: “amor é coisa que não quero nunca mais”. Caso você case outra vez é narrado em terceira pessoa, fala de uma mulher de trinta e dois anos recém-separada supostamente de um arquiteto. Vai ao seu bar predileto e flerta com dois homens; um músico e um economista. Resiste. Dá um drible nos dois e vai para outro bar onde é cortejada pelo garçom, seu amigo, com quem passa a noite. Assim como no conto anterior, termina a história andando pela rua, fumando solitariamente plena.

Essa atmosfera etílica, lonely e esfumaçada de cigarro aparece apenas nestes dois textos com destaque. Como estão no início, passa a impressão de que o livro seguiria esse diapasão, algo que não acontece. Ao contrário, praticamente desaparece deixando um tanto deslocado esses dois contos que são bem elaborados, mas pouco originais.

Os textos que fogem dos temas amorosos podem ser agrupados em dois tipos. Os que tratam da formação da poeta, onde o tempo e o território têm um lugar central e o outro no qual o trabalho é o vetor da elaboração da autora. Sobre o primeiro, o poema As quatro poesias que faltam é definidor: “Quem se encobre/ só faz se mostrar”. E ela se mostra:“Ergui bandeiras/ derrubei as cercas/ lavei muita roupa/ fiz acampamentos/Fui valente e/ dama/Fui mulher na cama/e numa passeata”

Agulha e tear é uma narrativa pessoal e breve, porém, densa sobre o significado da vida tendo o nascimento e os vários renascimentos como mote para essa reflexão. O primeiro nascimento que a autora registra foi por volta dos sete anos: “Eu brinquei muito e percebi aos poucos que nascer é ocupar um lugar no mundo”. Uma criança que “comia o mundo com olhos cheios de fome e vazios de esperteza…” Depois veio o renascimento que é quando ela toma consciência do mundo, seus encantos e injustiças. É a aí que ela se define como fio e a narrativa toma forma de um novelo. Discorre sobre todo o aprendizado de uma vida cheia de conflitos: “amei, desamei, magoei, sofri e vi também que havia sempre mãos desejosas de dominar nosso desenho, escondidas sob as cores da esperança”. Ela parece se queixar das tretas dentro da fratria. E assim ela renasceu tantas vezes: “e sempre recheei o espaço que me coube ocupar no mundo”.

Há dois poemas que têm intertextos do clássico romance Cem anos de Solidão. Fim dos varais que é umpoema em prosa que faz uma reflexão sobre o envelhecimento e memória tendo o varal como metáfora. Cita Aureliano Buendia, personagem do referido livro, algo sugestivo para o propósito do texto, pelo fato de se tratar do filho mais introspectivo de José Arcádio Buendia. No poema Contradição da água – às cartas não entregues, a autora discorresobre o tempo e os saberes e sons da vida. Cita Macondo associado à periferia: “Só em Macondo – / Mundo bairro expandindo-se/ em favelas de mãos dadas/ com réstias de mata/nas bordas da cidade”. O eu lírico é de uma senhora que no final da tarde senta-se na varanda de casa: “precisei sentir o cheiro/ a lembrança que estava inscrita no meu nariz”. Também com esse tema do território, a autora nos oferece dois poemas, um como sequência do outro. Casas de Bairro que é um poema em prosa no qual o eu lírico da autora se localiza na infância e olha o mundo a partir de sua casa simples de bairro de periferia. O mundo era o seu bairro. As pedras do bairro segue a toada no poema anterior, enfatizando os fluxos no bairro e o gosto por colecionar pedras que achava pelo chão.

Os textos sobre o mundo do trabalho começam falando do trabalho invisível da casa que recai sobre a mulher. Pra falar disso, ela se refere a sua própria mãe em Pachamama no qualas dores e alegrias da matriarca que “carregava o fardo eterno e invisível do trabalho doméstico de um Sísifo”. Mulher tão batalhadora quanto sábia, lhe deu “as ferramentas de decifrar mundos”. Já em Praga rogada ela trata da paranoia de uma trabalhadora que se dedica a escrever na madrugada sobre sua labuta diária e a exploração a que é submetida no trabalho. Também com recorte de gênero é o conto Zona Sul que discorre sobre a rotina de uma trabalhadora de hospital que participa de movimento de habitação (onde há muitas mulheres como ela), articulado ao movimento sindical, no qual os dirigentes são “sempre homens, muito mais velhos, quase todos brancos” e faz curso de ciências sociais na universidade na qual os seus colegas têm “rostos com bochechas rosadas, comedoras de danone”.

Outros dois textos associam a discussão do trabalho à sua formação política e se referem a dois autores importantes da tradição literária comunista europeia. No poema Comunismo passo a passo, dedicado ao poeta russo Maiakovski, temos uma narrativa em primeira pessoa sobre o mal que o trabalho faz: “das coisas que o trabalho me arrancou / doem os vazios que ficaram”. Subtraídos “os pedaços imensuráveis de vida” que o trabalho lhe arranca, fica o tempo livre no qual ela trama a destruição do trabalho. Por fim, no conto Apêndice a autora faz uma reflexão sobre o flagelo daqueles para os quais o ano novo nunca chega. Sobre os que “esperam receber um ano novo”; “os que constroem o ano novo”: “estes são os incansáveis” e merecedores de um novo ano. O texto tem uma estrutura que parece ser inspirada no famoso poema do dramaturgo e poeta alemão Bertold Brecht: “há homens que lutam um dia e são bons/ há outros que lutam muitos dias e são melhores/ Mas há os que lutam todos os dias/ Esses são os imprescindíveis”. Mas, para Helena, mulher imprescindível, o poema de Brecht tem de ser reescrito com alteração de gênero.

Um ano sem roupa

O livro de Juliana da Paz tem 40 textos, sendo que cinco deles são preâmbulos para cada um dos capítulos (há um sexto que é uma fotobiografia). Esses textos introdutórios são todos em prosa e não têm título. É perceptível logo no segundo deles que se trata de uma continuação. Essa impressão se confirma a cada capítulo e o leitor não se surpreende quando, na derradeira parte do livro, a autora junta os quatro primeiros. A esse conjunto ela dá o título de Última carta do jogo. O surpreendente é que a leitura corrida dos textos não produz um efeito de totalidade. Cada um parece ter uma autonomia. O elemento comum a quase todos está mais na forma que é de diálogo entre um homem e uma mulher que tem um relacionamento posto em permanente discussão. Seja como for, essa recorrência confere uma estrutura editorial à obra. Esses e todos os textos do livro falam do quanto amar é difícil e bom, mas a autora dá uma ênfase na parte mais complicada da relação.

O primeiro texto discorre sobre a capacidade do amor de resistir ao afastamento decorrente do fim de um relacionamento. “Quanto mais distanciamos de um objeto, menor ele fica”, diz um dos interlocutores que parece ser a mulher. A conversa se desenrola nesse embalo filosófico. E a conclusão é que “o que importa é o que cultivamos em nós. E o que em nós está, conosco andará, não importa a distância”. Talvez aqui Juliana queira dizer algo diferente de Helena. Não se esvazia o que foi preenchido. O sentimento permanecerá. Assim cada relacionamento que começa se soma aos que se foram fazendo do amor um basalto, um tipo de rocha vulcânica meio desengonçada, mas resistente e rica em minério, embora esse tipo de metáfora não faça parte do universo literário de Juliana.

No texto que abre o capítulo II, a discussão incide sobre a questão do tempo e o mote para a reflexão é uma carta cujo paradeiro era desconhecido e se revela como um testemunho de um tempo e de uma relação que ficou no passado quando cartas eram trocadas entre amantes e amigos. Já o texto que introduz o terceiro capítulo, além de ser datado e antigo (9/11/09), se difere dos demais pelo tom da discussão do casal. Uma prosa que pode ser classificada como conto. Retrata o transe de uma mulher à beira de um ataque de nervos por conta do companheiro que não fode nem sai de cima e além disso é grosseiro. Texto com alta intensidade acentuada pela escrita em caixa alta dos momentos mais tensos e desbocados.

