Cinema: Mangueira em dois tempos

Em pré-estreia, um filme simples e engenhoso. Ana Maria Magalhães investiga que foi feito da ala mirim da escola de samba de 1992. Entre a vida nos morros e a arte popular, alguns tornaram-se músicos; outros perderam os sonhos ou a vida

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Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema do Instituto Moreira Salles

“Habitada por gente simples e tão pobre/ que só tem o sol que a todos cobre,/ como podes, Mangueira, cantar?”, pergunta Cartola nos versos iniciais de “Sala de recepção”. Esse paradoxo fecundo está no centro também do documentário inédito Mangueira em dois tempos, de Ana Maria Magalhães, programado para os próximos dias 28 e 29 (domingo e segunda) no festival de pré-estreias do Itaú Play.

O “dispositivo” do documentário é simples e engenhoso. A partir do curta-metragem Mangueira do amanhã, de 1992, a diretora investiga o que foi feito dos meninos e meninas da ala mirim da escola de samba que ela filmou naquela época. Era uma espécie de escolinha dentro da escola maior.

Na primeira parte, com a ajuda das lembranças do músico e ativista cultural Ivo Meirelles e da cantora Alcione, ambos incentivadores e mentores da Mangueira do Amanhã, ficamos conhecendo alguns daqueles meninos e meninas que despontaram na escola há quase três décadas.

Dois deles se tornaram músicos profissionais respeitados: Wesley do Repique tornou-se Mestre Wesley, diretor de bateria da Mangueira desde 2019. Buí do Tamborim, por sua vez, radicou-se na China, onde faz shows de música brasileira em casas noturnas e churrascarias.

Destinos selados

As garotas tiveram uma trajetória menos reluzente – e isso diz muito sobre as condições sociais e culturais do meio onde cresceram. A tendência então fortemente machista da escola (e de todas as outras) impedia uma menina de tocar na bateria, o que reduzia a duas suas possibilidades de participação: seria passista ou porta-bandeira. Várias delas tiveram filhos aos quinze ou dezesseis anos e passaram a ralar para sustentá-los, em geral sozinhas. Algumas se tornaram evangélicas e se afastaram do batuque. Uma delas diz que hoje só samba sozinha, em casa.

Mas o destino dos meninos não era muito mais róseo. Wesley, cujo pai, também mestre de bateria, virou traficante e teve morte violenta, relembra que muitos de seus companheiros de geração sucumbiram sob as balas do tráfico ou da polícia. Um deles, virtuose do repique, aparece tocando nas imagens de 1992, com um sorriso do tamanho do mundo. Morreu ainda adolescente. Como podes, Mangueira, cantar?

E no entanto canta, e esse canto é de uma riqueza sem par. Nesse lugar instável, entre a realidade dura e a arte popular mais sublime, é que se instala o comovente documentário de Ana Maria Magalhães.

Outra fronteira tênue que o filme retrata é aquela entre tradição e invenção. Nascido num dos berços mais esplêndidos do samba, Wesley passou pelo Funk’n’Lata, grupo formado por Ivo Meirelles nos anos 1990, e hoje, a par de ser mestre da bateria mangueirense, toca com músicos de vanguarda de primeira linha, como podemos constatar no documentário. Não há barreiras intransponíveis para a música.

O jogo entre tradição e invenção está presente na própria bateria da escola, conforme é explicado pelos músicos e demonstrado cabalmente na avenida, momento de apoteose em que vem à tona todo esse turbilhão de energias e saberes e, ao menos por um instante, a alegria vence a dor.

Clássicos japoneses

Vamos para o outro lado do planeta. A mostra Clássicos do Cinema Japonês exibe gratuitamente até 9 de julho, no site da Fundação Clóvis Salgado, dez filmes extraordinários dessa que é uma das cinematografias mais fortes do mundo: três de Yasujiro Ozu, três de Kenji Mizoguchi, três de Mikio Naruse e um da diretora Kinuyo Tanaka.

Todos os títulos programados foram realizados entre 1949 e 1953 e dão, em conjunto, uma boa ideia das transformações da sociedade japonesa nos duros anos do pós-guerra, sobretudo no que se refere à posição da mulher. Há entre eles pelo menos duas obras-primas que costumam frequentar as listas de melhores de todos os tempos: Era uma vez em Tóquio, de Ozu, e Contos da lua vaga, de Mizoguchi. Mas todos os dez são, no mínimo, muito bons.

Cada um desses grandes diretores é todo um universo. Ozu com sua contemplação serena e melancólica do trabalho do tempo, Mizoguchi com sua percepção das paixões que fervilham sob a superfície dos ritos sociais, Naruse com sua radiografia da crueza das relações humanas. Todos têm em comum um apuro de enquadramento e composição que parece ter sido adquirido naturalmente no berço, junto com o leite materno. Repare: não há nesses filmes um único plano feio, inexpressivo ou desnecessário.

Mas a preciosidade maior dessa mostra talvez seja Carta de amor, estreia na direção de Kinuyo Tanaka, atriz em dezenas de filmes de Mizoguchi, Ozu, Naruse e Kurosawa, numa época em que eram raríssimas as mulheres atrás das câmeras no cinema japonês. E o mínimo que se pode dizer de Carta de amor é que ele não passa vergonha diante dos grandes mestres.

Amor e guerra

Melodrama sensível e enxuto, o filme conta uma pungente história de amor atropelada pela guerra. Embora apaixonada desde a infância por Mayumi (Masayuki Mori), Michiko (Yoshiko Kuga) se casa por conveniência com outro. Desiludido, Mayumi entra na academia naval e vai para o front. Eles se reencontram por acaso, cinco anos depois do fim da guerra, quando Mayumi ganha uns trocados escrevendo cartas de mulheres (em sua maioria prostitutas) para os soldados americanos com quem tiveram relações.

Não é o caso de contar aqui o que aconteceu nesses cinco anos, nem o que acontecerá a partir desse reencontro. Só cabe dizer que toda a complexa situação social e humana de um Japão que renascia das cinzas, repleto de cicatrizes físicas, psíquicas e morais, entrelaça-se ao drama de indivíduos singulares, que não são apenas “tipos” ou “símbolos”.

Tudo é muito preciso, denso, bem encenado, mas há uma cena que se destaca por seu brilho de concepção e fatura. Ao reconhecer Michiko na rua, Mayumi segue em seu encalço até a estação de trem. Ela já subiu no vagão, mas, ao vê-lo na plataforma, desce para falar com ele. Passamos então a ver a cena de dentro para fora do trem. A porta de vidro do vagão se fecha, enquadrando o casal. Mas o trem se põe em movimento, e nosso olhar vai junto. Não é o casal que sai de quadro, mas é o quadro que sai do casal. Uma imagem como essa, em sua aparente simplicidade, condensa ideia e emoção, atestando a grandeza de um cinema.

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