Disco Boy: A guerra como uma dança brutal

Todo conflito é um choque de velocidades, mostra o filme, disponível em streaming. Para um imigrante bielorusso, a Legião Estrangeira é o passaporte para a Europa – prometida e renegada. E, numa coreografia vital, seu corpo gera outras sensibilidades

Sobre Disco Boy, de Giacomo Abbruzzese

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Seria difícil classificar a estreia de Abbruzzese como um filme de guerra. Ou ao menos sobre a guerra tal como feita por seus próprios meios, digamos. É bem verdade que, após o saturamento do gênero em seus moldes clássicos — mais próximo do elogio à gratuidade da violência —, temos visto ressurgir o interesse pelo tema. Ele vem acompanhado por um cada vez mais apelativo pseudorealismo, voltando-se ora para as consequências psicológicas dos campos de batalha, como uma tentativa de dignificar a condição humana pelo heroísmo individualesco, ora pelo descentramento de seu caráter épico em prol dum olhar atento à resiliência da vida cotidiana frente à barbárie.

Disco boy consegue evitar ambos os caminhos, decidindo-se por uma radicalidade menos previsível. O filme narra os acontecimentos ambivalentes pelos quais passa um legionário estrangeiro de origem bielorrussa. Em busca duma vida melhor na Europa ocidental, a trama acompanha Aleksei/Alex, que ingressa no exército francês sob a promessa de se nacionalizar naquele país. Mais do que um excesso quase-dramático ou uma desculpa para o regozijo diante de atos de sacrifício, Abbruzzese parece se preocupar com a guerra como uma forma de encontro entre velocidades que colidem. Pensada por esse viés, a câmera passa a girar não em torno das armas ou das grandes explosões, mas do tipo de ritmo ao qual os corpos que lhe orbitam são convocados.

Eis então uma das novidades que Disco Boy nos propõe: há de se pensar a guerra como produção dum ritmo, descobrimos com o filme. Essa talvez seja a melhor maneira de introduzir a perspectiva por meio da qual o diretor nos convida a pensar a guerra. Afinal, o que haveria de comum entre ela e a dança? Se elas podem ser aproximadas, decerto seria porque ambas parecem nos convocar a certa exposição radical diante do outro.

É assim que a saga de Aleksei e Mikhael, imigrantes bielorrussos rumo a França, exige a despretensão de certo devir-menor: antes de exibi-los como amostras de sucesso do sonho europeu, o diretor escolhe mostrar a vulnerabilidade à qual seus corpos foi sujeitada. Quase sem percebermos, pouco antes de concluir a travessia e chegar a França, Mikhael some nas águas do Reno. Sem cortes lentificados, sem escalonadas épicas, sem nenhum paroxismo dramático. Seu corpo afunda, mas a câmera não o acompanha. Quase como se Abbruzzese nos lembrasse que, para ser fiel à perspectiva com a qual aquelas fronteiras o enxergam, seu corpo estivesse mais próximo duma contínua desaparição.

A imigração, e com ela o sonho duma Europa tanto mais prometida quanto renegada, melhor se representa, ali, pelo nado lento e desajeitado, pelo rastejar errático de Alex, o único dos dois que sobrevive. Seus frutos culminam, para ele, na perda de seu melhor amigo. Essa é a sua porta de entrada ao ocidente oficial.

Os rios ganham especial atenção ao longo do filme, sendo coadjuvantes importantes para o decurso das cenas. Eles retornarão, por exemplo, quando da primeira vez que Alex se defronta a Jomo, líder dum movimento subversivo que luta contra a exploração dos recursos naturais de seu país, a Nigéria. Confirmando seu pouco interesse em mostrar a guerra por seus meios convencionais, as cenas acompanham a perspectiva em primeira pessoa de Alex, agora um legionário treinado e habilidoso, saturando a câmera com focos térmicos.

Assumir a visão de Alex significa mais do que colocar as lentes do exercito oficial; subvertendo a introjeção da perspectiva ocidental como lado correto do confronto, ela nos permite ver a guerra pelas ambivalências afetivas de quem não se reconhece nas ações que guia. Se a perspectiva em primeira pessoa nos insere na visão militarizada à qual está sujeito, ela carrega consigo as contradições de quem vê o mundo se mover como rastros de uma sensibilidade transformada. Sua perspectiva é sempre parcialmente docilizada: ao mesmo tempo que reduz a presença do outro a um borrão despersonalizado, satura sua presença asseverando sua configuração afetiva, sua intensidade somática.