Lembra o conto Sem Mágoas, de Rodrigo Ciriaco, que é de 2011, porém, sem a ironia que este autor imprimiu ao texto.

Já o texto de abertura do capítulo seguinte é um pequeno e belo poema:” ela solta/ solta os nós/ són muy belos/ os teus sons/ acompanhada ou a sós”. Ela aqui faz uso da metáfora dos nós que remete ao ato de se despir (e se vestir) que é estruturante na obra e explora com maestria a aliteração em s: solta/són/sons/sós. E o último texto, por sua vez, retoma a discussão inicial numa DR que vai numa espiral que parece não ter fim em virtude de afirmações tais como: “Te amo tanto que não quero ficar com você”. Definitivamente, para Juliana Paz, amar é difícil, mas é muito bom ler a elaboração literária que ela faz das complexas relações amorosas.

Destaquei dois grupos de textos entre os demais 35 que compõem o livro. Selecionei composições que exploram o mar como tema ou metáfora. O outro grupo são de textos que brincam com o duplo sentido das palavras onde a autora quintaneou. Natural de Maceió, onde viveu até bem pouco tempo atrás, Juliana tem no mar, nas marés e na praia um traço de identidade. Corrobora essa percepção o desenho da capa do livro, além de outros que ilustram os capítulos e de algumas imagens que constam em sua fotobiografia. Dos seis textos selecionados neste grupo, apenas um não fala, diretamente pelo menos, de amor. Trata-se de Marejada, um poema que revela a língua de maria. Abre o “glossário mariano/ vocabulário marinho” ( …) “E eu bem Maria/ não sendo metal/ não vou marear/ feito os mariaté/vou inundar”. Ela aqui faz um exercício ao estilo do Ni Brisanti que criou seu próprio dicionário.

Em geral, os poemas embalados pelo mar falam do lado bom do amor. Em A marejada e a ciranda do mar que é uma prosa poética ela discorre sobre um amor daqueles de flutuar de paixão e prazer à beira mar. Fiel ao seu estilo, a excitação toda se dá em função da conversa que o casal tem numa praia em noite enluarada: “as mãos sentem esse calor também. Encostam o ventre que se contrai em tensão só para se alongar num relaxamento maior em seguida. E o prazer se espalhando por todo o território arenosos no qual me estendo… a excitação da conversa boa… das palavras, esse nosso lugar… por favor, não para mais de falar.”

Em Ganhei, ela muda um pouco o diapasão: “Eu não sei ser represa/sei só ser mar”. E como mar ela provoca medo da pia bagunçada — e “dos movimentos ondulares/ de nossos encontros?/que não são lineares”. Já em Lua minguante no mar, um poema curto no qual ela volta ao bom do amor em que pese decepções, frustrações, pois, amar é “o que vale a pena sentir”. Samba maré, por sua vez, é um poema lírico que expressa a angústia e a dor de um amor em transição como a maré e a lua que a define. Acentua a presença do mar como metáfora dos sentimentos da poeta: “ser mar é ir além/ não leve a mal/ nem desfaça/ontem foi dia de lua/ isso não é bobeira/ Ontem a minha doidera/ foi só a lua cheia!”

Todos os amores e/ou do coração pra dentro encerra o bloco. Um texto em prosa na primeira pessoa recheado de referência ao mar (“foram giros e voltas em caldos na beira mar”) fala de um amor que não se consumou (do coração para dentro). O eu lírico constrói uma narrativa demasiadamente justificada na racionalidade para tratar de um sentimento conflituoso. Parece sociologia do amor. Nesse texto ela se refere ao amor como um homem: “(…) no poço profundo d’algum moço cativante”. No final do texto há um poema no qual sintetiza de forma mais nítida o que se passa no coração: “lhe guardando na memória/ em minhas prateleiras/gostando de saber/que você me quer/ mesmo sabendo/ que não me terá”. Termina o texto com o veredito: “a minha delicada covardia de te amar”.

