A ilusão do copo cheio

“É preciso se amar primeiro para depois amar alguém”. Mas o amor seria um reservatório transbordante? A incompletude não o constitui? Não estaria aí o medo de perder-se, o querer ser amado e encarar ausências com certa indiferença?

Imagem: “Retrato de Suzanne Valadon “, de Henri de Toulouse-Lautrec (1864-1901)
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Os casamentos arranjados ainda existem, mas sua quantidade diminuiu. Aparentemente, a escolha amorosa tornou-se menos cúmplice dos interesses econômicos e das alianças familiares, mas isso não tornou a tarefa mais fácil – o divórcio de Sandy e Lucas Lima nos alerta para isso. Existe um esforço vital no sentido de promover encontros amorosos menos românticos e mais interessantes. A proposta pode ser boa, mas nem sempre podemos dizer o mesmo sobre as respostas oferecidas. Um dos ensinamentos que vem sendo transmitido e que visa uma cura para a doença do amor falido é a ilusão do copo cheio: é preciso estar cheio para, somente depois, amar alguém. Esse ensinamento também pode ser traduzido da seguinte maneira: “é preciso se amar primeiro para depois amar alguém”.

Essa expressão pode ser compreendida com uma imagem bastante didática. O ser humano é como um reservatório de água. Como todo reservatório, pode estar vazio, mais ou menos cheio e plenamente cheio. O nível de água varia de acordo com a quantidade de água despejada no reservatório. A água pode ser dirigida diretamente para o reservatório próprio ou para reservatórios vizinhos.

Quando é dirigida para o reservatório próprio e atinge o seu nível máximo, a água começa a transbordar para fora de seus limites, irrigando o solo adjacente ou o reservatório vizinho que se encontra ao lado. Mas mesmo assim o reservatório próprio permanece cheio, pois a quantidade de água é superior ao tamanho do reservatório. Quando a água é diretamente direcionada para reservatórios vizinhos, o reservatório próprio se mantém vazio, enquanto os outros reservatórios são preenchidos de água.

Talvez a imagem de um reservatório transbordante não seja assim tão absurda para pensar as relações amorosas. Se traduzirmos fonte de água por investimento afetivo, podemos perceber que o investimento pode ser feito sobre si mesmo ou sobre objetos de nosso amor. E ainda podemos reconhecer algum sentido na imagem de um investimento que é feito sobre si mesmo e que transborda para os outros ao redor. Mas existe algo de estranho nessa imagem: a crença de que existe mais água do que o reservatório próprio pode suportar. Se a fonte de água é capaz de preencher o reservatório próprio e, em seguida, preencher os reservatórios vizinhos, resta-nos apenas essa hipótese: se o afeto for investido corretamente, sempre estaremos afetivamente plenos – seja lá o que isso quer dizer.

Essa hipótese nos traz uma questão importante e delicada: se, obedecendo determinadas regras de orientação, o reservatório próprio pode permanecer cheio, qual o motivo de transbordar a água para outros reservatórios? O que leva alguém a direcionar água para outros reservatórios quando não falta nada ao reservatório próprio? Seria um instinto inato de generosidade? Acho pouco provável. Na verdade, parece haver um problema na imagem que havíamos esquematizado. Parece ser mais interessante pensar que nossa capacidade de investimento afetivo não é assim tão abundante, o que nos permite pensar em uma imagem mais interessante para as relações amorosas.

As relações amorosas funcionam muito mais como uma gangorra. Se o amante dedica toda ou a maior parte de seu investimento afetivo em si mesmo, nada ou muito pouco resta para ser investido na pessoa amada. Quando amamos, uma boa dose de nosso investimento afetivo é direcionada para a pessoa que elegemos como objeto de nosso amor. Em contrapartida, esperamos que aquele a quem amamos se transforme em amante de nós mesmos, ou seja, ansiamos pelo retorno de nosso investimento afetivo.

Seguindo essa imagem de gangorra, poderíamos, então, escolher investir todo nosso afeto somente em nós mesmos, o que nos dispensaria do árduo trabalho de procurar alguém para amar. Entretanto, aquele que nos ama é capaz de nos amar de um modo que jamais nos amaríamos. Existe algo na pessoa amada que nos faz voltar e voltar e voltar a ela. Sempre voltamos esperando encontrar definitivamente o que nos faz voltar, mas nunca o sabemos por completo. Sempre deixamos escapar alguma coisa, sempre nos falta algo.

Mas isso não nos responde a seguinte pergunta: por que a imagem do reservatório cheio transbordante, da crença de que é preciso primeiro se amar para somente depois amar o outro permanece ainda tão intacta em nossa cultura? Haveria alguma relação com uma época de hiperindividualização em que vivemos? O que ocorre é que, no mito do reservatório cheio, espera-se estar completo e pleno quando o amor chegar. Nada deve faltar ao amante, a incompletude não pode fazer parte de sua constituição. Dito de outra maneira: nesse mito moderno, por temer se perder enquanto objeto de amor, por se desesperar ante a possibilidade de querer continuar sendo amado por alguém que pode ir embora a qualquer momento, o amante deve amar como se a ausência do amado fosse indiferente.

Um comentário para concluir. Essa reflexão nos faz pensar na expressão “quem ama, cuida”. Amar e cuidar nem sempre caminham juntos. O amor pode vir desacompanhado do cuidado, assim como o cuidado pode dispensar o amor. Se nos aventurarmos por esse caminho que nos mostra dois mochileiros diferentes, podemos conceber o exercício ético do cuidado consigo mesmo de um modo que não inflacione ainda mais o narcisismo já tão superestimado de nossa época, ou seja, cuidar de si mesmo não significa, necessariamente, amar a si mesmo. Inversamente, amar a si mesmo não conduz decididamente a cuidar de si mesmo. Em uma época em que a hiperindividualização dificulta a relação com o outro, nunca é demais recordar: em nossa existência, fomos inicialmente objetos de amor – senão de amor, ao menos de um interesse afetivo. Antes de amar, fomos amados.

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