Cinema: Pérolas negras de Zózimo Bulbul

Chegam ao streaming as obras do cineasta carioca, falecido em 2013. Sensível e combativo, debruçou-se sobre o samba e a vida nos bairros populares. Em Abolição (1988), releu a história oficial (e o presente) a partir da resistência negra

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Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema do Instituto Moreira Salles

Quando se fala em cinema negro no Brasil um nome se destaca naturalmente: o do ator, cineasta e articulador cultural Zózimo Bulbul (1937-2013). Em boa hora a plataforma gratuita Itaú Cultural Play está lançando praticamente toda a sua obra como diretor: um longa-metragem (Abolição) e oito curtas ou médias, além do segmento de Leon Hirszman do longa coletivo Cinco vezes favela (1962) que inaugurou sua carreira de ator.

É uma trajetória e tanto, que, além de bela e pujante, ajuda a iluminar a força e os percalços da presença negra no audiovisual brasileiro.

No início dos anos 1970 Zózimo já tinha uma carreira consolidada de ator no cinema e na televisão, mas estava cansado de só receber convites para papéis secundários, em geral de escravo, favelado ou bandido. Compasso de espera (1969), de Antunes Filho, em que encarnava como protagonista um poeta e publicitário, tinha sido uma exceção à regra.

Resolveu então partir para a direção e realizou em 1973 o esplêndido curta experimental Alma no olho: contra um fundo branco, seu magnífico corpo preto, por força apenas da mímica e das mudanças de figurino, representava as mil faces da experiência negra, desde a vida livre na África às diferentes formas de cativeiro nas Américas (o jazz de John Coltrane na trilha acentua esse internacionalismo).

O solo do samba

Mas a vertente experimental não seria a mais forte em seu cinema, e sim a documental. Realizou curtas e médias sobre temas sempre vinculados à cultura afro-brasileira, em especial o samba e a história dos bairros populares do Rio de Janeiro, assuntos intimamente interligados. Aniceto do Império: dia de alforria (1980), por exemplo, retrata o grande sambista em sua relação com a escola Império Serrano, mas também com o bairro da Serrinha, onde ela nasceu, e com os armazéns do porto, onde Aniceto havia trabalhado até poucos anos antes.

Pequena África (2002) faz um pouco o trajeto oposto, ao partir de um lugar – a região carioca ocupada pela população negra nos anos finais do Império e iniciais da República – para a cultura que ele produziu, em especial o samba.

A conexão entre a geografia urbana e a cultura afro-brasileira é notória sobretudo no irresistível Samba no trem (2000), que mostra a comemoração do Dia Nacional do Samba (2 de dezembro) no Rio, com a festa começando na Central do Brasil e seguindo pelos trens até as estações de Madureira e Oswaldo Cruz. Rodas de samba nas estações, batuque e cantoria nos vagões, sambistas famosos (Nelson Sargento, Paulinho da Viola, Monarco, Beth Carvalho, Tia Surica, etc.) misturados com anônimos numa celebração dionisíaca de vibração contagiante.

De especial interesse também é o média-metragem Renascimento africano (2010), que registra a viagem de Zózimo Bulbul ao Senegal, a convite do governo do país, em princípio para testemunhar o gigantesco monumento da Renascença Africana, construído em 2006 para o cinquentenário da independência senegalesa. Além de mergulho nas origens (Zózimo se declara descendente do grupo étnico bambara, ramo dos mandingas), o filme acaba sendo uma discussão sobre o lugar dos africanos na história do mundo, em especial sobre a diáspora negra, em que milhões de homens e mulheres se espalharam pelo planeta, e sobre o novo papel a ser desempenhado pelo continente no século XXI.

 Zózimo Bulbul no Harlem em 1996 (Foto de Chuck Martin)

Abolição

Mas a obra mais ambiciosa do cineasta, evidentemente, é o longa-metragem Abolição, realizado em 1988 não propriamente para celebrar o centenário da Lei Áurea, mas para questionar o seu sentido e recuperar criticamente o que aconteceu nos cem anos que se seguiram, no que se refere à vida da população afrodescendente.

É uma leitura da nossa história social, política e cultural por uma ótica negra, se é que se pode falar assim. Um exemplo entre tantos outros: quando aborda o período da ditadura militar, em vez de mostrar as surradas imagens de passeatas estudantis sendo reprimidas pelos cassetetes, o filme joga na cara do espectador fotos de homens negros assassinados (e não raro mutilados) pelos esquadrões da morte que floresceram naquela época – e que continuam agindo hoje, travestidos de operações policiais ou chacinas milicianas. Para a população pobre e preta, o buraco sempre foi mais embaixo.

Uma das muitas virtudes do filme, que lhe confere um valor histórico notável, é ouvir personalidades negras que se destacaram nas mais diversas áreas: do esporte (Paulo Cesar Caju, Adhemar Ferreira da Silva) ao teatro (Abdias do Nascimento), do cinema (Grande Otelo) à música (Agnaldo Timóteo), da política (Benedita da Silva) aos concursos de beleza (Deise Nunes). Obstáculos, desafios, humilhações, voltas por cima: o que esses depoimentos formam, em seu conjunto, é uma saga dolorosa e ao mesmo tempo bela, plena de vitalidade. Tudo menos um caminho suave.

Cinema negro

A presença negra no cinema brasileiro, em especial atrás das câmeras, é abordada no média-metragem Referências (2006). Por iniciativa da Fundação Palmares, hoje tão aviltada, Zózimo reuniu para uma conversa na Cinemateca do MAM carioca cineastas negros como os pioneiros Haroldo Costa e Waldir Onofre, além de Jorge Coutinho, Antonio Pitanga e Joel Zito Araujo. Todos têm muito a dizer sobre a saga da construção de um cinema negro num país fundamentalmente racista.

Ator na peça Orfeu da Conceição, Haroldo Costa foi o primeiro negro a dirigir um longa-metragem, Pista de grama (1958), que entre outras particularidades tem Elizeth Cardoso cantando em cena um samba-canção de Tom e Vinicius, acompanhada ao violão pelo então jovem João Gilberto, momento resgatado no filme de Zózimo:

Joel Zito Araujo, curiosamente o único da turma que não começou como ator, era também, em 2006, o único cineasta negro a ter realizado dois longas-metragens. Os outros todos tinham parado no primeiro. Contavam-se nos dedos os filmes brasileiros dirigidos por mulheres ou homens negros. De lá para cá as coisas progrediram um tanto, com o surgimento e a consolidação de uma nova geração de realizadores como André Novais Oliveira, Jeferson De, Gabriel Martins, Glenda Nicácio, Isaac Donato, Viviane Ferreira, Jéssica Queiroz e tantos outros e outras. Ainda é pouco, mas avançamos.

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