A brincadeira com os vocábulos se dá de diferentes formas e o amor está presente em todas elas. Em ela explora a distinção de sentido da palavra “desenvolver”. Veja: “me envolver doeu/ quero me desenvolver”. O movimento de se desfazer de um envolvimento, implica também na ideia de evoluir, avançar que estão contidas na definição de desenvolvimento. Nós, por outro lado, é um poema retórico que explora o duplo sentido da palavra nós como pronome e como laço; “Num acordo entre nós/eu acordo entre nós”. Já Não moro? é um poema maroto e bem articulado sobre o sentido da palavra namorar: “Morar na…/ cama do outro/pousar na alma/ esgueirar-se na pele (…). E termina atrevida: Duvido!/ que sendo assim/ tu não queiras na-morar/ COMIGO!”

São nos textos que brincam com os duplos sentidos das palavras que encontramos um pouco mais de picardia nas relações amoras da poeta. Em Assento, a autora faz um exercício virtuoso explorando duas palavras distintas na escrita, mas que se assemelham na fala. No caso aqui é “assento”. Mas todo o poema se estrutura na palavra “acento” no sentido da ênfase (acentuado) ancorado na ideia do acento ortográfico. Esse recurso é usado ao fim e ao cabo para falar de sexo: “cada segundo / que estivemos juntos/e nesse momento/meu amor tem um acento/ Agudo”, sugerindo, a meu ver, uma ereção peniana. Repare o que ela faz no poema Álgebra: “Tensão: vacância da vontade/ a um ‘n’ de distância”. Ao tirar o n da palavra Tensão, fica Tesão que não deixa de ser uma tensão, uma agitação, ansiedade.

Por fim, em Fome ela fala de “uma antropofágica mensagem/ em morfotorta imagem”. Lembra Caetano Veloso em Comeu: “Ela comeu meu coração/ trincou, mordeu, mastigou, engoliu, comeu”. Mas no poema de Juliana o ato não se efetiva: “Comer:/ abocanhar/ mastigar/ deglutir/ isso nunca se cumpriu/ você nunca me comeu”. Essa sentença pontua todo o poema e, bem ao gosto da autora, tem ares de ambiguidade sobre o sentido de comer: “você nunca me comeu!/ruminou/ meu corpo são/ quis me por no coração/ mas comer/ não comeu não”.

Literatura de mulher

Helena Silvestre quando escreve a terceira advertência que faz na introdução do livro discorre sobre como amar uma mulher negra. Nesse texto ela faz um tutorial de como compreender a alma de uma mulher afroindígena. Ela se dirige a um homem. Escrito em prosa, o texto remete ao poema de Vinícius de Moraes Para viver um grande amor. Helena faz uso do condicional: “para amar uma mulher negra” é preciso:
– Desfazer os estereótipos tanto de força, quanto de fragilidade;
– É preciso saber nadar, para ir às profundezas das almas pretas que habitam a mulher negra;
– É preciso “entender que o mito da fragilidade feminina nunca foi um paradigma”;
– Deve-se aprender a amar;
– “Precisa estar preparado para andar pela história com outras cores”.

Juliana também faz seu postulado feminista. Observei no texto Orações um parâmetro de compreensão da alma e do corpo da mulher. Poema em quatro versos correspondentes aos títulos de capítulos do livro:
– “A poesia é o maior órgão do meu corpo”;
– “Minha existência é minha intervenção feminista no mundo”;
– “Meu mundo interior é um labirinto infinito”;
– “Amar é difícil e bom”.

Não é possível, para um homem, passar pelas obras dessas autoras impunemente. Do mesmo modo com que, para as mulheres, não é possível deixar de estabelecer algum nível de identificação. As autoras se entregaram por completo na escrita e os livros nos colocam em contato com elas. Eu as conheço de vista, mas parece que sou amigo delas. Senti-me completamente afetado pela literatura de Helena e Juliana e transformado.

Como é bom poder ler literatura de mulher.

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1 Canção Foi Deus quem fez você, do LP Amelinha, de 1979

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