Há um reconhecimento de sua alienação, um pouco como quando o jovem Fanon desembarcou na Europa para lutar pelo exercito francês. Não importava morrer por aquele país — ele jamais seria aceito como parte dele, tampouco podia se identificar plenamente com os motivos para levar a cabo aquela missão. A visão térmica legionária atravessa a autonomização da consciência de Alex, como uma metáfora da cisão a ele imposta por sua subalternização à lei francesa: no momento em que se vê cara a cara com Jomo, novamente imerso sob as águas tão próximas às que outrora seu amigo se afundou, ele se vê obrigado a efetivar para outro um destino do qual ele mesmo tentara escapar. Jomo, reduzido à sua intensividade térmica, aparece como ao mesmo tempo aquém e além de um encontro humano. A Europa que o rejeitou permeava agora sua visão, controlava seus gestos. Esfaquear o inimigo era como sangrar a si mesmo.

É a partir desse confronto que melhor entendemos a proposta de Abbruzzese. Toda a cena adquire um teor rítmico, asseverado pela caoticidade térmica proporcionada pela visão de Alex. Como se as zonas de calor se transfigurassem zonas de afeto, e os movimentos embrutecidos da luta por interesses alienados se emancipasse de sua significação tipificada. Abbruzzese percebeu como em toda luta há um instante onde os corpos que se chocam encontram um ritmo singular. Ele surge como uma descoberta inusitada, repentina, violenta. Mais importante ainda seria seu abandono de qualquer nível reflexivo: luta-se somente quando se permite alcançar certa proficiência corporal, quando se reconhece que nada de mental já está em jogo, ali.

Como guerra feita por outros meios, a dança confronta o sujeito lá onde sua reflexividade colapsa. Como dança, a guerra nos interpela à sensibilidade radical da violência, à vulnerabilidade de nossa existência a partir do contato com o outro. Ambas são, sobretudo, atividades cujo protagonismo se conjuga corporalmente desde certo estremecimento da sensibilidade. Ambas são, a seu modo, confrontamentos entre velocidades dissonantes. Alex e Jomo ensaiam uma coreografia vital.

Nos enganamos se vermos ali mera efusão de afetos, algo como a ebulição caótica duma mistura em ebulição. Mais do que uma explosão cega, trata-se de uma maneira de se conhecer. Só há luta lá onde há certo disciplinamento produtivo das pulsões. Ela ocorre num nível de encontro com o inimigo que nos convoca a uma espécie de automatismo gestual. Porque se trata da autonomia através do corpo, chega-se mais perto de uma coreografia que de qualquer outra coisa.

Abbruzzese nos mostra como deve-se levar tal paralelismo a sério: mais do que uma metáfora, pensar a luta como dança apela para a homologia intensiva de duas maneiras de encontrar-se com o outro. Pouco antes do confronto, Jomo confessa a seus amigos como, caso tivesse nascido branco, gostaria de se tornar dançarino — disco boy. O mesmo dançarino que encontra refúgio na ritualidade de sua família, o mesmo soldado desesperado que sincroniza sua luta à força da ancestralidade. Jomo dança como quem encontra a virtualidade possível contra a sujeição.

Esse é um filme de guerra no qual os confrontos mais violentos são foracluídos das cenas. Porque alienadas de sua localidade real, o inimigo não pode ser determinado: ele não pertence ao enquadramento no qual seus acontecimentos ocorrem. Seria míope encontrá-lo na França imediata: assim como na idealização de Alex, também ela está pulverizada. Se é verdade que a guerra e dança seria a maneira como o filme conjura a violência, mais preciso seria vê-lo na estereotipia dos ritmos, na dominação dos gestos. O inimigo encontra-se na dança reificada de Manuela, irmã de Jomo que se vê obrigada a imigrar devido à destruição de seu vilarejo. Como um aceno final à alienação da qual busca se libertar, nenhuma sequência faria tanto sentido para o destino do disco boy Alex quanto recordar sua dança alienada com Jomo.

Desterritorializado, o ritmo dissonante que o fizera acordar de sua idealização vê-se agora reduzido a um show barato numa casa de festas parisienses. O inimigo real nunca esteve tão próximo quanto na domesticação dos corpos forçosamente sincronizados às velocidades do império. Se aquele encontro pode ser reificado, contudo, também o inverso pode se tornar verdade — também a dança pode devir guerra. Como num ato final, mais confrontatório que resiliente, Alex incendeia seu uniforme e, com ele, seu ideal europeu. Há de se ver ali a mesma chama que iluminava a dança de Jomo, o mesmo fogo que assolou a casa de Manuela. A dança adquire a capacidade para desconfigurar seu corpo: ela liberta seus gestos da automatização da máquina de guerra.

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