Cinema: Em Tantas almas, a contracorrente da guerra suja

Filme de Rincón Gille mostra jornada de pescador em busca dos corpos de seus filhos, assassinados por paramilitares de ultradireita. Entre a fluidez do rio e a dureza das margens, sua travessia desafia a loucura homicida que a guerra torna cotidiana

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Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema do Instituto Moreira Salles

Em sua aparente simplicidade, Tantas almas, primeiro longa-metragem de ficção do colombiano Nicolás Rincón Gille, é uma obra pungente sobre, ou melhor, contra a desumanização dos indivíduos e dos povos. Realizado em 2019, chega só agora aos cinemas brasileiros, mas talvez o atual momento seja especialmente oportuno, pelo que se verá nos parágrafos seguintes.

Tudo começa com um homem em pé em sua canoa no meio de um grande rio nas últimas horas antes da aurora. Essa imagem primordial, que será reverberada na última do filme, só que desta vez em pleno dia, como que em “negativo” da outra, aponta para uma dimensão atemporal, mítica, da vida que flui como as águas de um rio.

Mas há outra dimensão, histórica e social, que esse pescador inicial, um homem de meia-idade chamado José (o impressionante Arley de Jesús Carvallido Lobo) vai encontrar logo que ancorar, ao amanhecer, na margem do rio. Durante sua ausência, seu casebre foi invadido e seus dois filhos homens foram levados (e certamente mortos) por milicianos armados.

“Morte e limpeza”

Nas paredes do barraco, uma inscrição pichada – “Morte e limpeza – A.U.C.” – fornece as coordenadas histórico-geográficas do que está acontecendo. As Autodefesas Unidas da Colômbia foram milícias de extrema-direita que barbarizaram o interior do país entre 1997 e 2006. Formadas inicialmente para combater a guerrilha de esquerda, as AUC, movidas por um anticomunismo feroz, passaram a ser financiadas por políticos corruptos, narcotraficantes e empresários do agronegócio para perseguir rivais e oprimir camponeses, pescadores e indígenas. De acordo com a ONU, as AUC foram responsáveis por 80% dos milhares de assassinatos de civis ocorridos no período. Costumavam jogar os cadáveres nos rios.

Assim, na saga de José rio abaixo, à procura dos corpos dos filhos, há algo de parábola bíblica ou de tragédia grega (Antígona lutando para sepultar o irmão), mas há também a crônica de uma guerra suja muito concreta, e muito próxima de nós, no tempo e no espaço. A habilidade do filme de Rincón Gille consiste em manter sua narrativa sempre na fronteira entre essas duas perspectivas, entre a fluidez do rio e a dureza das margens.

A sucessão de episódios, mostrados sempre com concisão e despojamento, sem música alguma (exceto a executada em cena), contrasta a obstinação quase muda desse homem solitário com a ruidosa brutalidade reinante à sua volta, onde todos os homens parecem ter-se bestializado.

A impressão é de que, a partir de um determinado momento, aqueles jovens armados de fuzis e metralhadoras perderam de vista a motivação da violência que praticam. Há o prazer de matar por matar, humilhar por humilhar, impor seu poder num campeonato de macheza. Não por acaso, são sempre mulheres que, em um momento ou outro, ajudam José em sua busca. Não por acaso também, o xingamento mais usado pelos milicianos é “marica” ou “maricón”.

Contra a corrente

Uma cena breve sintetiza visualmente o sentido geral do filme: com grande esforço, José nada contra a corrente para chegar a um emaranhado de árvores encalhadas no meio do rio, na esperança de encontrar ali um dos filhos. É um homem na contramão da loucura homicida que o cerca. É, de certo modo, o último “homem humano”, para usar a expressão de Riobaldo no Grande sertão: veredas.

Na busca pelos restos mortais dos filhos, José se vê em meio a corpos anônimos boiando no rio e a covas igualmente anônimas em fundos de cemitérios – as “tantas almas” do título. A tragédia pessoal se funde com a tragédia coletiva. O rio, como vemos na última imagem, é imenso, parece não ter fim.

Na jornada do pescador chama a atenção a religiosidade que o anima, uma espécie de cristianismo popular e sincrético, feito de amuletos, santinhos, rezas de fechar o corpo, conversas com os mortos. Algo muito parecido com o que Darcy Ribeiro chamava de “nosso catolicismo santeiro e macumbeiro”. Não é só nisso, desgraçadamente, que Tantas almas nos soa tão próximo.

Cinema proletário

O média-metragem Pão e gente, de Renan Rovida, e o curta A máquina infernal, de Francis Vogner dos Reis, que estão entrando em cartaz em dobradinha em cinemas de São Paulo e do Rio, podem ser vistos como corpos estranhos no cinema brasileiro atual, em termos de enfoque e linguagem.

Ambos são ambientados no mundo do trabalho e protagonizados por proletários, e ambos fogem do melodrama, o gênero predominante em nossos filmes de ficção que abordam as questões sociais. À parte isso, são obras radicalmente distintas uma da outra, na estética e na linguagem.

Pão e gente, rodado em límpido preto e branco num bairro operário paulistano, inspira-se numa peça inacabada de Bertolt Brecht, “A padaria”, para encenar um exercício de economia política, desvelando a crueza das relações de poder e dominação numa sociedade capitalista.

O deliberado anacronismo (nas roupas dos personagens, no vintém como moeda corrente, nas atividades econômicas obsoletas), a ruptura frequente da “quarta parede”, em que os atores falam diretamente para a câmera, a impostação didática dos diálogos, tudo isso causa um estranhamento dos mais interessantes ao se contrapor ao realismo cru da ambientação: uma padaria de esquina, uma banca de jornais, um beco deteriorado do qual se vê ocasionalmente a passagem elevada de um trem de metrô.

O espectador é instigado a pensar na sobrevivência de velhos mecanismos de exploração econômica sob as aparências da modernidade. Se a referência principal e óbvia é Brecht, é possível ver também uma aproximação com o cinema materialista de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet. No Brasil, a afinidade mais evidente seria com Arábia, dos diretores mineiros Affonso Uchoa e João Dumans.

Terror metalúrgico

A máquina infernal, por sua vez, opera uma curiosa fusão do tema laboral com os códigos do cinema de terror. Uma fábrica metalúrgica decadente do ABC paulista se torna palco de acontecimentos estranhos, em que as máquinas parecem ganhar uma ameaçadora vida própria.

O esquema é similar ao dos filmes americanos de “casa tomada”, mas o ambiente e os papéis sociais fazem toda a diferença. As tensões ligadas à desindustrialização do país e à precarização do trabalho são plasmadas numa eficiente narrativa de suspense e horror.

Exibidos juntos, Pão e gente e A máquina infernal, ambos da produtora independente paulistana Desalambrar, mostram duas faces de um possível cinema proletário brasileiro, distante do padrão paternalista/melodramático habitual. É esperar para ver os novos frutos.

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