Os militantes e a placa

Em peça de humor sobre as dificuldades de comunicação e o doutrinarismo da esquerda, autor imagina as polêmicas despertadas, numa associação de bairro, pela árdua tarefa de elaborar um aviso de “cuidado com o buraco”

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O presidente da Associação de Moradores de um bairro, cuja diretoria havia sido conquistada por militantes de esquerda nas últimas eleições, abre a primeira reunião da nova gestão e encaminha o primeiro ponto de pauta.

– Precisamos colocar uma placa para alertar os pedestres de que há um buraco na calçada da Rua dos Lírios. Alguém pode cair e se ferir.

– Sugiro que coloquemos uma placa com os seguintes dizeres: “cuidado com o buraco” – sugeriu um participante.

– Bom – observou outro –, mas aí não fala que o buraco é de responsabilidade da prefeitura. A placa passaria a ideia de que o buraco simplesmente apareceu. É preciso denunciar o descaso e a irresponsabilidade do poder público com a comunidade.

O presidente virou-se para o secretário e sugeriu:

– Então escreve: “cuidado com o buraco, produto da irresponsabilidade da prefeitura com a coisa pública”.

– Não acho que seja irresponsabilidade – opinou a tesoureira. – Falar que é irresponsabilidade não esclarece sobre as verdadeiras causas dos problemas. Há um compromisso de classe do poder público que prioriza os investimentos apenas nos setores mais ricos da população. Então, não se trata apenas de uma ação “irresponsável”. Há, na verdade, uma opção com relação aos gastos públicos.

– Bom, vai complicar um pouco, mas põe aí: “Cuidado com o buraco, produto de uma sociedade dividida em classes, cujo Estado foi tomado pelos representantes dos setores mais favorecidos, que abocanham os investimentos públicos em detrimento dos serviços destinados à população mais pobre”.

Vários membros da diretoria levantaram a mão e se inscreveram para falar.

– Ainda não está bom. Não é que o Estado “foi tomado” pelos representantes dos setores mais favorecidos. Ele próprio é uma instituição montada para perpetuar o capitalismo, é uma máquina projetada para servir ao sistema e, por isso, não permite que seja gerido em favor dos trabalhadores.

A cada sugestão, o presidente ditava o novo texto ao secretário.

– Escreve aí, então: “Cuidado com o buraco, produto de uma sociedade dividida em classes, que, para perpetuar o sistema necessitou criar uma estrutura de poder que favorecesse a reprodução do capital, destinando todos os recursos públicos e a máquina estatal para servir os interesses da classe dominante e que, consequentemente, não pode atender às demandas da população mais pobre”. Próximo inscrito!

– Mas aí, o texto retira a culpa dos governantes. O Estado abstrato acaba sendo culpabilizado como se os governantes não tivessem escolha. É preciso acrescentar que o Estado é contraditório e pode, eventualmente, ter suas prioridades invertidas, destinando mais verbas para a população mais pobre. Então, o governo também faz uma opção.

– Novo texto para a placa, então: “Cuidado com o buraco, produto de uma sociedade dividida em classes, que, para perpetuar o sistema necessitou criar uma estrutura de poder que favorecesse a reprodução do capital, destinando todos os recursos públicos e a máquina estatal para servir os interesses da classe dominante e que, consequentemente, não pode atender às demandas da população mais pobre. Porém, como o Estado é perpassado pelas disputas sociais, seus ocupantes podem, eventualmente, inverter as prioridades e atender algumas demandas da classe trabalhadora. Não foi o caso de nosso prefeito e, por isso, o buraco na calçada não foi consertado”.

– Mas eu não acho que o único problema do bairro seja o buraco na calçada. Assim vai parecer que estamos criticando a prefeitura apenas por causa do buraco. Aí, quando ele consertar, vão dizer que está tudo bem. É preciso falar da falta de creche, do estado de conservação da pracinha, da falta de médicos na unidade de saúde, de um monte de rua sem calçamento…

– Permite um aparte? Também acho que deveria haver um recorte de raça, aí. A maioria dos habitantes da periferia é negra. Os negros são os que mais correm risco de se ferir com o buraco. O racismo tem que ser denunciado aí também.

– Anota aí, então: “Cuidado com o buraco, produto de uma sociedade dividida em classes, que, para perpetuar o sistema necessitou criar uma estrutura de poder que favorecesse a reprodução do capital, destinando todos os recursos públicos e a máquina estatal para servir os interesses da classe dominante e que, consequentemente, não pode atender às demandas da população mais pobre, perpetuando e reproduzindo o racismo estrutural, porque a maioria da população dos bairros pobres é negra. Porém, como o Estado é perpassado pelas disputas sociais, seus ocupantes podem, eventualmente, inverter as prioridades e atender algumas demandas da classe trabalhadora. Não foi o caso de nosso prefeito e, por isso, o buraco na calçada não foi consertado. Mas além do buraco, o prefeito também não construiu a creche, não reformou a praça, não providencia médicos para a unidade de saúde e deixa um monte de ruas sem calçamento”. Está ok, agora?

– Mas o problema não começou com essa administração. Do jeito que está, parece que foi só esse prefeito que não cuidou do bairro. Os problemas não surgiram nessa gestão. Vamos livrar a cara dos outros?

– Põe aí: “Cuidado com o buraco, produto de uma sociedade dividida em classes, que, para perpetuar o sistema necessitou criar uma estrutura de poder que favorecesse a reprodução do capital, destinando todos os recursos públicos e a máquina estatal para servir os interesses da classe dominante e que, consequentemente, não pode atender às demandas da população mais pobre, perpetuando e reproduzindo o racismo estrutural, porque a maioria da população dos bairros pobres é negra. Porém, como o Estado é perpassado pelas disputas sociais, seus ocupantes podem, eventualmente, inverter as prioridades e atender algumas demandas da classe trabalhadora. Não foi o caso de nosso prefeito e, por isso, o buraco na calçada não foi consertado. Mas além do buraco, o prefeito também não construiu a creche, não reformou a praça, não providencia médicos para a unidade de saúde e deixa um monte de ruas sem calçamento. Esse problema vem sendo enfrentado pelos moradores há muitos anos e nenhuma administração procurou resolvê-los de maneira adequada. A atual gestão não é diferente das anteriores”. Podemos fechar?

– Tem que colocar “moradores e moradoras”. Acerta aí, senão fica uma placa machista.

– Acertado. E agora?

– Não tem como colocar em uma linguagem não-binária?

– Aí vai complicar, pois “moradores” já termina com “es”…

– Sei lá…”moradorus”…

– Essa discussão a gente deixa pra outra hora. Algo mais para a placa?

– Acho que podemos pintar.

– Vamos precisar de pagar um outdoor para isso.

– Não, gente, tem que ser uma placa pequena. Não temos recursos. Só se reduzir o texto…

– Não! Não dá para tirar nada! Tudo que está aí é importante. Mas tem que ser uma placa menor.

– Presidente? Aonde você vai? Está abandonando a reunião?

– Eu vou lá tapar a porra daquele buraco, que é mais fácil…

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2 comentários para "Os militantes e a placa"

  1. Dr. Peçanha disse:

    Ótimo texto. Serve muito bem para explicar o perfil da militância de esquerda. Todos brigam pela representatividade de seu grupo e se esquecem daquilo que é comum. Adoram discorrer sobre teorias mas quando a ação é necessária fica perdida na vaidade do discurso. Daí, quando alguém vai lá e resolve a questão por iniciativa própria, acaba levando a fama de centralizador ou autoritário.

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