Cinema: Aqueles maiores que a vida

O Festival do Rio traz uma safra de doze cinebiografias. As de “cinéfilos” vão de Grande Otelo a Nelson Pereira dos Santos. Vistas em conjunto, iluminam e mapeiam a história do nosso cinema, com todas as suas carências e potencialidades

.

Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema

Na 25ª edição do Festival do Rio, que começa nesta quinta-feira, o carro-chefe é a nova safra de filmes brasileiros, e dentro dela uma porção de cinebiografias de grandes figuras da nossa cultura. São nada menos que doze, retratando nomes que vão de Grande Otelo a Samuel Wainer, de Nelson Pereira dos Santos a Dorival Caymmi.

Três desses filmes são reconstituições ficcionais, com atrizes e atores reinterpretando a vida de Gal Costa (Meu nome é Gal, de Dandara Ferreira e Lô Politi), Mussum (Mussum, o filmis, de Silvio Guindane) e Sidney Magal (O meu sangue ferve por você, de Paulo Machline). Os outros nove são documentários, nos mais variados estilos e formatos.

Para os cinéfilos, os “obrigatórios” são os dedicados à vida e à obra de diretores (Nelson Pereira dos Santos, Roberto Farias, Geraldo Sarno) e atores (Grande Otelo, Paulo César Peréio) do cinema brasileiro.

É particularmente interessante observar as intersecções entre algumas dessas obras, inclusive com a repetição de cenas chaves de filmes clássicos. Por exemplo, em Nelson Pereira dos Santos – Uma vida de cinema, de Aída Marques e Ivelise Ferreira (viúva do cineasta), destaca-se a atuação de Grande Otelo em Rio, zona norte (1957), primeiro papel dramático do ator no cinema, em paralelo a sua brilhante carreira na chanchada.

Roberto Farias, memórias de um cineasta, de Marise Farias, mostra que o patriarca do clã Farias (e pai da realizadora) começou sua carreira na chanchada, onde chegou a dirigir o próprio Otelo em Um candango na Belacap (1961). O ator estaria também no filme seguinte de Farias, a obra-prima O assalto ao trem pagador (1962). Assim como os ótimos filmes sobre os diretores, o emocionante Othelo, o grande, de Lucas H. Rossi dos Santos, conta com a vantagem de ser narrado em boa parte pelo próprio retratado, mediante entrevistas e depoimentos registrados em diversas épocas.

Ainda não tive oportunidade de ver Peréio, eu te odeio, de Tasso Dourado e Allan Sieber, nem Dois sertões (sobre Geraldo Sarno), de Caio Resende e Fabiana Leite, mas nos dois casos as referências são as melhores possíveis.

Mais do que simplesmente exaltar figuras de proa, filmes assim, vistos em conjunto, ajudam a iluminar e mapear a rica história do nosso cinema, com suas rupturas e continuidades, suas carências e potencialidades. O que se faz hoje é, em grande parte, fruto dessa epopeia meio destrambelhada.

Outros destaques

Mas a parte brasileira do festival não se resume a cinebiografias. A seguir, algumas indicações de longas-metragens inéditos que o blog viu e recomenda.

A paixão segundo G.H., de Luiz Fernando Carvalho. Estrelada por Maria Fernanda Cândido, é uma brilhante e corajosa transposição para o meio audiovisual do texto vertiginoso de Clarice Lispector sobre a experiência quase mística de uma escultora da elite carioca ao adentrar pela primeira vez o quarto de sua empregada doméstica. É o título mais aguardado pelos amantes da literatura, ao lado de

O diabo na rua no meio do redemunho, a igualmente ambiciosa versão de Bia Lessa para Grande sertão: veredas estrelada por Caio Blat e também presente no festival.

O dia que te conheci, de André Novais Oliveira. Nas antípodas das duas obras citadas acima, essa delicada crônica de um nascente romance periférico entre um bibliotecário (Renato Novaes) e uma supervisora de colégio (Grace Passô) expressa o humanismo essencial do diretor mineiro, com um despojamento de meios desconcertante. Um lirismo urbano absolutamente pessoal e inimitável.

Pedágio, de Carolina Markowicz. Ambientado no cenário distópico de Cubatão, é um misto de drama social e suspense policial, não desprovido de humor, em que uma operadora de caixa de pedágio (Maeve Jinkins) se envolve num esquema de assaltos a motoristas para financiar uma suposta “cura gay” de seu filho (Kauan Alvarenga), oferecida por um coach evangélico português. A diretora confirma e eleva a um nível superior o talento que já havia demonstrado em seu longa de estreia, Carvão.

A festa de Léo, de Luciana Bezerra e Gustavo Melo. Um dia tenso e movimentado na favela carioca do Vidigal, onde uma mãe solo (Cíntia Rosa) prepara a festa de 12 anos do filho ao mesmo tempo em que tenta livrar seu ex, pai do garoto, de ser morto por traficantes a quem deve dinheiro. Com diretores-roteiristas e boa parte do elenco provenientes do grupo Nós do Morro e oriundos do próprio Vidigal, o filme tem um frescor, uma vitalidade e uma complexidade humana que passam muito longe dos clichês habituais sobre a favela.

Incompatível com a vida, de Eliza Capai. Documentário visceral em que, a partir de sua própria experiência, a diretora mostra as histórias de um punhado de mulheres de diversas classes sociais e regiões do país que passaram pelo mesmo drama: a descoberta, na gravidez, da anencefalia do feto, e as dificuldades enfrentadas para abortar, mesmo sendo este um direito legal. Premiado como melhor longa brasileiro no festival de documentários É Tudo Verdade.

Corpos invisíveis, de Quézia Lopes. Documentário em que onze mulheres negras, mediante depoimentos e performances em meios diversos de expressão, retraçam suas trajetórias e falam sobre identidade étnica e cultural, preconceito, opressão e silenciamento numa sociedade marcada pela hegemonia branca.

Rio da dúvida, de Joel Pizzini. Mesclando dramatização com fartos registros documentais obtidos no Brasil e nos EUA, esse documentário híbrido reconstitui a impressionante expedição liderada em 1913-4 pelo marechal Rondon e pelo ex-presidente norte-americano Theodore Roosevelt no Pantanal e na Amazônia para mapear um rio, posteriormente batizado de Rio Roosevelt.

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *